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São 40 crônicas selecionadas pelo próprio ministro em um trabalho de pesquisa de mais de um ano. O futebol foi a metáfora utilizada por Nelson Rodrigues para a apresentação e a divulgação de um Brasil eficiente e vitorioso.

Confira abaixo a 19ª crônica da série: “Almir, nosso Pelé branco”. O site do ministério publica dois textos por semana, aos domingos e às quintas-feiras.

“A verdade é que, apesar de todas as convenções disciplinares do profissionalismo, o futebol vive muito da bravura pessoal dos craques. O sujeito pusilânime, o sujeito covarde, dá menos no couro.”

Almir, nosso Pelé branco (1)

Amigos, não há de ser difícil catar o meu personagem da semana entre os 22 jogadores de Vasco x Flamengo (digo 22 e já amplio: mais, por causa das substituições). Mas, como eu ia dizendo, o personagem pula do jogo como um elástico polichinelo. Chama-se Almir, e os locutores costumam tratá-lo de “Pernambuquinho”. Eu sei que se forma sobre o craque vascaíno um caudaloso anedotário. E nós sabemos que a anedota desfigura, que a anedota falsifica. Em tudo que se diz sobre Almir, já é difícil discriminar o que é verdade e o que é folclore.

Por exemplo: contam que Almir xinga os adversários. Então pergunto: será o primeiro? Não me parece. O futebol jamais foi mudo, jamais exigiu do craque um silêncio de sarcófago. Direi mais, se me permitem: o futebol é o mais falado e o mais pornográfico dos esportes. Durante os noventa minutos, tanto os craques em campo como o torcedor nas arquibancadas rugem os palavrões mais resplandecentes do idioma. Dir-se-ia que tanto o público como o craque têm, no berro pornográfico, um estímulo vital, precioso e irresistível. E se o meu personagem xinga os adversários, não faz outra coisa senão insistir num hábito que data dos nautas camonianos. Repito: o futebol se nutre de pornografia como uma planta de luz. E Almir apresenta outras qualidades que convém não desprezar.

Uma delas é a coragem. Todos nós o conhecemos, e uma coisa é certa: para usar uma expressão textual da torcida, ele não foge do pau. A verdade é que, apesar de todas as convenções disciplinares do profissionalismo, futebol vive muito da bravura pessoal dos craques. O sujeito pusilânime, o sujeito covarde, dá menos no couro. Há momentos, num jogo, em que o camarada precisa enfiar a cara no pé do inimigo. Mas Almir, justiça se lhe faça: ainda quarta-feira, na partida do Pacaembu, contra os paulistas, levou um chute que quase lhe abriu o rosto em dois. Cá, no Rio, vendo televisão, eu fiz meus cálculos: “Morreu.” Ele desabou como aquele edifício de Copacabana. Mas não veio nenhum rabecão pescá-lo, nem foi preciso. Era apenas um nocaute provisório. Mas o episódio encerrava uma lição de vida e de futebol.

Amigos, a minha teoria é a seguinte: o jogador que nunca levou um pé na cara não amadureceu ainda para os grandes triunfos. Por exemplo: estamos diante do Sul-Americano de Buenos Aires. Qualquer Sul-Americano é duríssimo, e, em Buenos Aires, muito mais. Um escrete nosso, para enfrentar os argentinos, lá, terá de ser, antes de tudo, o escrete da coragem. O sujeito que tiver medo de careta não pode nem sonhar com a seleção patrícia. E Almir é um dos que podem comparecer, de peito aberto e lavado, ao certame continental, disposto a dar e a levar botinada. É pequenininho, mas como diz a sabedoria anônima e plebeia: tamanho nunca foi documento. Já o vi derrubar sujeitos maciços, compactos, grandalhões, como bastilhas supostamente inexpugnáveis.

Por outro lado, tem um futebol de primeira qualidade. O jogo de ontem não me deixa mentir. Poucos jogadores, aqui ou em qualquer lugar, terão, como ele, a capacidade de varar a defesa contrária. Ele passa pelos adversários, vertiginosamente.

Tem uma penetração e uma velocidade de bala. Contra o Flamengo, por ocasião do pênalti, Almir deflagrou-se e ia entrar, talvez, com bola e tudo, quando o agarraram pelo braço, pela camisa. E não foi só uma vez. Em inúmeras oportunidades, o meu personagem construiu jogadas que podiam ser incorporadas a uma antologia, a um museu. O encontro terminou empatado de 2 x 2, e Almir obrigou a defesa do Flamengo a molhar a camisa até a última gota de suor. (2)

No Sul-Americano, ele constitui uma preciosidade para o Brasil. Admitamos a hipótese sinistra de que Pelé não possa, eventualmente, entrar num jogo qualquer. Que melhor substituto do que Almir? Tanto mais que são ambos agarotados. Embora mais velho, o craque cruz-maltino parece tão menino quanto o paulista. E vamos e venhamos: Almir não deixa de ser um pouco o Pelé branco.

Manchete Esportiva, 7/3/1959

(1) Título sugerido pela edição deste livro. A crônica foi publicada originalmente sem título na coluna “Meu personagem da semana”, e faz referência ao jogador Almir. (N.E.)

(2) Taça Cidade do Rio de Janeiro, no Maracanã (1/3/1959). Flamengo 2 x 2 Vasco. (N.E.)