A editora da UNESP acaba de lançar um novo livro de Paulo Ribeiro da Cunha, “Militares e Militância: uma relação dialeticamente conflituosa”. O autor, nesses anos últimos anos, tem se dedicado ao estudo da esquerda militar brasileira, especialmente no período republicano. Entre suas obras estão “Uma olhar à esquerda: a utopia tenentista na construção do pensamento marxista de Nelson Werneck Sodré”.

Uma questão logo se coloca. É realmente bom para a democracia que os militares fiquem longe da política? Ou seria melhor reconhecer que as forças políticas estão tão presentes nos meios militares quanto nos demais setores da sociedade? Nesta obra, Paulo Cunha assume uma posição polêmica ao defender que se reconheça e legitime a presença histórica da esquerda nas Forças Armadas Brasileiras. Ele analisa o longo período de militância dos militares de esquerda no país, dividindo-o entre a fase da “insurreição” – do fim do século 19, com os “republicanos radicais”, até 1945 – e a fase de intervenção dos militares nas grandes causas nacionais, que se estende até 1964.

No percurso, o autor revela aspectos ainda hoje pouco explorados acerca do assunto, ao investigar, por exemplo, a influência comunista nas fileiras do Exército, por meio da análise de periódicos quase desconhecidos, a presença do espírito revolucionário na insuspeita Marinha dos anos 1920 e a história do Antimil, a quase invisível organização comunista voltada para a militância no interior das Forças Armadas.
O estudo, enfim, procura demonstrar a presença da esquerda num meio em que vicejariam somente posições políticas direitistas, como sugere a truculência ainda viva na memória do país da ditadura militar (1964-1985). “Ao fazer a ponte entre momentos históricos do ponto de vista de setores armados não hegemônicos, mas decisivos para a definição dos rumos assumidos por graves crises políticas, o autor oferece ao leitor material para refletir estrategicamente sobre a presença dos militares na cena política contemporânea”, escreve Renato Luís do Couto Neto e Lemos.

Leia abaixo a apresentação ao livro feita pelo professor João Roberto Martins Filho, da Universidade Federal de São Carlos.

Apresentação
O novo livro de Paulo Ribeiro da Cunha que o leitor tem em mãos é, mais uma vez, uma peça polêmica de história e de reflexão política, de um autor cuja dedicação ao estudo da esquerda e, especificamente da esquerda militar, é reconhecida. Basta lembrar seu estudo sobre o pensamento de Nelson Werneck Sodré, publicado em 2002 com o título Um olhar à esquerda. Mais recentemente, Paulo vem se dedicando ao resgate da presença da esquerda na polícia militar. Em todos esses trabalhos, revelam-se ao leitor as complexas e surpreendentes relações existentes entre a esquerda brasileira, principalmente o PCB, e os aparelhos militares, ou, em outros termos a presença histórica da “esquerda militar”, para resgatar o termo proposto no livro clássico de João Quartim de Moraes.
No período que vai do surgimento propriamente dito de uma esquerda militar, nos anos 1920, ao final da Segunda Guerra Mundial e do Estado Novo, em 1945 – tema do presente livro -, essas relações foram intensas e fizeram-se em duas direções: não apenas o mundo militar foi  marcado pela presença da militância comunista, como o PCB foi um partido marxista em cuja direção havia forte presença de antigos militares, dos quais Luiz Carlos Prestes é apenas o mais famoso. Nesse sentido, não é absurdo pensar que as violentas relações existentes entre comunistas e militares deviam-se, pelo menos em parte, à disputa de um mesmo território, o da representação da Nação e de sua modernização.
Mas, como dissemos, este é um texto sobre história, mas ao mesmo tempo um texto político. Nele se misturamteses políticas e descobertas historiográficas. A questão da legitimidade da participação política dos militares perpassa todo o tecido da análise de Paulo Cunha, em reflexões que ora se referem ao presente, ora ao passado pré-1945, ora ao passado mais recente. Para o autor, analisar o passado é também uma forma de introduzir um tema atual: o das relações dos militares com a democracia, que para ele significam sua possibilidade de participação na vida político-partidária. Na visão deste livro, na medida em que a história das Forças Armadas foi a história de um mundo dividido pelas mesmas cisões políticas e ideológicas presentes na sociedade mais ampla, seria melhor admitir esse fato e, no Brasil atual, reconhecer a legitimidade da presença da esquerda nas Forças Armadas.
É este o aspecto mais polêmico do livro, pois a tese de Paulo vai na contramão da ideia amplamente aceita, tanto em meios liberais (desde a obra clássica de Samuel Huntington, O soldado e o Estado), como em meios progressistas e republicanos, de que a democracia só tem a ganhar com o afastamento dos militares da política. Na visão inaugurada pelo livro de Morris Janowitz, O soldado profissional, o controle civil objetivo de Huntington não garante uma política de defesa democrática, pois falta o elemento subjetivo, consubstanciado na adesão dos militares a uma cultura democrática. Mas, note-se, nessa tradição não se fala em abertura do meio militar ao debate político ou de militância militar, para usar o termo de Paulo Cunha. Homens armados não devem ter a mesma participação que homens desarmados na vida política da Nação. Confesso que me inclino mais por esta última vertente, mas admiro a coragem do autor deste livro ao renovar o apoio a teses sempre presentes.
Ao lado disso, entremeado com o debate político, desenvolve-se nos capítulos deste livro a análise histórica do período em que a militância dos militares de esquerda se deu sob o signo da insurreição. Aí, revelam-se, mesmo ao conhecedor do assunto, aspectos até hoje pouco explorados. É o caso da investigação realizada no capítulo II (Comunismo e Forças Armadas) sobre a influência marxista nas fileiras do Exército, com a análise de periódicos pouco conhecidos e mesmo da presença do espírito revolucionário na insuspeita Marinha, nos anos 1920. A mesma originalidade alcançada pela incansável pesquisa das mais variadas fontes vem à luz no capítulo dedicado ao “Antimil”, a quase invisível organização comunista voltada para a militância no interior das Forças Armadas. Cunha revela nessas páginas os aspectos organizacionais, os pequenos órgãos de imprensa e os temerários atores que marcaram a militância dos comunistas do PCB num meio minado por múltiplos perigos. No quarto capítulo, o mesmo diapasão de originalidade permanece na abordagem do “Manifesto da FEB” de abril de 1945, com seus 300 signatários, resultado da militância permanente do PCB no meio militar, mesmo depois da trágica rebelião comunista de 1935. Por fim, o quadro se completa com uma análise político-biográfica da trajetória do general Miguel Costa e da tentativa bem pouco inocente de colocá-lo à altura de Prestes no episódio da coluna famosa.
Enquanto não temos em mãos o estudo de Paulo Cunha sobre os períodos posteriores da militância de esquerda no meio militar, temos que nos contentar com a análise do período heroico examinado nas páginas seguintes. Ela basta, no entanto, para revelar o caráter ideológico das narrativas conservadoras e anticomunistas construídas em torno da ideia da “traição” da Pátria e do Exército, supostamente constitutiva da presença das ideologias de esquerda num meio que se atribuía – e talvez ainda se atribua – o monopólio do nacionalismo.
Mais do que isso, vêm à tona no presente estudo os mais tristes aspectos de nosso atraso social, expressos na intolerância e na violência como moedas correntes da vida política brasileira, cujo aspecto mais triste foram os métodos bárbaros utilizados contra os líderes de 1935, com apoio do ditador Getúlio Vargas e com o consentimento e participação dos generais e almirantes dos anos 1930. Métodos esses depois retomados no início de 1950 e no pós 1964. É essa herança de intolerância e autoritarismo que até hoje lutamos para superar. É nesse tema mais amplo que se insere a polêmica e atual questão das relações entre militares e militância política nos quadros da democracia. Não é do passado apenas que fala este livro, é dos tempos atuais e dos futuros. Concordando ou não com as teses de Paulo Cunha, é fundamental reconhecer a importância de seus estudos.