Partido para dar consequência ao pensamento estratégico – 2
WALTER SORRENTINOPUBLICADO EM 09.04.2015
A reelaboração estratégica em curso no Partido é a mais decisiva determinação para a concepção e prática de partido, como foi visto. Agora, é necessário uma digressão acerca do pensamento estratégico a serviço do qual se põe o Partido que precisa ser construído, correlacionando as fases do movimento revolucionário desde Marx com as questões de organização que lhe foram subjacentes.
Terminamos a última coluna afirmando que a reelaboração estratégica em curso no Partido é a mais decisiva determinação para a concepção e prática de partido. Como se sabe, o 11º Congresso foi dedicado essencialmente a isso. Desde o 8º Congresso, em 1995, que definiu o Programa Socialista do PCdoB esse esforço tem avançado. Propusemos fazer um hiato na nossa coluna, para uma digressão acerca do pensamento estratégico a serviço do qual se põe o Partido que precisamos construir, correlacionando as fases do movimento revolucionário desde Marx com as questões de organização que lhe foram subjacentes.
Qual o nosso tempo? Como abrir caminho para o socialismo? De que partido se necessita?
É tempo de defensiva estratégica, período voltado para a acumulação estratégica de forças, para dar ensejo a uma nova onda de luta por um novo ideal socialista. Trata-se de uma terceira grande fase histórica de luta pelo socialismo. Nos cursos nacionais, o tema vem sendo abordado por outros professores (particularmente Renato Rabelo e Dilermando Toni), que vêm estudando essa periodização e buscando um esforço de síntese. O que se segue é fruto de anotações pessoais desses cursos, o que isenta quaisquer outros das insuficiências ou deficiências certamente existentes, particularmente as simplificações. A questão é que essas reflexões são úteis para cotejá-las com o pensamento de partido que lhe são subjacentes.
A luta dos trabalhadores, que já é secular, pode ser dividida em grandes fases. A primeira vai do século XIX até início do século XX, tendo durado décadas. Sua marca central foi a luta teórica pelo predomínio da concepção do socialismo científico sobre o socialismo utópico e o anarquismo-espontaneísmo, bem como da formulação de um programa mais geral de superação do capitalismo pelo socialismo, em perspectiva histórica. O marxismo se afirma como a ciência e doutrina revolucionária do proletariado; o ponto alto desta fase foi a hegemonia do marxismo no movimento do proletariado e, politicamente, a Comuna de Paris (1871) como último e mais elevado rebento do ciclo das revoluções burguesas na Europa, e que adquiria agora uma perspectiva revolucionária proletária. Ao final do período, dada a derrota e a reconfiguração do capitalismo, se instalou uma crise no marxismo.
Este primeiro período compreende uma época histórica determinada, o fim do ciclo vitorioso das revoluções burguesas nos EUA (no final do século XVIII) e nos países da Europa (1789 a 1871). A revolução da burguesia teve um sentido progressista na medida em que, liderando as forças sociais em oposição à aristocracia feudal, eliminou o feudalismo e a servidão, e abriu uma nota etapa na história, em correlação com o desenvolvimento das forças produtivas que lhe era subjacente.
Com a lógica da acumulação do capital, transformações de monta ocorrem, constituindo o advento de uma nova etapa de desenvolvimento do capitalismo. Foi um processo contraditório, que exacerbou contradições e incubou ulteriormente as duas grandes guerras mundiais pela partilha do mundo, levou ao nazi-fascismo e a rupturas revolucionárias, com a posterior constituição do campo socialista.
Nas primeiras décadas da revolução burguesa (do final do século XVIII até meados do século XIX), a burguesia liderou as forças que estavam em oposição ao feudalismo, como a plebe urbana e o campesinato, abrindo caminho para seu próprio domínio; depois dos vagalhões que sacudiram a Europa em 1848 e, particularmente, da Comuna de Paris, de 1871, abre-se uma etapa nova, a das revoluções proletárias, alterando o padrão de aliança de classes. Agora, a burguesia – com seu poder já consolidado – é a campeã das classes proprietárias, unindo-se à aristocracia latifundiária e aos demais segmentos das classes dominantes contra os trabalhadores que acenam, desde então, com um programa socialista alternativo ao capitalismo triunfante.
Do ponto de vista da organização política, constituem-se organizações amplas de combate, ainda ecléticas (as Internacionais), até a constituição dos primeiros Partidos Operários Socialdemocratas, partidos do proletariado de velho tipo, reféns de uma visão sindical e parlamentar e, em muitos aspectos, ainda movimentista. Há intenso debate teórico-programático. Quanto ao tema Partido, a centralidade foi ocupada pelo combate às tendências não-proletárias e, em particular, contra o espontaneísmo, ponto de partida assumido por Lênin, que dará ensejo aos partidos de novo tipo, na fase seguinte.
A segunda grande fase histórica pode ser vista como a resposta da burguesia e dos demais setores das classes dominantes à época de transição do papel progressista da revolução burguesa à época do capital financeiro (1871 a 1914), período que já pode ser caracterizado como a época das revoluções proletárias. Já consagra o imperialismo, como outra etapa do capitalismo, com sentido reacionário. A revolução proletária entrava na ordem do dia, irrompendo pelo mundo. Atuou aí a genialidade de Lênin em teorizar sobre a nova época, renovando a resposta estratégica da luta de classes.
Essa fase deu ensejo a um ciclo de experiências socialistas iniciais durante o século XX, cuja marca mais nítida foi a Revolução Russa de 1917, que durou até quase o final do século, durante cerca de 60 anos. Foram experiências práticas com base na experiência soviética dirigida por Lênin e, depois, por Stálin, e seu modelo foi amplamente difundido e acatado, baseado na possibilidade de vitória da revolução em países com baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas, vistos como os elos débeis da cadeia imperialista mundial. Toma forte impulso o movimento revolucionário de libertação nacional frente à política colonial e neocolonial do imperialismo.
Aí se podem ver dois subperíodos distintos. Um, de ascenso, vai de 1917 ao fim da II Guerra Mundial (1945), com a formação do campo socialista como um sistema de Estados. Desde o início deste período pensou-se que o processo revolucionário que começara na Rússia se espalharia imediatamente para a Europa. Mas a conjuntura revolucionária refluiu e isso não aconteceu. Mesmo assim, com a crise capitalista dos anos 1930, e com a grande vitória sobre o nazifascismo, com a URSS à frente, a onda socialista obrigou o capitalismo a se reciclar, adotando as políticas de crescimento econômico e bem estar social preconizadas pelo keynesianismo, gerando os 30 “anos de ouro” (1945-75), em que o capitalismo foi regulado, foram adotadas políticas de descolonização e os países dependentes, como o Brasil, conheceram certo grau de desenvolvimento.
O período seguinte é marcado pela crise. Seus marcos podem ser fixados de meados da década de 50 aos anos 1989-91. Em diversas experiências a tentativa de fugir às condições objetivas adotando soluções artificiais – na URSS, com Stálin à frente, imaginava-se já em 1939 que se vivia o período de “construção do comunismo” – demonstrou o insuficiente domínio teórico sobre a realidade do desenvolvimento socialista. As respostas produzidas conduzem a uma tendência revisionista, esdrúxula, proclamando mortos postulados essenciais do marxismo. Há um estancamento do desenvolvimento na URSS e em vários outros países que, apesar de todos os avanços, não conseguem ultrapassar os umbrais de um desenvolvimento médio. O financiamento do Estado torna-se crítico. O problema do desenvolvimento contínuo das forças produtivas é dos principais problemas que a teoria não consegue resolver. São contradições que se acentuam e resultam em um novo período de crise do marxismo. Para muitos é período de apostasia. Para outros, revolucionários consequentes, é entendida como crise da teoria revolucionária, de insuficiente desenvolvimento para dar conta dos novos fenômenos. Este período é fechado pela crise dos países socialistas do Leste Europeu, uma derrota de caráter estratégico, consagrada na imagem da queda do Muro em 1991.
Do ponto de vista da organização política, essa fase deu origem à moderna teoria do partido revolucionário do proletariado, partidos de novo tipo, de unidade ideológica, centralizado e de compromisso militante. Vale a pena registrar que o PC bolchevique, ele mesmo, se constituiu no seio do amplo movimento existente na Rússia naquele tempo, numa relação determinada entre partido e movimento – o fator consciente procurando ligar-se ao movimento espontâneo e dirigi-lo.
O paradigma soviético foi tão poderoso e ativo que se tornou o modelo único de Partido, codificado pela 3ª. Internacional sob o molde do Partido soviético, bolchevique. A centralidade do debate teórico-político quanto ao tema Partido, foi ocupado pelo combate à socialdemocracia e seus partidos de massa, eleitoreiros e com forte aparato sindical. Muitos desses partidos comunistas degeneraram, ao não responderem com acerto às novas realidades, seja onde estavam no poder, seja em países capitalistas mais desenvolvidos da Europa, sendo incapazes de oferecer respostas proletárias e avançadas para a crise do capitalismo em seus próprios países. Outros tiraram lições da experiência e procuram firmar-se persistindo em sua identidade comunista e revolucionária.
Aquele foi um período de extensão da revolução, principalmente pela Ásia, África, e mesmo na América Latina, com o exemplo de Cuba. Foram experiências variadas de revoluções de libertação nacional, que consagraram frentes revolucionárias, no seio das quais o Partido Comunista buscava constituir hegemonia ou alcançar o poder. Alguns desses partidos foram verdadeiramente de massas e com forte identidade nacional, como ocorreu por exemplo na China, no Vietnã ou na Indonésia. Outros foram “fermento” de movimentos revolucionários, como em Portugal ou África do Sul, ou se apresentavam com seu programa próprio em eleições, nos países mais desenvolvidos. Em outras situações, o que é importante, fizeram-se revoluções enquanto movimentos, como foi o caso de Cuba, cuja direção somente após a vitória se cristalizou em um partido comunista. Ainda persistem inúmeros movimentos e frentes de caráter revolucionário (apenas a título de exemplo, sem ser extensivo, em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, na Nicarágua, El Salvador, na Palestina…), muitas vezes movimentos libertação nacional ou democráticos radicais, com ou sem Partido Comunista.
Como se vê, o panorama já havia se tornado mais variado e mesmo disperso. O modelo estratégico de “assalto aos céus”, insurrecional, havia dado lugar a uma miríade de caminhos e formas do movimento revolucionário. Com armas nas mãos ou com projetos eleitorais, esse panorama habita até hoje o mundo, mesmo após a imposição do conservadorismo neoliberal como força hegemônica no mundo pós queda do muro de Berlim.
Os acontecimentos do final da década de 1980 e início dos anos 1990 abrem a terceira grande fase, a atual, que já dura mais de um quarto de século. São anos da derrota estratégica do proletariado com a derrocada da URSS e Leste europeu, e consequentemente de ofensiva da contrarrevolução neoliberal. O capitalismo realmente existente é o império das finanças globalizadas, o diktat da unipolaridade do imperialismo norte-americano. Período em que a derrota estratégica dos trabalhadores permitiu que o grande capital e o imperialismo usem em seu benefício, todas as possibilidades que a ciência e a tecnologia oferecem, reestruturando a produção e a exploração dos trabalhadores a partir do formidável desenvolvimento das forças produtivas, com a precarização das relações de trabalho e o desemprego. Esta é uma época de sentido francamente regressivo, restaurador, em todos os aspectos da vida social e espiritual, que ameaça a civilização, os trabalhadores, os povos e a própria sustentatibilidade do meio ambiente. Sucintamente, é o neoliberalismo, o capitalismo dos dias atuais.
Hoje, poucas décadas depois da queda do Muro de Berlim, esse capitalismo, que havia proclamado vitória e que a própria história chegara ao fim, já não tem programa a oferecer aos povos e nações, a não ser a grosseira mistificação ideologizante, junto ao séquito de barbárie nas relações econômicas e sociais. O “apogeu” neoliberal já passou, embora suas mazelas ainda persistam: hoje mais uma vez volta a se pôr a busca de uma alternativa a esse estado de coisas.
Para o movimento revolucionário é tempo de resistência, recuos, busca de lições, reafirmação dos princípios e ideais socialistas. Em síntese, busca de novos caminhos organizativos que atualizem os princípios leninistas em consonância com as exigências atuais; de outro patamar de luta teórica, tanto de experiências que se mantiveram de pé – destacadamente China, Vietnã, Cuba, Coréia do Norte – quanto por parte de partidos que buscam alcançar o poder político e construir caminhos para o socialismo. Este é um período de acumulação de forças, no qual os instrumentos apropriados para o enfrentamento atual com o capitalismo ainda estão sendo gestados. Período em que o movimento revolucionário busca se organizar, ganhar terreno, acumular forças a fim de superar a interrupção de sua trajetória ascendente e voltar a pôr na ordem do dia uma alternativa socialista. Mais recentemente, sobretudo na América Latina, fala-se abertamente da busca de alternativa socialista, como no caso da Venezuela.
Do ponto de vista da organização política, o período iniciado na passagem dos anos 1980 para os 1990 foi marcado pela dispersão e tentativa de recompor as forças, no espírito da época; o velho, do ponto de vista organizativo do proletariado, estava sendo superado, sem que o novo tivesse podido afirmar-se. A ideologia capitalista propagandeou a falência dos projetos coletivos, da construção do socialismo, pondo ênfase no individualismo, na concorrência e na ganância. Propagandeou-se também, fortemente – principalmente em múltiplos setores ligados à luta dos trabalhadores e dos povos – a superação do paradigma leninista de partido, apregoando-se sua substituição seja pelo chamados novos movimentos, muitas vezes específicos e carentes de um programa global de reordenação da sociedade, seja por organizações partidárias que, no Brasil, tem as características do PT.
Muitos Partidos Comunistas procuram manter sua identidade revolucionária, e conseguem. Outros, entretanto, se perdem e se descaracterizam. Muitos Partidos têm escassa influência em seus países. Outros sucumbem ao paradigma socialdemocrata. Se não é o caso de retroceder aos primórdios – ou seja, não retroceder da exigência, aliás até aumentada, de um Partido de caráter transformador, antagonista, para rupturas políticas, que busque infundir consciência ao movimento revolucionário – novas formas de relação se põem, nas condições atuais, entre partidos e movimentos.
Este é o desafio colocado para os revolucionários que, em todo canto, persistem na defesa dos princípios leninistas de organização partidária como os mais consequentes para a luta pelo socialismo, e que precisam ser adequados às contradições deste período de transição entre uma época de predomínio conservador, neoliberal, que parece encerrar-se, e uma etapa nova da luta revolucionária, que se abre. E que colocam uma questão importante: qual é o partido necessário para a revolução nas condições contemporâneas?
Publicado em 20/3/2007