Primeiro Fascículo, Berlin, Franz Duncker, 1859[N274]

15 de Agosto de 1859

Primeira Edição: Escrito por Engels de 3 a 15 de Agosto de 1859. Publicado no jornal Das Volk, n.º 14 e 16 , de 6 e 20 de Agosto de 1859, respectivamente.
Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Editorial”Avante!”
Tradução: José BARATA-MOURA (Publicado segundo o texto do jornal. Traduzido do alemão).
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo, agosto 2007.
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial “Avante!” – Edições Progresso Lisboa – Moscovo, 1982.
I

Em todos os domínios científicos, desde há muito que os alemães demonstraram que estão ao nível das restantes nações civilizadas e, na maior parte deles, que são superiores. Apenas uma ciência não contava com qualquer nome alemão entre os seus corifeus: a Economia Política. A razão é evidente. A Economia Política é a análise teórica da sociedade burguesa moderna e pressupõe, portanto, condições burguesas desenvolvidas, condições que, na Alemanha, desde as guerras da Reforma e dos Camponeses[N275] e, sobretudo, desde a Guerra dos Trinta Anos[N276], não se puderam estabelecer durante séculos. A separação da Holanda do Império[N277] afastou a Alemanha do comércio mundial e reduziu de antemão o seu desenvolvimento industrial às proporções mais mesquinhas; e enquanto os alemães recuperavam tão penosa e lentamente das devastações das guerras civis, enquanto empregavam toda a sua energia cívica — que nunca foi muito grande — na luta estéril contra as barreiras alfandegárias e os regulamentos comerciais loucos que cada príncipe em formato reduzido e cada pequeno barão do Império impunham à indústria dos seus súbditos, enquanto as cidades do Império entravam na decadência dos grémios e do patriciado —, enquanto tudo isto se passava, a Holanda, a Inglaterra e a França conquistavam os primeiros lugares no comércio mundial, estabeleciam colónia atrás de colónia e desenvolviam a indústria manufactureira ao mais alto grau, até que, finalmente, a Inglaterra, por meio do vapor, que só então deu valor às suas jazidas de carvão e de ferro, acedeu ao cume do desenvolvimento burguês moderno. Enquanto, porém, foi preciso conduzir uma luta contra uns restos tão ridiculamente antiquados da Idade Média como aqueles que entravaram até 1830 o desenvolvimento burguês material da Alemanha, nenhuma Economia Política alemã foi possível. Somente com o estabelecimento do Zollverein[N165] ficaram os alemães em situação de poderem quando muito apenas entender a Economia Política. A partir desse tempo, começou de facto a importação da Economia inglesa e francesa para proveito da burguesia alemã. Em breve os círculos científicos e a burocracia se apoderaram da matéria importada e trabalharam-na de uma maneira não muito digna do crédito do “espírito alemão”. Da misturada de cavaleiros de indústria literatos, de comerciantes, pedantes e burocratas, gerou-se, então, uma literatura económica alemã que, quanto a sensaboria, falta de profundidade e de ideias, prolixidade e plágio, só tem par no romance alemão. Entre as pessoas com objectivos práticos, desenvolveu-se primeiro a escola proteccionista dos industriais, cuja autoridade, List, foi ainda o melhor que a literatura económica burguesa alemã produziu, apesar de toda a sua obra gloriosa ter sido copiada do francês Ferrier, criador teórico do sistema continental[N15]. Face a esta orientação, formou-se nos anos quarenta a escola do livre-cambismo dos comerciantes nas províncias do Báltico, que papaguearam os argumentos dos free-traders[N148] ingleses com uma fé pueril, mas interessada. Por fim, entre os pedantes e burocratas que tiveram de ocupar-se do lado teórico da disciplina, havia áridos coleccionadores de herbários sem crítica, como o senhor Rau, especuladores que a armar ao esperto traduziam as proposições estrangeiras num Hegelíano mal digerido, como o senhor Stein, ou respigadores beletriantes no domínio “histórico-cultural”, como o senhor Riehl. O que acabou por sair daqui foi a Cameralística[N278], um puré de toda a espécie de coisas estranhas, regado com um molho económico ecléctico, do tipo do que um licenciado em direito precisa de saber para o exame de Estado.

Enquanto, deste modo, a burguesia, o pedantismo académico e a burocracia, na Alemanha, ainda tinham dificuldade em aprender de cor e em clarificar em alguma medida os primeiros elementos da economia anglo-francesa como dogmas intangíveis, fazia a sua aparição o partido proletário alemão. Toda a sua existência teórica resultava do estudo da Economia Política e do instante do seu aparecimento data também a Economia alemã científica, autónoma. Esta Economia alemã repousa essencialmente sobre a concepção materialista da história, cujos traços fundamentais são expostos brevemente no prefácio da obra atrás citada(1*). Quanto ao principal, este prefácio foi já reproduzido em Das Volk[N279], pelo que para ele remetemos. Não apenas para a Economia, mas para todas as ciências históricas (e são históricas todas as ciências que não são ciências da natureza), foi uma descoberta revolucionária esta proposição: “O modo de produção da vida material é que condiciona o processo da vida social, política e espiritual”; todas as relações sociais e do Estado, todos os sistemas religiosos e jurídicos, todas as visões teóricas, que emergem na história, só podem, então, ser compreendidas se as condições de vida materiais da época correspondente forem compreendidas e se as primeiras forem derivadas destas condições materiais. “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que determina a sua consciência.” A proposição é tão simples que teria de ser evidente para quem não esteja preso nas malhas do logro idealista. A coisa tem, porém, as mais altas consequências revolucionárias, não apenas para a teoria, mas também para a prática: “Numa certa etapa do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é apenas uma expressão jurídica delas,com as relações de propriedade no seio das quais se tinham até aí movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se em grilhões das mesmas. Ocorre então uma época de revolução social. Com a transformação do fundamento económico revoluciona-se, mais devagar ou mais depressa, toda a imensa superstrutura. […] As relações de produção burguesas são a última forma antagónica do processo social da produção, antagónica não no sentido de um antagonismo individual, mas de um antagonismo que decorre das condições sociais de vida dos indivíduos; mas as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para a resolução deste antagonismo.”(2*) A perspectiva de uma poderosa revolução, da revolução mais poderosa de todos os tempos, abre-se, portanto, perante nós, desde logo, com a prossecução da nossa tese materialista e com a sua aplicação ao presente.

Considerando, porém, as coisas mais de perto, verifica-se logo também que a proposição de aparência tão simples como a de que a consciência dos homens depende do seu ser e não inversamente contunde directamente, logo nas suas primeiras consequências, todo o idealismo, mesmo o mais dissimulado. Todas as visões tradicionais e habituais acerca de tudo o que é histórico são por ela negadas. Todo o modo tradicional do raciocínio político cai por terra; toda a patriótica nobreza de alma se levanta indignada contra uma concepção tão desprovida de carácter. A nova maneira de ver choca, portanto, necessariamente, não apenas os representantes da burguesia, mas também a massa dos socialistas franceses que querem levantar o mundo dos gonzos com a fórmula mágica liberte, égalité, fraternité(3*). Causou, porém, o mais consumado furor entre os vociferadores democratas vulgares alemães. Apesar disso, procuraram de preferência explorar as novas ideias, plagiando-as, embora com rara incompreensão.

O desenvolvimento da concepção materialista, mesmo sobre um único exemplo histórico, era um trabalho científico que teria exigido um estudo tranquilo durante anos, pois é evidente que, nesta matéria, nada se pode fazer com simples frases, que só um material histórico em massa, criticamente considerado e completamente dominado, pode habilitar para a solução de uma tal tarefa. A revolução de Fevereiro lançou o nosso partido na cena política e tornou-lhe, assim, impossível a prossecução de fins puramente científicos. Apesar disso, esta visão fundamental atravessa como fio condutor todas as produções literárias do partido. Em todas elas, em cada caso sempre se prova como a acção todas as vezes brotou de impulsos materiais directos, e não das frases que os acompanhavam e como, pelo contrário, as frases políticas e jurídicas saíram dos impulsos materiais tal como a acção política e os seus resultados.

Quando, depois da derrota da revolução de 1848/1849, houve um momento em que a acção sobre a Alemanha a partir do estrangeiro se tornava cada vez mais impossível, o nosso partido abandonou o terreno das disputas de emigração — pois essa era a única acção possível — à democracia vulgar. Enquanto esta se agitava à saciedade, andando hoje à pancada para amanhã confraternizar e depois de amanhã, novamente, lavar toda a roupa suja diante de toda a gente, enquanto ela ia por toda a América pedir esmola para, logo de seguida, armar um novo escândalo acerca da repartição dos tostões apanhados — o nosso partido ficou contente por, de novo, encontrar alguma calma para estudar. Tinha a grande vantagem de ter uma nova visão científica como base teórica, cuja elaboração lhe dava suficientemente que fazer; logo por isso nunca podia descer tão baixo como os “grandes homens” da emigração.

O primeiro fruto destes estudos é o livro que temos diante de nós.

II

Num escrito como este não se pode tratar de uma mera critica desultória de capítulos isolados da Economia, do tratamento separado desta ou daquela questão económica polémica. Ele visa antes, desde logo, uma visão de conjunto sistemática de todo o complexo da ciência económica, um desenvolvimento coerente das leis da produção burguesa e da troca burguesa. Como os economistas não são mais do que os intérpretes e os apologistas destas leis, este desenvolvimento é, ao mesmo tempo, a crítica de toda a literatura económica.

Desde a morte de Hegel quase nenhuma tentativa foi feita para desenvolver uma ciência no seu próprio encadeamento interno. Da dialéctica do mestre, a escola hegeliana oficial tinha-se apropriado apenas da manipulação dos artifícios mais simples, que aplicava a toda e qualquer coisa e, frequentemente ainda, com uma ridícula falta de jeito. Todo o legado de Hegel se limitava, para ela, a um puro chavão, com a ajuda do qual cada tema era construído de uma forma apropriada, e a um índice de palavras e de maneiras de dizer que não tinham qualquer outro fim do que estarem presentes no momento certo em que as ideias e os conhecimentos positivos faltassem. Aconteceu, assim, que, tal como um professor de Bona disse, estes hegelianos não percebiam nada de nada, mas podiam escrever sobre tudo. E certamente assim era. No entanto, estes senhores, apesar da sua suficiência, tinham, contudo, uma tal consciência da sua debilidade que se mantinham o mais possível afastados das grandes tarefas; a velha e antiquada ciência conservava o seu terreno, em virtude da sua superioridade em saber positivo; e só quando Feuerbach despediu o conceito especulativo é que a hegelianice se foi gradualmente apagando e pareceu que o império da velha metafísica com as suas categorias fixas tinha começado de novo na ciência.

A coisa tinha o seu fundamento natural. Ao regime dos Diádocos[N280] de Hegel, que se tinha perdido em pura fraseologia, seguia-se naturalmente uma época em que o conteúdo positivo da ciência prevalecia de novo sobre o seu lado formal. A Alemanha, porém, lançava-se também ao mesmo tempo com uma energia deveras extraordinária para as ciências da natureza, correspondendo ao poderoso desenvolvimento burguês desde 1848; e com o tornar-se moda destas ciências, em que a tendência especulativa nunca tinha alcançado qualquer valor significativo, a velha maneira metafísica de pensar, inclusive a banalidade wollfiana mais extrema, propagou-se de novo. Hegel tinha desaparecido, desenvolvera-se o novo materialismo das ciências da natureza que, teoricamente, em quase nada se distingue do do século XVIII e que, na maioria dos casos, só tem a vantagem de um material científico-natural mais rico, designadamente químico e fisiológico. Reproduzido até à mais extrema banalidade encontramos o tacanho modo de pensar filisteu do período pré-kantiano de Büchner e de Vogt, e mesmo de Moleschott, que jura por Feuerbach e a cada instante se perde, do modo mais divertido, entre as categorias mais simples. A pileca ancilosada do entendimento quotidiano burguês estaca naturalmente embaraçada perante o fosso que separa a essência do fenómeno, a causa do efeito; mas, quando se vai à caça a cavalo com galgos, no terreno muito acidentado do pensamento abstracto, precisamente, de modo algum, se pode montar uma pileca.

Havia, portanto, aqui uma outra questão para resolver, que não tinha nada a ver com a Economia Política em si. Como tratar da ciência? De um lado, encontrava-se a dialéctica de Hegel, na forma “especulativa”, completamente abstracta, em que Hegel a tinha deixado; do outro lado, o método ordinário, essencialmente metafísico-wollfiano, agora novamente na moda, segundo o qual os economistas burgueses tinham escrito os seus grossos livros falhos de coerência. Este último tinha sido de tal modo teoricamente aniquilado por Kant e, sobretudo, por Hegel, que só a inércia e a falta de um outro método simples puderam tornar possível a sua persistência prática. Por outro lado, na sua forma presente, o método de Hegel era absolutamente inutilizável. Ele era essencialmente idealista, e aqui tratava-se de desenvolver uma visão do mundo que era mais materialista do que todas as anteriores. Ele partia do pensamento puro, e aqui devia partir-se dos factos mais obstinados. Um método que, segundo o seu próprio testemunho, “de nada através de nada chegava a nada”[N281], não estava, nesta [sua] forma, de modo algum, no lugar [certo]. Apesar disso, de entre todo o material lógico actual, era o único fragmento a que ao menos se podia ligar. Não tinha sido criticado, não tinha sido superado; nenhum dos adversários do grande dialéctico tinha podido abrir uma brecha no seu glorioso edifício; tinha desaparecido, porque a escola de Hegel não tinha sabido agarrá-lo. Antes do mais, tratava-se, portanto, de submeter o método de Hegel a uma crítica eficaz.

O que distinguia o modo de pensar de Hegel do de todos os outros filósofos era o enorme sentido histórico que lhe estava subjacente. Por abstracta e idealista que fosse a forma, o desenvolvimento do seu pensamento não deixava de ir sempre em paralelo com o desenvolvimento da história universal, e esta última, propriamente, não deverá ser senão a prova do primeiro. Ainda que, por este facto, a relação correcta tenha sido também invertida e posta de pernas para o ar, o seu conteúdo real penetrou, contudo, por todo o lado, na filosofia; tanto mais que Hegel se diferenciava dos seus discípulos em que não se gabava, como eles, da sua ignorância, mas era uma das cabeças mais sábias de todos os tempos. Foi ele o primeiro a procurar mostrar um desenvolvimento, um encadeamento interno, na história e, por estranha que agora muita coisa na sua filosofia da história nos possa parecer, a grandiosidade da própria visão fundamental é ainda hoje digna de admiração, quando se lhe comparam os seus predecessores ou mesmo aqueles que depois dele se permitiram reflexões universais sobre a história. Na Fenomenologia, na Estética, na História da Filosofia, por toda a parte perpassa esta grandiosa concepção da história e, por toda a parte, a matéria é tratada historicamente, numa conexão determinada, ainda que também abstractamente distorcida, com a história.

Esta concepção da história que fez época foi o pressuposto teórico directo da nova visão materialista e, já por este facto, fornecia também um ponto de partida para o método lógico. Se esta dialéctica desaparecida, a partir da posição do “pensamento puro”, tinha conduzido já a semelhantes resultados, se, além disso, tinha acabado, como que a brincar, com toda a lógica e a metafísica anteriores, tinha em todo o caso de haver nela mais do que sofística e bizantinice. Mas a crítica deste método, perante a qual toda a filosofia oficial tinha recuado e recua ainda, não era coisa de pouca monta.

Marx era, e é, o único que podia entregar-se ao trabalho de tirar da casca da lógica hegeliana o núcleo que encerra as descobertas reais de Hegel neste domínio e de restabelecer o método dialéctico, despido das suas roupagens idealistas, na forma simples em que ele se torna a única forma correcta de desenvolvimento do pensamento. Consideramos a elaboração do método que está na base da crítica de Marx à Economia Política como um resultado que, pelo seu significado, em quase nada é inferior à visão materialista fundamental.

Mesmo depois de adquirido o método, a crítica da Economia podia ainda ser abordada de duas maneiras: historicamente ou logicamente. Como na história, tal como no seu reflexo literário, o desenvolvimento, a traços largos, progride das relações mais simples para as mais complicadas, o desenvolvimento histórico-literário da Economia Política fornecia um fio condutor natural a que a crítica se podia ligar e, a traços largos, as categorias económicas apareceriam na mesma ordem do que o desenvolvimento lógico. Esta forma tem aparentemente a vantagem de uma maior clareza, pois, assim, segue-se o desenvolvimento real; de facto, porém, no máximo tornar-se-ia apenas mais popular. A história procede frequentemente por saltos e em ziguezague e, se houvesse que segui-la ao mesmo tempo por toda a parte, teria não apenas de recolher muito material de pouca importância, como também o curso do pensamento teria frequentemente que ser interrompido; além disso, não se poderia escrever a história da economia sem a da sociedade burguesa e, deste modo, o trabalho tornar-se-ia infindável, úma vez que faltam os trabalhos preparatórios. Portanto, o modo lógico de tratamento era o único que estava no seu lugar. Este [modo], porém, não é de facto senão o histórico, despido apenas da forma histórica e das casualidades perturbadoras. Por onde esta história começa, por aí tem de começar igualmente o curso do pensamento, e o seu avanço ulterior não será mais do que o reflexo, numa forma abstracta e teoricamente consequente, do decurso histórico; um reflexo corrigido, mas corrigido segundo leis que o próprio decurso histórico real fornece, na medida em que cada momento pode ser considerado no ponto de desenvolvimento da sua plena maturidade, da sua forma clássica.

Com este método, partimos da primeira e mais simples relação que historicamente, facticamente, se nos apresenta — neste caso, portanto, da primeira relação económica com que deparamos. Analisamos esta relação. Pelo facto de que é uma relação, acontece ja que tem dois lados que se relacionam um com o outro. Cada um destes lados é considerado por si; decorre daí o modo do seu relacionamento mútuo, a sua acção recíproca. Dar-se-ão contradições que reclamam uma solução. Como, porém, não consideramos aqui um processo de pensamento abstracto, que se passa apenas na nossa cabeça, mas um processo real, que se passou realmente ou ainda se passa num tempo qualquer, estas contradições desenvolveram-se na prática e verosimilmente encontraram [aí] a sua solução. Seguiremos o modo dessa solução e verificaremos que foi causada pela produção de uma nova relação, cujos dois lados contrapostos teremos doravante que desenvolver, etc.

A Ecoftomia Política começa com a mercadoria, com o momento em que produtos são trocados por outros, quer por indivíduos quer por comunidades naturais. O produto que entra na troca é mercadoria. Ele só é, porém, mercadoria porque à coisa, ao produto, se liga uma relação entre duas pessoas ou comunidades, a relação entre o produtor e o consumidor, que aqui não mais se encontram unidos na mesma pessoa. Temos aqui, desde logo, um exemplo de um facto peculiar que perpassa toda a Economia e estabeleceu uma lamentável confusão na cabeça dos economistas burgueses: a Ecomonia não trata de coisas, mas de relações entre pessoas e, em última instância, entre classes; estas relações estão, porém, sempre ligadas a coisas e aparecem como coisas. Esta conexão que, em casos isolados, este ou aquele economista, sem dúvida vislumbrou, descobriu-a Marx pela primeira vez no seu valor para toda a Economia e, por esse facto, tornou as questões mais difíceis de tal modo simples e claras que agora mesmo os economistas burgueses as poderão compreender.

Se considerarmos agora a mercadoria segundo os seus vários aspectos e, designadamente, a mercadoria tal como se desenvolveu completamente, e não tal como ela só penosamente se desenvolve no comércio de troca natural de duas comunidades primitivas, ela apresenta-se-nos sob os dois pontos de vista de valor de uso e de valor de troca; e entramos aqui, de pronto, no domínio do debate económico. Quem quiser ter um exemplo flagrante de como o método dialéctico alemão, no seu estádio actual de formação, é superior ao antigo [método] metafísico, chão e politiqueiro, pelo menos tanto como os caminhos-de-ferro o são relativamente aos meios de transporte da Idade Média, leia, em Adam Smith ou em qualquer outro economista oficial de nomeada, que suplícios o valor de troca e o valor de uso causaram a estes senhores, como se torna para eles difícil distingui-los ordenadamente e apreender cada um deles na sua própria determinatez [Bestimmtheit], e faça a comparação com o desenvolvimento simples e claro de Marx.

Ora, uma vez desenvolvidos o valor de uso e o valor de troca, a mercadoria é apresentada como unidade imediata de ambos, tal como entra no processo de troca. Que contradições é que aqui se dão pode ler-se nas páginas 20-21(4*). Observamos apenas que estas contradições não têm só um interesse teórico, abstracto, mas que reflectem, ao mesmo tempo, as dificuldades provenientes da natureza da relação de troca imediata, do comércio de troca simples, as impossibilidades a que necessariamente chega esta primeira forma grosseira de troca. A solução destas impossibilidades encontra-se no facto de a propriedade de representar o valor de troca de todas as outras mercadorias ser transposta para uma mercadoria especial — o dinheiro. O dinheiro, ou a circulação simples, é, então, desenvolvido no segundo capítulo e, designadamente: 1. o dinheiro como medida dos valores, pelo que, então, o valor medido em dinheiro, o preço, recebe a sua determinação mais aproximada; 2. como meio de circulação, e 3. como unidade de ambas as determinações como dinheiro real, como representante de toda a riqueza material burguesa. Com isto termina o desenvolvimento do primeiro fascículo, reservando-se o segundo para a passagem do dinheiro a capital.

Vê-se como com este método o desenvolvimento lógico não precisa de se manter no domínio puramente abstracto. Pelo contrário, ele requer a ilustração histórica, o contacto contínuo com a realidade. Estes elementos de referência são inseridos, portanto, também com grande diversidade e, designadamente, tanto as alusões ao decurso histórico real em diferentes estádios do desenvolvimento social como à literatura económica, em que, desde o princípio, se procura a elaboração clara das determinações das relações económicas. A crítica dos modos singulares mais ou menos unilaterais ou confusos de conceber [a matéria], no essencial, está já dada, então, no próprio desenvolvimento lógico e pode ser brevemente exposta.

Num terceiro artigo, entraremos no conteúdo económico do próprio livro[N274].

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Notas de rodapé:
(1*) Ver o presente tomo, pp. 529-533. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(2*) Ver o presente tomo, pp. 530-531. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(3*) Em francês no texto: liberdade, igualdade, fraternidade. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(4*) Ver Karl Marx, Para a Crítica da Economia Política. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
Notas de Fim de Tomo:
[N5] Diádocos: generais de Alexandre Magno que, após a sua morte, iniciaram uma aguda luta entre si pela conquista do poder. No decurso desta luta (fim do século IV e início do século III antes da nossa era) a monarquia de Alexandre, que constituía em si mesma uma união militar-administrativa sem solidez, dividiu-se numa série de Estados separados. (retornar ao texto)
[N15] Sistema continental ou bloqueio continental: proibição, imposta em 1806 por Napoleão I aos países do continente europeu, de comerciarem com a Inglaterra. O bloqueio continental caiu após a derrota de Napoleão na Rússia. (retornar ao texto)
[N148] Free-traders (livre-cambistas): partidários da liberdade de comércio e da não intervenção do Estado na vida económica. Nos anos 40-50 do século XIX os livre-cambistas constituíram um agrupamento político à parte, que posteriormente entrou para o Partido Liberal. (retornar ao texto)
[N165] Zollverein (União Aduaneira), fundada em 1834 sob os auspícios da Prússia. Agrupava quase todos os Estados alemães; estabelecendo uma fronteira alfandegária comum, facilitou a futura unificação política da Alemanha. (retornar ao texto)
[N274] Este artigo de Engels é uma recensão do livro de K. Marx Para a Crítica da Economia Política. Engels caracteriza-o como eminente conquista científica do partido proletário e importante etapa da elaboração da concepção científica proletária do mundo. A recensão ficou por acabar. Publicaram-se apenas as duas primeiras partes. A terceira parte, na qual Engels se propunha fazer uma análise do conteúdo económico do livro, não apareceu impressa devido à suspensão do jornal; o manuscrito não foi encontrado. (retornar ao texto)
[N275] Reforma: vasto movimento contra a Igreja Católica que conquistou muitos países europeus no século XVI. Na maioria dos países o movimento da Reforma foi acompanhado por grandes batalhas de classe; a guerra camponesa de 1524-1525 na Alemanha decorreu sob a bandeira ideológica da Reforma. (retornar ao texto)
[N276] Guerra dos Trinta Anos (1618-1648): guerra europeia geral suscitada pela luta entre os protestantes e os católicos. A Alemanha tornou-se o campo principal desta luta e foi objecto da pilhagem militar e das pretensões de conquista dos participantes na guerra. (retornar ao texto)
[N277] Entre 1477 e 1555 a Holanda fez parte do Sacro Império Romano-Germânico; depois da dissolução deste caiu sob o domínio da Espanha. Em resultado da revolução burguesa do século XVI a Holanda libertou-se do domínio espanhol e tornou-se uma república burguesa independente. (retornar ao texto)
[N278] Cameralística: sistema de disciplinas administrativas, financeiras, económicas e outras ensinadas nas universidades medievais, e mais tarde também nas universidades burguesas, de vários países da Europa. (retornar ao texto) (retornar ao texto)
[N279] Das Volk (O Povo): jornal publicado em língua alemã em Londres de 7 de Maio a 20 de Agosto de 1859 com a participação directa de Marx; no início de Julho tornou-se de facto seu redactor. (retornar ao texto)
[N280] Aqui, alusão irónica aos hegelianos de direita que, nos anos 30-40 do século XIX, ocupavam muitas cátedras em universidades alemãs e que utilizavam a sua posição para atacar os representantes de tendências mais radicais em filosofia. Sobre os diádocos ver a nota 5. (retornar ao texto)
[N281] Ver Wissenschaft der Logik, Teill, Abt. 2 (Ciência da Lógica, de Hegel, primeira parte, secção 2). (retornar ao texto)