Marx, no conjunto de sua obra, empregou o termo classe de maneiras diversas. Essas diferenças estão ligadas aos diferentes níveis de abstração em que se colocavam suas análises da sociedade — conjunturas, formações econômico-sociais ou modos de produção.

A ideia de uma sociedade exclusivamente polarizada entre duas únicas classes fundamentais — por exemplo, operários e burgueses — vincula-se com um determinado nível de abstração que é o de Modo de Produção; no caso, o capitalista. Mas os modos de produção puros não existem. O que existem são formações econômicas e sociais concretas que se atualizam nas diversas conjunturas. Nas sociedades reais — concretas — convivem diversas relações de produção, embora exista sempre a predominância de uma sobre as outras. É esta supremacia que nos permite distinguir uma sociedade em escravista, feudal, capitalista e socialista. Por isso, numa sociedade concreta, historicamente determinada, além das duas classes fundamentais polares existem outras — intermediárias ou de transição. E mesmo as classes fundamentais não formam um bloco monolítico. Esta compreensão é fundamental para a construção de uma tática e de uma estratégia revolucionárias adequadas a cada momento histórico.

O não entendimento dessa importante lição deixada por Marx e Lênin tem levado algumas organizações de esquerda a adotarem políticas sectárias e obreiristas. O próprio movimento comunista internacional foi vítima desse desvio esquerdista, pelo qual a história lhe cobrou um pesado tributo.

Vejamos como Marx tratou o problema das classes sociais na passagem inconclusa de O Capital: “Os proprietários de simples força de trabalho, os proprietários de capital e os proprietários de terras, cujas respectivas fontes de renda são o salário, o lucro e a renda da terra, quer dizer, os operários assalariados, os capitalistas e os proprietários de terras formam as três grandes classes na sociedade moderna baseada no regime capitalista de produção. É na Inglaterra, indiscutivelmente, que se encontra mais desenvolvida e na forma mais clássica a sociedade moderna, em sua estruturação econômica. Contudo, nem aqui se apresenta em toda a sua pureza esta divisão da sociedade em classes. Também na sociedade inglesa existem fases intermediárias e de transição que obscurecem em todas as partes (…) as linhas divisórias”. Notemos que nem na Inglaterra do século XIX a distinção de classe se apresenta “em toda a sua pureza”. O ponto de partida de Marx é, na verdade, o ponto de chegada dos economistas burgueses, como Adam Smith e Ricardo.

Afirmou corretamente Nicolai Bukharin: “Quando nós analisamos um ‘tipo abstrato’ de sociedade, isto é, uma forma social qualquer pura, nós nos preocupamos somente, ou quase somente, com as classes fundamentais. Ao contrário, quando vamos observar no seu movimento a realidade concreta, então é natural termos de contar com toda a miscelânea dos tipos das relações sociais e econômicas”.

Nas obras históricas de Marx e Engels, que tiveram como objeto de análise as diversas conjunturas abertas com a revolução de 1848 na França e na Alemanha, apareceram os termos frações de classe, classe de transição etc. Dentro das classes dominantes eles distinguiram uma burguesia industrial, uma burguesia bancária, uma burguesia comercial, uma burguesia agrária e os latifundiários. Eles reconhecem a existência de uma pequena burguesia urbana e uma pequena burguesia rural. Mesmo no proletariado eles sentiram a necessidade de fazer algumas distinções como: o lumpemproletariado, a aristocracia operária etc. 

Mas o que são as classes sociais para o marxismo?

A principal definição de classe no interior do marxismo foi-nos dada por Lênin. Está num único parágrafo de um texto que trata da importância do trabalho voluntário no socialismo — os sábados comunistas — intitulado Uma grande iniciativa. Ali, ele afirma: “Chamam-se classes a grandes grupos de pessoas que se diferenciam entre si pelo lugar que ocupam num sistema de produção social historicamente determinado, pela relação (…) com os meios de produção, pelo seu papel na organização social do trabalho e (…) pelo modo de obtenção e pelas dimensões da parte de riqueza social de que dispõem. As classes são grupos de pessoas, um dos quais pode apropriar-se do trabalho do outro graças ao fato de ocupar um lugar diferente num regime determinado da economia social”.

Para ele – como para Marx e Engels –, as classes deveriam ser entendidas como algo historicamente determinado — não existiram e nem existirão sempre. Elas estariam ligadas a determinadas fases do desenvolvimento da produção social. Cada modo de produção produz e reproduz suas próprias classes fundamentais e/ou dá novas determinações às classes que provêm dos modos de produção precedentes.

Classes e frações de classes

Marx chamou de fração de classe a essas divisões no interior da burguesia. O capitalista industrial é o que extrai e se apropria da mais-valia, mas ele precisa de outros capitalistas, como o comerciante e o banqueiro — estes o ajudam a realizar a mais-valia, ou seja, a tornam possível. A repartição da mais-valia é uma necessidade do sistema visando à sua manutenção e ampliação. Ao contrário dos latifundiários feudais, os banqueiros e os comerciantes não eram classes parasitárias, no sentido de serem inúteis para a produção e reprodução do capital. A existência de frações de classe se expressa na existência de interesses econômico-corporativos diferentes.

Um exemplo: embora a burguesia comercial não extraia diretamente a mais-valia dos operários, como ocorre com a burguesia industrial, não deixa de compor com esta uma única e mesma classe — a classe burguesa. O interesse fundamental que une as diferentes frações da burguesia é a manutenção do sistema capitalista. Mas, em conjunturas nas quais este interesse não está ameaçado, elas podem se confrontar em relação às políticas econômicas a serem adotadas pelos governos capitalistas, se organizar em entidades corporativas e partidos distintos. Essas desavenças não raramente desembocaram em conflitos armados (golpes de Estado, guerra civil e revoluções).

Se existe um consenso sobre a existência de frações no interior da burguesia as coisas não se dão da mesma forma quando analisamos o proletariado. Por longos anos predominou uma visão monolítica sobre o que fosse o proletariado — quer dos que o encaravam de maneira restrita (proletariado = operário fabril), quer dos que o encaravam de maneira ampliada (proletariado = assalariados). Poucos foram aqueles que problematizaram a existência de frações no interior do próprio proletariado, embora isto pudesse ser sustentado a partir das indicações de Marx, Engels e Lênin.

O que é o proletariado?

A dificuldade de construir um conceito marxista de proletariado, entre outras coisas, se deve ao fato de o próprio Marx jamais ter definido de maneira clara, inequívoca, o que seria o proletariado moderno. Engels na famosa nota à edição inglesa de 1888 do Manifesto do Partido Comunista escreve simplesmente: “Por proletariado entendemos a classe dos trabalhadores assalariados modernos que, não tendo meios próprios de produção, são obrigados a vender a sua força de trabalho para sobreviverem”. Aqui estamos diante de uma definição ampliada do que seja o proletariado moderno. Esta afirmação tem sido o centro de acalorada polêmica entre os marxistas. Uma polêmica que se estende por bem mais de um século. A pergunta que fica é: Todos os assalariados poderiam ser considerados proletários?

Acredito que a resposta que pode ser extraída do conjunto das obras de Marx, Engels e Lênin só poderia ser negativa, pois, segundo elas, não comporiam o proletariado os assalariados que realizem serviços pessoais (empregados domésticos ou avulsos) ou os que estejam ligados às superestruturas jurídico-políticas e ideológicas (funcionários públicos civis e militares, padres, intelectuais tradicionais etc). Não comporiam também o proletariado os assalariados que exerçam funções de coordenação e controle do trabalho, como gerentes e administradores de empresas. Estes não cumpririam apenas funções técnicas, mas também uma função relacionada a reproduzir as relações de dominação e exploração dentro das empresas. Representariam, assim, os interesses do capital em relação ao trabalho. Eles não comporiam nem a burguesia e nem o proletariado, seriam um grupo social intermediário. É preciso não confundi-los com os trabalhadores técnicos, inclusive alguns engenheiros de produção que exerçam apenas ou predominantemente funções técnicas.

Utilizemos, agora, as indicações de Lênin para definir o proletariado enquanto classe distinta. Segundo aquela definição, podemos afirmar que a classe do proletariado seria composta pelo conjunto dos assalariados vinculados diretamente ao processo de produção e de realização da mais-valia. Portanto, produtivos do ponto de vista do capital. Eles também realizariam um trabalho parcial, subordinado às ordens dos funcionários superiores que controlariam o processo produtivo – ou seja, decidiriam o que, quando e como produzir — sob o comando geral dos capitalistas. O proletariado, enquanto classe, não estaria apenas destituído dos meios de produção e dos produtos de seu trabalho, mas também do controle sobre a produção. É isto que alguns teóricos marxistas chamam de alienação do trabalho. Esta situação os coloca entre os estratos inferiores da sociedade, ou seja, naquilo que se convencionou chamar de “classes populares”. Portanto, o conceito de proletariado vai muito além de operário fabril tradicional, mas não chega a se confundir (ou se fundir) com o conjunto dos trabalhadores assalariados.

Para Marx, se incluiriam na classe do proletariado os comerciários, os bancários, os professores das empresas capitalistas etc. Em outras palavras, todos aqueles assalariados produtivos para o capital. Ele chegou a escrever: “Nos estabelecimentos de ensino (…) os professores, para o empresário do estabelecimento, podem ser meros assalariados; há grande número de tais fábricas de ensino na Inglaterra. Embora eles não sejam trabalhadores produtivos em relação aos alunos, assumem essa qualidade perante o empresariado (…). O ator se relaciona com o público na qualidade de artista, mas perante o empresário é trabalhador produtivo” (MARX, Teoria da Mais-Valia, vol. 1, p. 404).

Sobre os comerciários Marx afirmou: “O trabalho não pago desses empregados, embora não crie mais-valia, permite-lhes apropriar-se de mais-valia, o que para esse capital é a mesma coisa (…). É produtivo, para o capitalista, não por criar mais-valia diretamente, mas por concorrer para diminuir os custos de realização de mais-valia, efetuando trabalho em parte não pago”. (MARX, O Capital, Livro 3, vol. 5, p. 345).

Em outra passagem escreveu: “De um ponto de vista, este operário comercial é um operário assalariado como qualquer outro. Em primeiro lugar, porque seu trabalho é comprado pela variável do comerciante e não pelo dinheiro gasto como renda, o que quer dizer que não se compra simplesmente para o serviço privado de quem o adquire, mas com fins de valorização do capital desembolsado. Em segundo lugar, porque o valor de sua força de trabalho e, portanto, seu salário, se acha determinado, como os demais trabalhos operários assalariados, pelo custo de produção de sua força de trabalho específica e não pelo produto do seu trabalho. Não obstante, entre ele e os operários diretamente pelo capital industrial tem que mediar, necessariamente, a mesma diferença que entre o capital industrial e o capital comercial e a que existe, portanto, entre o capitalista industrial e o comerciante. O comerciante, como mero agente da circulação, não produz valor nem mais-valia (…) razão por que tampouco os operários mercantis dedicados por ele às mesmas funções podem criar diretamente mais-valia para ele” (O Capital, vol. 3, p. 286).

Embora concordemos que a grande maioria dos assalariados compõe uma única e mesma classe (o proletariado), não acreditamos ser possível afirmar que exista uma fusão entre todos esses assalariados, que acarretaria na constituição de uma única ideologia, um único partido e um único projeto societário — de um modelo único de socialismo.

Utilizando livremente uma contribuição teórica do próprio Marx em suas obras histórica, podemos afirmar que a classe dos proletários, como a burguesia, não se compõe enquanto um bloco monolítico, sem fissuras. Ela se divide, e se subdivide, em frações e camadas distintas. Cada uma dessas frações é portadora de ideologia própria e, por conseguinte, de projetos societários e formas de organização políticas também diferenciados. Usamos aqui também uma preciosa indicação de Marx, segundo a qual “entre o empregado do comércio e os trabalhadores diretamente empregados pelo capital industrial deveria se dar a mesma diferenciação que se dá entre o capital industrial e o capital mercantil”.

Se no processo da revolução burguesa a sua fração industrial teve o papel de vanguarda, unificando e às vezes combatendo outras frações de sua própria classe, no processo da revolução socialista caberá à classe operária stricto sensu (manual e diretamente produtiva) o papel de vanguarda. Portanto, o futuro do socialismo não será indiferente em relação a qual fração de classe do proletariado estará à frente do processo revolucionário e de construção do novo Estado socialista.

Nenhuma das frações, ou camadas, do proletariado tem interesse na manutenção indefinida do modo de produção capitalista. Mesmo os assalariados médios que compõem o proletariado, ao contrário do pequeno-burguês, não têm um apego especial à apropriação privada dos meios de produção, visto que não são proprietários. E, justamente por isso, podem se unificar num projeto de transição revolucionária ao socialismo. Mas existe uma forte tendência nos setores médios — assalariados intelectuais — de apostarem nas saídas reformistas e obstaculizarem o próprio processo de transição do socialismo ao comunismo.

A transição para ser bem-sucedida, e não ficar incompleta, deve romper com a burocratização da vida social – eliminando gradualmente o Estado – e a divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, ou seja, não basta a estatização dos meios de produção, é preciso também que sejam revolucionadas as próprias relações de produção. Para os marxistas revolucionários, a estatização não se confunde com socialização.

Mas será que a definição de classe – e de proletariado – apresentada acima nos diz tudo sobre ela? Acredito que não. É justamente dessa outra dimensão, geralmente oculta pelos economicistas e reformistas, que trataremos na próxima parte deste ensaio.

Classe em si e classe para si

Além de todas as características objetivas que apresentamos acima, existe uma outra dimensão na constituição das classes. Esta se relaciona com o problema da subjetividade. A classe social, num sentido pleno, deve ser entendida na sua objetividade e na sua subjetividade. Em seu livro A Sagrada Família, Marx e Engels já sentiam a necessidade de distinguir essas duas dimensões do proletariado enquanto classe distinta. Para isto, utilizaram dois conceitos: classe em si e classe para si. A primeira seria uma condição para a constituição da segunda. Para eles, a classe em si era ainda uma classe num sentido fraco. Afirmaram: “O domínio do capital criou para essa massa uma situação comum, interesses comuns. Assim, pois, essa massa já é uma classe em relação ao capital, mas ainda não é uma classe para si. Na luta (…) essa massa se une, constituindo numa classe em si. Os interesses que defende convertem-se em interesses de classe. Mas a luta de classe contra classe é uma luta política”.

Referindo-se aos camponeses franceses, Marx no seu livro O Dezoito de Brumário de Louis Bonaparte escreve: “Na medida em que milhões de famílias camponesas vivem em condições econômicas que as separam uma das outras e opõem o seu modo de vida, os seus interesses e a sua cultura aos das outras classes da sociedade, estes milhões constituem uma classe. Mas, na medida em que existe entre pequenos camponeses apenas uma ligação local e em que a similitude de seus interesses não cria entre eles comunidade alguma, ligação nacional alguma, nem organização política, nessa medida não constituem uma classe (…), são incapazes de fazer valer seu interesse de classe em seu próprio nome”. A existência dessas duas dimensões do conceito de classe irá impactar na própria compreensão que temos sobre as lutas de classes. 

Classe e luta de classes

No Manifesto do Partido Comunista (1848), Marx e Engels afirmaram: “Até os nossos dias a história da sociedade humana tem sido a história da luta de classes, homens livres e escravos, patrícios e plebeus, barões e servos, numa palavra, opressores e oprimidos em constante oposição”.

Ao fazerem tal afirmação, Marx e Engels não estavam criando nada de teoricamente novo. O seu ponto de partida era o ponto de chegada de todo o pensamento mais avançado produzido pelos intelectuais burgueses nos séculos XVIII e XIX.

Marx, numa das cartas endereçada a seu amigo Weydemeyer, escrita em 1852, afirmou: “Não me cabe o mérito de ter descoberto a existência das classes na sociedade moderna ou mesmo a luta entre elas. Muito antes de mim alguns historiadores burgueses tinham exposto o seu desenvolvimento histórico e alguns economistas a anatomia dessas classes. O que fiz de novo foi mostrar: 1º) que a existência das classes está ligada apenas a determinadas fases históricas do desenvolvimento da produção; 2º) que a luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; 3º que a ditadura do proletariado constitui tão-somente a transição para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes”.

Acredito que esta afirmação revela certa modéstia de Marx. Engels, num dos prefácios ao Dezoito de Brumário de Louis Bonaparte, colocou o problema de uma maneira diferente e mais precisa. Afirmou ele: “Marx foi precisamente o primeiro que descobriu a grande lei que rege a marcha da História, lei segundo a qual todas as lutas históricas, quer se desenvolvam no terreno político, no religioso, no filosófico, quer em outro terreno ideológico qualquer, não são, em realidade mais que a expressão, mais ou menos clara, de lutas entre as classes (…). Essa lei tem para a história a mesma importância que a lei da transformação da energia para as ciências naturais”.

As próprias disputas dinásticas na França no século XIX eram a forma pela qual se desenvolvia a luta entre as diversas frações da burguesia pela conquista da hegemonia política dentro do bloco no poder. Escreveu Marx: “Se cada lado desejava levar a cabo a restauração de sua própria casa real contra outra, isto significava apenas que cada um dos dois grandes interesses que dividem a burguesia — o latifúndio e o capital — procurava restaurar a sua própria supremacia e suplantar o outro. Sob os Bourbon, governara a grande propriedade territorial, com seus padres e lacaios; sob os Orleans as altas finanças, a grande indústria, o alto comércio, ou seja, o capital, com séquito de advogados, professores e oradores melífluos. A monarquia legitimista foi apenas a expressão política do domínio hereditário dos senhores de terra, como a Monarquia de Julho fora apenas a expressão política do usurpado domínio dos burgueses arrivistas. O que separava as duas frações, portanto, não era nenhuma questão de princípios, eram suas condições materiais de existência, duas diferentes espécies de propriedade”.

Se, de fato, Marx não descobriu a existência das classes ou a luta entre elas ele fez algo ainda mais revolucionário ao colocar no centro da análise da história a luta entre as classes. Descobriu que a luta de classes, em última instância, é o motor da história. Descobriu que a luta de classes é a forma de ser das próprias classes. Como não há matéria sem movimento, não existem classes sem luta de classes. Embora esta luta nem sempre se dê da mesma maneira. Cada etapa histórica se reveste de um conteúdo e de uma forma diferentes. 

Estágios da luta de classes

Mas, como Marx, Engels e Lênin distinguiram classe em sentido fraco (classe em si) e classe no sentido forte (classe para si), eles também distinguiram os diversos níveis e etapas da luta entre as classes. Numa escala ascendente, eles colocaram no topo a luta política revolucionária. Em muitas passagens de sua obra chegaram mesmo a afirmar que a luta de classes era fundamentalmente uma luta política e que a luta econômico-corporativa ainda não seria propriamente luta de classes.

Lênin, no seu texto Nossas tarefas imediatas, afirmou: “A luta dos operários se converte em luta de classe só quando os representantes avançados da classe operária de um país adquirem consciência de que formam uma classe única e empreendem a luta não contra patrões isolados, mas contra toda a classe capitalista e contra o governo que apoia esta classe. Só quando cada operário se considera membro de toda classe operária, quando vê em sua pequena luta cotidiana contra um patrão ou funcionário uma luta contra toda a burguesia e contra todo o governo, só então sua luta se transforma em luta de classes”.

Em outro artigo reforçou essa opinião: “Os economicistas (…) reconheciam como ‘luta de classes’ a luta por cinco copeques para cada rubro, não querendo ver a existência de uma forma superior, mais desenvolvida, mais nacional, de luta de classes, pela política. Os economicistas admitiam unicamente na luta de classes o que era mais tolerável do ponto de vista da burguesia liberal, recusando-se a irem mais longe que os liberais e rechaçando uma luta de classes mais elevada (…). O marxismo proclama que a luta de classe demanda pleno desenvolvimento e é ‘nacional’ unicamente quando não só abrange a política, mas também dela toma o mais essencial: a organização do poder de Estado.”

Numa carta escrita a Bolte em 1871, Marx assim se expressou: “A tentativa de obrigar, por meio das greves, os capitalistas isolados à redução da jornada de trabalho, em determinada fábrica ou ramo da indústria, é um movimento puramente econômico; ao contrário, o movimento visando a obrigar que se decrete a lei da jornada de oito horas etc. é um movimento político. Assim, pois, dos movimentos por motivos econômicos dos operários separados nasce, em todas as partes, um movimento político, ou seja, um movimento de classe, cujo alvo é que se dê satisfação a seus interesses de forma geral, isto é, de forma que seja compulsória para toda a sociedade”.

Na mesma linha seguiu Bukharin, ao afirmar: “A luta de classes propriamente dita só se desenvolve num determinado grau de evolução da sociedade de classes; noutras fases desta evolução, ela pode aparecer também como gérmen (…) ou como forma oculta ‘latente'”.

É bom lembrarmos também que nem sempre, em todas as conjunturas, a luta entre as duas classes fundamentais tem centralidade nas transformações político-sociais. Por isto Marx afirmou no Prefácio à obra O Dezoito de Brumário de Louis Bonaparte, datado em 23 de junho de 1869: “na Roma antiga a luta de classes se desenvolveu apenas no seio de uma minoria privilegiada, entre ricos livres e pobres livres, e que a grande massa produtiva da população, os escravos, não serviam senão de pedestal passivo a estes protagonistas”.

Esta frase, embora impregnada por certo unilateralismo, acerta ao reconhecer que a contradição entre senhores e escravos não foi a principal durante quase todo o período escravista romano. Contudo, afirmar que não era a contradição principal não significa a mesma coisa que dizer que não era a contradição fundamental. Aqui reside a unilateralidade desta frase de Marx quando tomada isoladamente. As contradições entre as diversas classes e frações dos homens livres na Roma antiga se assentavam sob um pedestal em constante ebulição (a escravatura) e isto formatava e dava o ritmo aos próprios conflitos entre as classes não escravas. Todos os donos de escravos, ou pelo menos sua vanguarda, sabiam muito bem o que tinham sob seus pés.

Situação, origem, posição e interesse de classe

Os verdadeiros interesses de classe estão vinculados à conquista dos seus objetivos histórico-universais. No caso do proletariado, estão ligados à superação da dominação e da exploração capitalista e a conquista do socialismo. Portanto, não se pode confundir interesse econômico-corporativo de parcelas do proletariado com os seus interesses de classe. Muitas vezes eles são contraditórios e em casos extremos podem ser antagônicos.

Cito novamente Bukharin: “É indispensável (…) distinguir os interesses duráveis e gerais e os interesses transitórios. Os interesses ‘passageiros’ podem estar em contradição objetiva com os interesses duráveis (…). É indispensável distinguir, por um lado, os interesses corporativos, os interesses de grupo e, por outro, os interesses gerais de classe (…). Os interesses particulares deste grupo (a aristocracia operária) não coincidem mais com os interesses do conjunto da classe operária: são interesses de grupo e não de classe”.

Para Lênin, romper com os limites dos interesses exclusivamente econômico-corporativos é essencial para que o proletariado possa cumprir seu papel revolucionário de vanguarda política de todos os segmentos sociais interessados na superação do czarismo e depois do próprio capitalismo.

Por fim, algumas breves considerações sobre a diferença entre origem, situação e posição de classe. Origem de classe tem relação com a condição de classe de sua família quando do nascimento e crescimento do indivíduo. Situação de classe é a condição objetiva de classe em que ele vive (classe em si) num momento dado. Posição de classe tem relação com a posição que assume em relação à própria luta entre as classes. O interesse fundamental de classe se vincula a esta última condição.

A situação de classe do operário faz dele uma pessoa com maior possibilidade de assumir uma posição socialista e revolucionária. Ela cria as melhores condições para que nele se constitua um instinto de classe (uma consciência ainda incompleta) que poderá se desenvolver — mais ou menos rapidamente — para uma consciência de classe plena e, portanto, socialista. Por isso é tão importante para Marx e Lênin a incorporação de um maior número de operários dentro de uma organização revolucionária socialista. Isto criaria as condições mais favoráveis para se enfrentar as tendências reformistas e esquerdistas (pequeno-burguesas).

Mas, esse movimento não seria mecânico. A situação de classe não geraria automaticamente consciência de classe. Geralmente, nas sociedades cindidas em classes sociais antagônicas a consciência do proletariado é ainda dominada pela ideologia da classe dominante — a ideologia burguesa. O instinto de classe só pode se transformar em verdadeira consciência de classe (socialista) através da luta política revolucionária sob a direção de um partido revolucionário de vanguarda, o Partido Comunista.

 

* Este ensaio foi escrito como roteiro para as aulas de teoria marxista de classes sociais da Escola Nacional do PCdoB. Ele também foi publicado no meu livro Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros, editado pela Anita Garibaldi.  

** Augusto C. Buonicore é historiador, presidente do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois e autor dos livros Marxismo, história e revolução brasileira, Meu verbo é lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas e Linhas Vermelhas: marxismo e dilemas da revolução, todos publicados pela editora Anita Garibaldi.

 

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