“Mundo não está preparado para crise, diz ex-economista-chefe [Olivier Blanchard] do FMI” (F. de São Paulo, 19/02/2017). [1]

Há cerca de dois meses, o mesmo O. Blanchard, e Lawrence Summers, o poderoso ex-secretário do Tesouro dos EUA, lançaram com estardalhaço a obesa coletânea “Evolution or revolution? Rethinking macroeconomic policy after the Great Recession” (MIT Press, Cambridge, 2019).

“Evolução ou Revolução? Repensando a política macroeconômica após a grande recessão” é mais uma peça no festival de revisionismo encenado por ideólogos e teóricos importantes da ascensão neoliberal; noutras palavras, mais uma tentativa de “aggiornamento” dos feiticeiros da grande finança, às portas de outra grande crise sistêmica.

O que dizem Blanchard e Summers? Resumidamente, 1) Que o sistema financeiro é importante e que as crise financeiras provavelmente voltarão a ocorrer; 2) Que a economia nem sempre se autorregula ou se auto estabiliza como as vezes se presume; 3) Que as taxas de juros previsivelmente se mantenham baixas.[2] Os dois gurus, por tais razões e outras, defendem então política fiscal (gasto público) transitoriamente, diante do esgotamento das ferramentas tradicionais de política monetária.

Crise incontornável

A economia capitalista mundial encontra-se mais uma vez na antevéspera de uma tormenta de contornos indefinidos. Ao que tudo indica incontornável, após um curto mergulho em 2016, seguindo-se de um “suspiro” (real) de recuperação em 2017, o vaticínio do agravamento da instabilidade financeira já alertava: taxas de juro negativas, papéis de trilhões de dólares (“podres”) e euros atolados nos bancos centrais, endividamento público e privado crescente, e uma estagnação da economia nos principais países capitalistas. [3]

Assim, a especulação financeira após o turbilhão de liquidez pós-QE (“Quantitave Easing”), a ultravalorozação acionária, junto a recompra frenética organizada (“shareholder”) de ações das próprias empresas turbinaram a velha trilha da bancarrota.

E não se trata de coincidência ter a globalização neoliberal gestado crises globais cada vez mais devastadoras: 1987/1997/2007 iniciadas nos EUA, na Tailândia (asiática) e novamente nos EUA, respectivamente. Instabilidade permanente e crises dramáticas passaram a ser irmãos siameses na era do neoliberalismo.  A incrível regularidade decenal dessas hecatombes, aliás, faz lembrar – apenas lembrar – a constatação de Marx acerca dos ciclos e crises, na lei geral da acumulação capitalista, no magistral capítulo XXIII de “O capital”. [4]

As respostas, através de políticas monetárias de “flexibilização” e fiscais (de “austeridade”) fracassaram em repor crescimento econômico e emprego, enquanto seguem servindo para multiplicar as fortunas de financistas e de especialistas da especulação. A desigualdade social sobe a escalas inimagináveis; os EUA naturalizam sua sociedade “do 1%”; o desemprego, crônico desde os anos 1980, passa agora a enfrentar o “terrorismo” da 4ª revolução industrial, pródiga em ceifar empregos e profissões. [5]

 

Mas, não se trata “apenas” de uma “Longa depressão”, como denomina Michael Roberts a crise detonada em 2007-8. Tampouco de uma “estagnação secular”, como reinventou o mesmo L. Summers. Como chamamos a atenção, [6] trata-se do desdobramento mais recente da grande crise, com a “bomba” financeira estruturada originariamente no mercado norte-americano da farra especulativa das hipotecas “subprime” (inadimplentes), seguida de um mergulho depressivo de gravíssimas consequências sociais, políticas e ideológicas. Assim, resulta que o problema não equacionado da queda profunda do investimento na esfera do capital produtivo na economia, o que estamos vivendo desde então é, de fato, uma problematização muito mais profunda do processo de acumulação e reprodução capitalista global, que emana do seu centro mais desenvolvido.

Noutras palavras, o sistema capitalista não quer (ou não consegue) “decepar” essa gigantesca medusa que ele próprio criou. O que significa – até os dias que correm – a não destruição de uma imensa montanha de capitais fictícios e não, liquidação esta imperiosa para o redimensionamento, pela concentração e centralização dos capitais mais poderosos, impostos através da concorrência.

Como é sabido, a finança e o sistema de crédito modernos têm um papel extraordinário – não à toa caracterizado por J. Schumpeter como “o quartel-general do capitalismo” -, no sentido das possibilidades do aporte ao desenvolvimento econômico. Ocorre que a “financeirização” do capital orienta sua dinâmica à valorização do capital fictício; ou passou a investir muito pouco em tudo que alavanca emprego e renda nacional; e, ao contrário, “financeiriza” grandes grupos industriais e de serviços. O que não impediu, por outro lado, essa concentração gigantesca da lucratividade para os grandes oligopólios da tecnologia: a Apple e a Amazon chegaram a US$ um trilhão em seus valores acionários, os gigantes Google, Microsoft etc., o que vem redirecionando o processo de acumulação capitalista trespassado pelas mudanças dos paradigmas e padrões técnicos do processo industrial.

Observe-se, a exemplo, esse gráfico do relatório de junho último do Banco Mundial, sobre as tendências do investimento de longo prazo, exceto China:

 

“Financeirização” e depressão

Como vimos reiterando, do ponto de vista do marxismo, sobre a base de impulsos mais ou menos longos de superprodução ou superacumulação de capitais (máquinas, equipamentos, instalações, matérias-primas, ativos financeiros), a crise se instala quando da parada súbita que interrompe o ciclo da realização capitalista, quer dizer, a dinâmica cíclica do investimento. Isto também significa que as crises nesse regime de produção não podem ser separadas da regularidade de sua dinâmica expansiva.

O capitalismo, segundo Marx, objetiva produzir em larguíssima escala, até superproduzir capital. Quer dizer, sobreinvestir para fazer crescer a produtividade social do trabalho e suplantar a concorrência; superproduzir para superlucrar, superacumulando capital em excesso e em todas as suas formas, referenciando-se numa dada taxa média de lucro. [7]

Pelo seu caráter incontornavelmente expansivo – de outra parte não seria possível a financeirização “brotar” da estagnação -, um padrão sistêmico passou a ser imprescindível ao dinamismo determinado pela hegemonia da grande finança especulativa e concorrencial. Assim, nas grandes fases expansivas têm antecedido a dinâmica das crises, geralmente: superacumulação de capitais (também de riqueza financeira fictícia), podendo se desdobrar ou não em estagnação.

 

Na pesquisa que realizamos argumentei ter ocorrido, entre 2007-209, uma depressão, não uma “grande recessão”; ao que se seguiu uma estagnação no centro do capitalismo, mergulho esse que se espraiara desde 2011 à periferia (CEPAL). Esse neologismo trapaceiro veio no rastro da fraude, vendida por Bem Bernanke, pouco antes (2004) de ser indicado para a presidência do banco central dos EUA (Fed), de que a economia mundial vivia então a era da “Grande Moderação”. Ele (et alii) afirmou a política monetária havia se tornado tão refinada que era capaz de eliminar a volatilidade na economia; que devido ao avanço da técnica monetária, afirmou ele, “as recessões tornaram-se menos frequentes e menos severas”.

Antes dele, outro trapaceiro laureado, o economista Robert Lucas , da Universidade de Chicago  e vencedor do Nobel Memorial Prize em ciências económicas do Banco da Suécia declarou no seu discursos presidencial à “American Economic Association” que a depressão econômica era uma coisa do passado. O “problema central da depressão-prevenção” havia sido “resolvido, para todos os propósitos práticos”, discursou. [8]

De outra parte, certos marxistas e keynesianos repetiram o discurso do mainstream da “recessão”, enquanto fenômenos mais vastos dos que emergiram na Grande Depressão dos anos 1930 provocaram uma inédita devastação, bem além do econômico. Como bem argumenta G. Fresu, o empobrecimento europeu catapultado pela crise global 2007-8, além de geral e não só das camadas populares, mas das camadas médias, se deu de modo “muito semelhante” ao ocorrido na crise dos anos 1930. Não foi, assim, casualidade – diz ele –, que “a pequena e a média burguesia europeia constituem também hoje, como no surgimento do fascismo, a base essencial desses movimentos e o megafone de suas palavras de ordem”. [9]

Gatilhos da próxima tempestade

O banco central da Alemanha (Bundesbank) já anunciou um terceiro trimestre de contração econômica, o que significa que o país está entrando em recessão – a maior máquina exportadora da Europa. Com efeito, a “guerra comercial” – e de capitais – imposta pelos EUA visando a China, fez despencar a demanda externa alemã, que compõe nada menos que 40% de seu PIB (Produto Interno Bruto). Anunciou a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) que entre abril e junho, as exportações do G-20 em dólar encolheram 1,9%, enquanto as importações caíram 0,9%.
Por sua feita, a produção industrial dos países que compõem a Zona do Euro retraiu 1,6% em junho, em relação a maio. Em julho, o FMI (Fundo Monetário Internacional) baixou para 3,2% o crescimento mundial, o que se aproximaria de uma recessão global – abaixo de 3%, pelos seus critérios.

Contudo, a tormenta no horizonte tem novamente seu epicentro nos desequilíbrios estruturais da economia norte-americana. Entre os fatores cumulativos que estão a detonar a próxima tempestade, deve-se considerar: [10]

1) Na segunda quinzena de agosto, o “spread entre os rendimentos de 2 anos e 10 anos dos EUA” tornou-se negativo pela primeira vez em 12 anos. Uma inversão da curva de juros ocorreu antes de cada recessão nos EUA desde a década de 1950, e esse é um dos sinais econômicos seguros; pesquisas demonstraram que o “sentimento” do consumidor americano caiu para o nível mais baixo que vimos em todo o ano de 2019. 2) Setenta e quatro por cento dos economistas pesquisados ??pela Associação Nacional de Economia Empresarial acreditam que uma recessão começará nos Estados Unidos até o final de 2021.  3) A produção industrial dos EUA recuou em “território de contração”.  4) O Índice de “Gerentes de Compras da IHS Markit Manufacturing” caiu para o menor nível desde setembro de 2009.  5) Similarmente ao ocorrido em setembro de 2008, certo pânico e a volatilidade retornaram a Wall Street de uma maneira importante: neste agosto: viu-se o quarto e o sétimo maior declínio de um único dia na história do mercado de ações dos EUA.  6) O número total de pedidos de falência nos Estados Unidos tem aumentado constantemente, e subiu mais 5% durante o mês de julho, assim  como os principais varejistas dos EUA continuam a fechar mais lojas, e persiste um ritmo que quebraria o recorde de todos os tempos de fechamento de lojas em um único ano.

Ainda sobre os EUA, outros dados registram, a) em 1989 os títulos de 30 anos do tesouro dos EUA pagavam 10%; b) na semana de agosto acima referida pagou-se juros de menos de 2%. Essa queda histórica nos rendimentos dos títulos de longo prazo dos EUA tem motivado interrogações agudas na cabeça dos financistas, e dos economistas do mainstream, especialmente. Por que? Porque a inversão dessa parte central da curva de juros é historicamente um indicador que se repetiu e que previu a aproximação de todos as rupturas dos ciclos econômicos, desde o pós-2ª Guerra mundial. Ademais, é factual que o estoque mundial dos títulos dos governos, negociados a taxas negativas de rendimentos, elevou-se estrondosamente em todo o mundo, atingindo um novo recorde dos últimos setenta anos.

 

Observe-se bem a descrição dramática de J. Roberto Campos:

“A guerra comercial é um fator a mais de incertezas pairando sobre uma montanha de dinheiro que rende pouco ou já não rende nada. Há US$ 16 trilhões em títulos da dívida pública e privada com juros negativos, 30% do total em circulação – na Alemanha e Holanda todos os títulos soberanos, não importa seu prazo. Dos US$ 55 trilhões em papéis de dívida, 40% deles não ultrapassam 1% de rendimento e apenas 3% entregam a seu detentor 5% na data de vencimento” (“Política monetária zero”, Valor Econômico, 30/08/2019).

Neofascismo e crise

A ascensão da extrema-direita e do neofascismo na Europa sofreu uma certa inflexão (recente) com a vitória de Mette Fredriksen na Dinamarca. Na Suécia, o primeiro-ministro também socialdemocrata Stefan Lofven, vai para um segundo mandato, numa ampla aliança com verdes, esquerda e o centro-direita. Na Finlândia, o socialdemocrata e ex-ministro das Finanças Antti Rinne, lidera uma coligação de cinco partidos na Finlândia, após as eleições de eleições de abril último.

A socialdemocracia voltou ao governo da Espanha, permanece em Portugal, diferentemente das tendências reacionárias na Itália e na França, especialmente, e do conservadorismo alemão – onde o neonazismo voltou ao parlamento, desde o 2ª pós-guerra. Na Grécia, a “Nova Direita” derrotou o “Syriza”, tendo a corrente neonazista “Aurora Dourada” perdido eleitoralmente a representação parlamentar.

Somado ao “brexit” – operado agora com o extrema-direita britânico B. Jhonson -, às portas da saída da União Europeia; à decadência dos EUA (cujos serviços secretos atuam abertamente em Hong Kong) confrontando cada vez mais a China, [11] em linhas gerais esse quadro global sofrerá enorme influência ideológica de uma nova crise global. É a experiência histórica que assim sentencia.

O que significa dizer: uma nova crise sistêmica exigirá a radicalização da luta democrática e antifascista, nucleada por uma vigorosa revitalização da esquerda marxista e revolucionária.

NOTAS

1] Ver aqui: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/02/1860074-mundo-nao-esta-preparado-para-crise-diz-ex-economista-chefe-do-fmi.shtml.   Numa sequência: “A nova crise econômica está próxima, deve ser provocada pelo elevado endividamento das empresas em um cenário de juros subindo no mundo, e os bancos centrais terão poucos instrumentos para conter danos nas economias, afirma Tim Lee” (F. de São Paulo,08/12/2018). Ver aqui: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/12/crise-esta-proxima-e-sera-muito-pior-que-a-de-2008-diz-economista-que-previu-derrocada-da-lira-turca.shtml.

E, mais recentemente: “FMI pede aos governos que se preparem para a próxima crise” (“Público”, 10/04/2019). Ver aqui: https://www.publico.pt/2019/04/10/economia/noticia/fmi-pede-estados-preparem-proxima-crise-1868751

2] Ver aqui: http://www.sinpermiso.info/textos/a-proposito-del-reciente-libro-de-olivier-blanchard-y-larry-summers-reconsideracion-de-la, de Charles Manera.

3] À exceção dos EUA, e da Índia, com ritmos de crescimento abissalmente diferentes. A China socialista, como se sabe, persiste em sua marcha excepcional aferindo um PIB (Produto Interno Bruto) médio anual acima do 6%.

4] Ver: Livro I de “O capital”, São Paulo, Boitempo, 2017, p. 708, 2ª edição:

“O curso vital característico da indústria moderna, a forma de um ciclo decenal interrompido por oscilações menores de períodos de vitalidade média, produção a todo vapor, crise e estagnação, repousa sobre a formação constante, sobre a maior ou menor absorção e sobre a reconstituição do exército industrial de reserva ou superpopulação”.

5] Atualíssima, a seguinte sequência analítica de Marx, novamente no capítulo XXIII:

“Essa mudança na composição técnica do capital, o crescimento da massa dos meios de produção, comparada à massa da força de trabalho que os vivifica, reflete-se em sua composição em valor, no acréscimo da componente constante do valor do capital à custa de sua componente variável”. “(…) Além disso, se o progresso da acumulação diminui a grandeza relativa da parte variável do capital, não exclui, com isso, de modo algum, o crescimento de sua grandeza absoluta”. “(…) À medida que se desenvolve a produção e acumulação capitalista, na mesma medida desenvolvem-se concorrência e crédito, as duas mais poderosas alavancas da centralização”. “(…) E enquanto a centralização assim reforça e acelera os efeitos da acumulação, amplia e acelera simultaneamente as revoluções na composição técnica do capital, que aumentam sua parte constante à custa de sua parte variável e, com isso, diminuem a demanda relativa de trabalho” (Livro 1, v. 2, São Paulo, Abril Cultural, 1982, pp. 193-198).

6]Ver: “A crise sistêmica ontem e hoje”, A. Sergio Barroso, Vermelho; aqui: http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=10131&id_coluna=77

7] A propósito, mesmo o marxista britânico Michael Roberts, conhecido por sua obsessão em ter a queda da taxa média de lucro como causa determinante unívoca – eis a palavra – das crises no capitalismo, não esconde o crescimento dos lucros financeiros e dos grandes grupos tecnológicos, nos EUA e fora deles; Roberts alude a um “estancamento” da lucratividade global, uma generalização difícil de se verificar, no entanto uma “parada de subida” de lucros ser possível, na atual conjuntura. Ver aqui: http://www.sinpermiso.info/textos/se-podra-detener-la-proxima-recesion, de M. Roberts. De outra parte, como diz muito bem Jorge Grenspan, acerca de características da LTQTL,

[Marx] “ao chama-la de lei, deduzida das determinações mais íntimas da natureza do capital, atribui a ela o estatuto de necessidade; que não é absoluta, contudo, por ser uma tendência – que não vige sempre, que se alterna com momentos de vigência de seu oposto” (“O negativo do Capital”. O conceito de crise na crítica de Marx à economia política, Expressão Popular, 2017, primeira reimpressão, p.237).

8] As referências estão aqui: https://mronline.org/2008/12/03/bernanke-and-the-great-moderation-four-years-later/, do artigo de J. B. Foster “Bernanke a grande moderação quatro anos depois”, dezembro de 2008.

9] Ver: “Nas trincheiras do ocidente. Lições sobre fascismo e antifascismo”, G. Fresu, Ponta Grossa, UEPG, 2017, pp. 230-1.

10] Ver, entre outros compiladores de dados, Michael Snyder, aqui: http://theeconomiccollapseblog.com/archives/11-reasons-why-so-many-experts-believe-that-a-u-s-economic-crisis-is-imminent , do http://theeconomiccollapseblog.com/

11] Ver: https://www.odiario.info/barreira-sino-russa-contra-a-intromissao/, de M.K. Bhadrakumar.