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Itália: cinco meses após a vitória da extrema-direita

20 de março de 2023

Neste artigo, Fabrizio Burattini analisa o projeto de poder de Giorgia Meloni e os primeiros meses da governação da aliança da extrema-direita, mas também a crise em que a oposição continua mergulhada.

Neste artigo, Fabrizio Burattini analisa o projeto de poder de Giorgia Meloni e os primeiros meses da governação da aliança da extrema-direita, mas também a crise em que a oposição continua mergulhada. Publicado em Esquerda.net

O dado mais surpreendente e menos esperado das recentes eleições regionais, realizadas a 12 e 13 de Fevereiro, nas duas principais regiões do país – Lombardia, com a segunda maior cidade italiana, Milão, e mais de 10 milhões de habitantes, e Lácio, a região de Roma, a capital, com quase 6 milhões de habitantes – foi a afluência: 41% na Lombardia e 37% no Lácio, a mais baixa da história da República.

A crise da democracia continua

A vitória da coligação de direita (que obteve cerca de 54% em ambas as regiões) e a eleição como presidente da Lombardia de Attilio Fontana (Lega) e como presidente do Lazio de Francesco Rocca (um candidato independente nomeado pelo Fratelli d’Italia-FdI) eram largamente esperadas, dado o sucesso da direita nas eleições nacionais de 25 de setembro e a apresentação dispersa dos partidos de centro-esquerda. Os outros candidatos ficaram a mais de 20 pontos percentuais dos vencedores. Em particular, os dois candidatos do Partido Democrático (PD) obtiveram 34% na Lombardia e 33,5% no Lácio.

O Fratelli d’Italia, o partido dito pós-fascista agora largamente dominante na coligação de direita dura, foi confirmado como o partido líder (26% na Lombardia e 34% no Lácio). Mas também registou uma perda substancial de centenas de milhares de votos em cada uma das duas regiões.

Dada a elevadíssima taxa de abstenção, estas são “maiorias” de base institucional apoiadas por minorias de eleitores: o pólo de direita ganhou, apoiado no entanto por apenas 20% dos eleitores registados no Lácio e 23% na Lombardia.

Desenvolveu-se um debate desinteressante nos meios de comunicação e nos talk shows sobre se estes resultados comprovam ou não que a Itália é um “país de direita”, se foi sempre assim ou se se tornou assim nos últimos anos. Em vez disso, o facto claramente mais relevante é a crise contínua da representação democrática e da participação política. E, obviamente, esta crise de participação afeta fortemente a esquerda em todas as suas declinações, favorecendo a direita.

A crise de participação é mais importante nos distritos da classe trabalhadora: por exemplo, no conjunto da cidade de Roma, apenas 33,1% dos eleitores foram às urnas, mas esta percentagem sobe para 40% no segundo círculo (municipio, existem 15 círculos), o habitado pelos sectores sociais mais abastados, enquanto que nos círculos da classe trabalhadora cai: nos 6º e 10º círculos é de 27% e 30% respetivamente.

Claro que todos estão preocupados com a “perda do interesse popular pela política”, mas ninguém analisa seriamente as suas raízes ou sequer sugere um remédio: o centro-esquerda porque tem a maior responsabilidade; a direita porque é a que mais beneficia com isso. Durante os últimos trinta anos, as reformas institucionais mudaram a face das instituições políticas. Transformaram-nas de órgãos representativos das diferentes orientações dos cidadãos em instrumentos essencialmente de “governação”, esvaziando as assembleias eleitas (conselhos municipais e regionais, parlamento nacional) das suas funções e ao mesmo tempo exaltando o papel do líder (presidente da câmara, “governador” regional, presidente do Conselho). Estas reformas resultaram em grande parte da iniciativa do centro-esquerda (PD), que está agora a pagar as consequências, entregando o governo do país e de 16 regiões (de 20) à direita mais extrema.

Um governo forte que atinge as classes trabalhadoras

Assim, deste teste eleitoral parcial mas importante, o governo de Giorgia Meloni emerge ainda mais forte na sua ação de reforço da ofensiva antipopular já iniciada pelo anterior governo de Mario Draghi [fevereiro de 2021-outubro de 2022]. De facto, a primeira lei orçamental do governo Meloni, aprovada no final de dezembro de 2022, foi em grande medida elaborada em continuidade com as políticas económicas e sociais do governo do banqueiro [Draghi, antes de presidir ao BCE, foi presidente do Banco de Itália e vice-presidente da sucursal europeia da Goldman Sachs].

Não foi por acaso que a lei recebeu a aprovação da Comissão Europeia, que a considerou “globalmente positiva… pois está de acordo com as orientações orçamentais do Conselho da UE”, nomeadamente: investimentos públicos para “transições verdes e digitais”, para “segurança energética”, e sobretudo para o “controlo das despesas primárias correntes”, etc. A Comissão Europeia fez algumas observações marginais: a proposta de aumentar o limite de utilização de dinheiro vivo para 5.000 euros; a “amnistia” para sanções até 1.000 euros por evasão fiscal; a abolição da obrigação dos retalhistas de aceitarem pagamentos eletrónicos; e uma pequena, mas apenas simbólica, flexibilização das regras para a obtenção de uma pensão. O governo Meloni, ansioso por demonstrar o seu empenho na política neoliberal europeia, teve imediatamente em conta as observações, corrigindo o texto final da lei.

Mas sobretudo, entre as várias medidas, foram inseridos alguns elementos que o governo Draghi não poderia ter adotado, dada a natureza multifacetada e contraditória da sua maioria parlamentar. Um exemplo, entre outros, é a decisão de reduzir para apenas sete pagamentos mensais o pagamento do “rendimento de cidadania” (RdC), o subsídio que distribui uma média de pouco mais de 500 euros a cerca de 1,2 milhões de famílias pobres.

Trata-se de uma medida que permite ao Estado “poupar” algumas centenas de milhões (imediatamente concedidos generosamente aos clubes de futebol profissional para “os ajudar” a equilibrar os seus orçamentos muito deficitários), mas que tem um duplo objetivo ideológico e político. Por um lado, responde à campanha demagógica da direita (também apoiada por Matteo Renzi e pelo partido “macronista” de Carlo Calenda, o duo Italia Viva-Azione) destinada a apresentar os beneficiários do RdC como pessoas que “não querem trabalhar”. Por outro lado, pretende privar um dos partidos da oposição, o Movimento 5 Estrelas (Movimento 5 Stelle-M5S), da sua bandeira principal, o que até agora lhe permitiu continuar a ser o partido líder nas regiões do sul, mesmo nas eleições legislativas de setembro de 2022.

O RdC será retirado a qualquer pessoa que recuse uma oferta de emprego, para qualquer tarefa, mesmo que isso signifique passar de um extremo do país para o outro, e de qualquer pessoa que não tenha concluído a escolaridade obrigatória ou que não se inscreva em cursos especiais de “atualização”. Como se constata, esta medida traduz-se num ataque cínico e sádico aos estratos sociais mais pobres do país e a uma instituição, o RdC, que, embora não tenha “abolido a pobreza” como afirmavam os seus promotores, conseguiu no entanto atenuá-la.

Além disso, a política orçamental favorece os estratos sociais que apoiam a maioria governamental com medidas de amnistia fiscal e um grande corte fiscal para as profissões liberais e pequenas empresas, com o paradoxo de que um trabalhador independente com um rendimento bruto anual de 85.000 euros pagará menos impostos em termos absolutos do que um trabalhador assalariado com um rendimento bruto de 30.000. Tudo isto desafiando os princípios constitucionais da igualdade e da tributação progressiva.

Os patrões já não têm medo de Meloni

As classes dirigentes, através dos seus meios de comunicação social, sentem-se tranquilizadas face aos receios que tinham acompanhado a marcha firme de Giorgia Meloni para o poder: todos os dados macroeconómicos, apesar da crise global, parecem estar a melhorar, tanto em números absolutos como em comparação com os seus principais concorrentes internacionais. Alguns sublinham complacentemente a relativa moderação do governo italiano, se comparada com a obstinação contra-reformista que Macron tem demonstrado em França nas últimas semanas sobre a questão das pensões, entre outras. Evidentemente, elogiam a sua lealdade atlanticista, o que não é surpreendente dados os serviços que os pais espirituais de Giorgia Meloni ofereceram à CIA dos Estados Unidos durante os anos da Guerra Fria.

Mesmo o temido sistema de espólios [no sistema bipartidário dos EUA, o governo recém-eleito substitui o estrato dos anteriores altos funcionários com os seus apoiantes – ed.]. “meloniano” não aconteceu, pelo menos por agora. O único grande gestor público a mudar é o diretor do Tesouro, cargo para o qual foi nomeado um certo Riccardo Barbieri Hermitte, uma figura inteiramente “tranquilizadora”, dado que vem de uma longa carreira como consultor e gestor de grandes bancos americanos [J.P. Morgan, Morgan Stanley e Bank of America-Merrill Lynch, assim como o banco de investimento japonês Mizuho Securities].

Convém lembrar que a esmagadora maioria parlamentar ganha por esta direita nas eleições de setembro de 2022 representa na realidade apenas 26,6% do eleitorado potencial italiano. Tendo ganho credibilidade junto das classes dirigentes, estar em minoria no país não impede e não impedirá o governo de direita de exibir toda a sua arrogância e vontade de cultivar uma cultura reacionária e de classe. O partido de Giorgia Meloni, que no passado sempre se tinha apresentado como um partido de direita “social”, referindo-se mais ou menos explicitamente à chamada tradição “popular” e anti-elite do fascismo, está a assumir cada vez mais características neo-liberais em termos económicos e sociais. É claro que esta caracterização só pode ajudar a tranquilizar as classes dominantes (e com elas as instituições europeias) que põem de lado os seus receios de uma nova temível “deriva populista”, depois da do governo M5S-Lega.

Mas a cultura neo-liberal que a Presidente do Conselho exibe e aplica na sua ação política é também acompanhada de brutais iniciativas demagógicas, como foi o caso em dezembro com o decreto-lei contra as festas rave e “grandes concentrações” (com pesadas penas de prisão e sanções financeiras para os organizadores mas também para os participantes).

Ainda mais significativa foi a campanha contra a greve de fome [iniciada a 20 de outubro de 2022] do anarquista Alfredo Cospito, detido por “massacre”, apesar das suas ações não terem causado quaisquer vítimas [1]. O ativista tem estado preso desde 2012 ao abrigo de uma “prisão perpétua com pena efetiva” e de um regime prisional de alta segurança (artigo 41-bis). É de notar que a decisão que dizia respeito ao anarquista não foi aplicada aos autores dos massacres mafiosos que assassinaram muitos magistrados e seus agentes de escolta, nem aos dos massacres fascistas como o de 1980 na estação de comboios de Bolonha que deixou 80 mortos. Os principais representantes do partido Fratelli d’Italia e os jornais pró-governamentais, não contestados por Giorgia Meloni, acusaram o PD de ser “cúmplice dos anarquistas e dos mafiosos”, simplesmente porque alguns dos seus deputados tinham ido verificar as condições de detenção de Alfredo Cospito na prisão.

Outro acontecimento foi a reação desproporcionada e inadequada de muitos representantes de direita à ação levada a cabo há alguns meses por alguns jovens ativistas do grupo ambientalista “Ultima generazione” [um grupo que defende a “desobediência não violenta contra o colapso climático”]. Este grupo, para protestar contra a inércia das instituições e da política face à crise climática, tinha atirado uma lata de tinta inofensiva ao edifício do Senado. Os dirigentes do FdI e da Lega gritaram “terrorismo” e exigiram “prisão efetiva”.

Política anti-migrantes

Mas a iniciativa mais “identitária” deste governo de direita dura e dos seus partidos maioritários é o decreto, que se tornou lei em 23 de fevereiro, visando organizações não governamentais (ONG) cujos navios patrulham o sul do Mediterrâneo há anos, resgatando migrantes náufragos. Sabendo perfeitamente que a imigração é uma questão profundamente sentida na sua base pequeno-burguesa, o governo decidiu atacar as ONG para tornar as suas ações de salvamento no mar mais difíceis e talvez impossíveis, apesar de os navios das ONG resgatarem apenas 10% dos migrantes que chegam a Itália. Assim, de acordo com o decreto-lei, após cada resgate, os navios das ONG devem dirigir-se imediatamente para o porto que lhes foi atribuído pelo Governo. Qualquer outra ação de salvamento posterior é proibida, “um salvamento de cada vez” é permitido, e isto no Mediterrâneo central, cuja travessia é considerada a mais perigosa do mundo.

Os portos designados estão geralmente localizados no norte de Itália, sob o pretexto demagógico de melhor “distribuir” os migrantes resgatados no território nacional e não “sobrecarregar” as regiões do sul mais expostas à chegada de refugiados da Líbia ou da Tunísia. Isto leva a tragédias sem sentido que são criadas por este decreto-lei, como no caso de um grupo de migrantes naufragados, resgatados perto da Sicília e forçados a fazer uma longa travessia de mais de 1.000 quilómetros num mar tempestuoso até ao porto de Ancona, e depois novamente transferidos de autocarro para um centro de receção na Apúlia, no extremo sul do país. As ONG são assim obrigadas a fazer travessias longas, perigosas e dispendiosas e, em caso de incumprimento, estão sujeitas a multas de dezenas de milhares de euros e ao confisco dos seus navios.

Note-se, contudo, que a campanha contra estas ONG não foi apenas conduzida pela direita: a primeira a referir-se a elas como “táxis marítimos” foi em 2018 o então líder do M5S Luigi di Maio. Inclusive o ministro do Interior do PD Marco Minniti, em 2017 [sob o governo do Presidente do Conselho Paolo Gentiloni, atualmente Comissário Europeu], tinha adotado regras vexatórias para impedir as suas operações de salvamento.

As medidas anti-migrantes do governo italiano causaram inicialmente alguma tensão com o governo francês de Emmanuel Macron, que se opõe a Giorgia Meloni não tanto devido a diferenças significativas na abordagem política, mas porque vê o sucesso da direita italiana como uma espécie de apoio indireto à sua concorrente Marine Le Pen. Estas picardias não impediram Giorgia Meloni de regressar do recente Conselho Europeu de 9-10 de fevereiro mais do que satisfeita. De facto, a declaração final do Conselho sobre imigração afirma que “O Conselho Europeu discutiu a situação migratória, que é um desafio europeu que requer uma resposta europeia… A UE irá reforçar a sua ação para prevenir partidas irregulares e evitar a perda de vidas humanas, para reduzir a pressão sobre as fronteiras e as capacidades de receção da UE, para lutar contra os traficantes e para aumentar o número de repatriamentos. Isto será feito intensificando a cooperação com países de origem e de trânsito através de parcerias mutuamente benéficas…a fim de aliviar rapidamente a pressão sobre os Estados-Membros mais afetados e prevenir eficazmente as chegadas irregulares…A União Europeia continua empenhada em assegurar um controlo eficaz das suas fronteiras externas terrestres e marítimas. O Conselho Europeu congratula-se com os esforços envidados pelos Estados-Membros a este respeito… Apela à Comissão para mobilizar imediatamente fundos e recursos substanciais da UE para ajudar os Estados-Membros a reforçar as capacidades e infra-estruturas de proteção das fronteiras, os meios de vigilância, incluindo a vigilância aérea, e o equipamento”. (Extratos das conclusões da Reunião Extraordinária do Conselho Europeu, 9 de fevereiro de 2023) Além disso, há negociações sobre “o reforço do mecanismo voluntário de redistribuição dos migrantes”. Como se pode ver, Giorgia Meloni não poderia ter pedido mais.

A Comissão Europeia tomou nota da lei italiana anti-ONG. Não só isso, mas também o grupo parlamentar de Estrasburgo do Partido Popular Europeu (PPE) foi mais longe e apresentou um documento político que vai no sentido da adoção de regras europeias anti-migrantes baseadas precisamente no modelo italiano.

O primeiro resultado trágico destas medidas foi o terrível naufrágio – o barco partiu-se nas rochas a poucos metros da costa com muito mau tempo – ao largo da costa da Calábria (Crotone) a 26 de Fevereiro. Mais de 60 migrantes afogaram-se – foram encontrados os corpos de 14 crianças – e o número de “desaparecidos” ainda está indeterminado, no momento em que escrevo [2]. Claro que ninguém pode dizer se, na ausência dos novos regulamentos do governo Meloni, estas pessoas naufragadas teriam sido resgatadas. O que é certo é que um dos navios (o Geo Barents dos Médicos Sem Fronteiras) foi fortemente multado. Está também a ser retido “para controlos administrativos” no porto de Ancona. Cerca de quinze outros navios humanitários de ONG que navegam no Mediterrâneo estão sujeitos à proibição de “salvamento múltiplo”.

O carácter neoliberal da orientação de Giorgia Meloni é descrito pela imprensa italiana como uma “adaptação consciente” da líder de extrema-direita à difícil realidade económica do país. Na realidade, não se trata apenas disso. Giorgia Meloni e a sua equipa têm um projeto mais ambicioso que tem vários objetivos.

Os objetivos da direita no poder

O primeiro, já amplamente alcançado, é o fim da exclusão da extrema-direita da possibilidade de governar o país. Há dez anos, o partido “pós-fascista” (FdI) foi excluído do círculo de partidos do chamado “arco constitucional”. Teve apenas 2% dos votos e só pôde gabar-se de eleger um presidente da câmara de uma capital provincial [Dario De Luca foi presidente da câmara de Potenza – Basilicata – de 2014 a 2019]. Hoje, é o principal partido, ronda os 30% e controla o governo nacional.

Este objetivo está interligado com o objetivo mais complexo de ultrapassar a caracterização meramente formal da República Italiana como “anti-fascista”. Em dezembro de 2022, o Presidente do Senado Ignazio La Russa, juntamente com outros representantes do “pós-fascismo” e com a aprovação tácita da Presidente do Conselho Giorgia Meloni, celebrou solenemente o 76º aniversário da fundação do Movimento Social Italiano (MSI), o partido dos veteranos do período fascista de vinte anos que foi amnistiado em 1946 [o referendo institucional de 2 de junho de 1946 estabeleceu a República Italiana e confirmou a abolição da monarquia]. Dentro de alguns meses, o 25 de Abril de 2023 assinalará o 78º aniversário da libertação do país do fascismo e da ocupação nazi. Giorgia Meloni já declarou que “participará nas celebrações”, embora no passado tenha descrito este aniversário (que é um feriado nacional em Itália) como “fonte de divisões” e proposto mudá-lo para 4 de novembro (o aniversário da vitória italiana na Primeira Guerra Mundial). Veremos como esta data será interpretada e explorada.

Este governo sabe que se move num país onde a cultura tem sido fortemente marcada por uma atitude “desfavorável” à extrema-direita. Mas o partido FdI tem vindo a travar há muito tempo uma batalha “cultural” subtil, mesmo no campo lexical e terminológico. Nos seus discursos, Giorgia Meloni evita cuidadosamente utilizar os termos “país” ou “república”, substituindo-os sistematicamente pela palavra “nação”. Ela fez saber solenemente que deseja ser referida como “Sr. Presidente do Conselho” (na forma masculina), na sua luta contra as declinações de género geralmente utilizadas pela esquerda. O Fratelli d’Italia está consciente de que uma grande parte dos círculos culturais do país teve historicamente uma inclinação anti-fascista e de esquerda, embora de uma forma muito menos pronunciada do que no passado. Não é coincidência que o FdI tenha confiado os dois ministérios-chave neste campo a dois fiéis do partido, o ministro da Educação e do Mérito Giuseppe Valditara [senador de 2001 a 2013, foi membro da Alleanza Nazionale, depois conselheiro de Matteo Salvini] e o ministro da Cultura Gennaro Sangiuliano [membro do Movimento Sociale Italiano – Destra Nazionale de 1983 a 1987, depois “independente de direita”].

Há também o objetivo de fazer avançar conteúdos reacionários concretos, não só através de diatribes veementes, mas também através de manipulações subtis, cooptando para o seu panteão figuras particularmente (embora frequentemente não o mereçam) amadas pelos italianos, incluindo os da esquerda, tais como Benedetto Croce [3] ou Enrico Mattei [o fundador da indústria petrolífera italiana: ENI-Ente Nazionale Idrocarburi, uma espécie de Estado dentro do Estado, morreu num “acidente” de avião causado por uma bomba em 1962]. A direita transformou o “Dia da Lembrança” para ser dedicado às “vítimas do foibe” [4], ou seja, às vítimas da contra-ofensiva dos partisans jugoslavos [a partir de setembro de 1943] contra a ocupação nazi e fascista do país, uma contra-ofensiva militar que inevitavelmente também fez vítimas inocentes, mas que também deve ser imputada aos verdadeiros perpetradores desta guerra de agressão. A lei que estabelece este aniversário foi aprovada por unanimidade pelo Parlamento em 2004. É um dos resultados da onda histórico-revisionista que começou após a dissolução do Partido Comunista Italiano em 1991.

Depois há os comentários misóginos e homofóbicos do presidente da Câmara dos Deputados, Lorenzo Fontana [Lega], um católico fundamentalista e admirador de Putin, que celebra diariamente no Twitter o santo do dia e não perde uma oportunidade de elogiar a “família tradicional” e estigmatizar o multiculturalismo.

Entre os objetivos mais importantes que o governo de Giorgia Meloni, Matteo Salvini e Silvio Berlusconi quer prosseguir, está a imposição de uma profunda reforma constitucional ao país. Um elemento central desta reforma será a introdução de um regime “presidencialista” através da eleição direta do Presidente da República e/ou do Presidente do Conselho. Esta é uma reforma que satisfaz as classes dirigentes, que desejam ter um mecanismo institucional que responda melhor aos seus interesses e não seja condicionado pelos mecanismos de mediação política e parlamentar. A outra peça fundamental da reforma constitucional concebida por esta direita é a fórmula da “autonomia diferenciada”, que visa dar mais força às regiões economicamente mais dinâmicas e ricas, deixando as regiões mais pobres à sua sorte. O corolário desta “autonomia” será o desmantelamento de todos os elementos de coerência nacional, com a regionalização dos salários e dos contratos de trabalho, e a maior fragmentação e privatização da saúde e da educação.

O projeto “europeu” de Giorgia Meloni

Grande parte da imprensa e dos comentadores insistem na “conversão europeia” da líder do FdI. Hoje, Giorgia Meloni está a tentar ocupar com sucesso um nicho entre os líderes da UE, mas o núcleo político do seu projeto não é outro senão o de visar uma clara mudança de direção política na União Europeia.

Ela espera consolidar de forma credível a posição de Fratelli d’Italia como o principal partido italiano nas eleições europeias previstas para a Primavera de 2024. E espera que outros dos seus amigos políticos – certamente Marine Le Pen em França, Vox em Espanha, a Lei e Justiça dos irmãos Kaczynski na Polónia, para mencionar apenas alguns – consigam resultados significativamente mais elevados nas eleições. Ela acredita que o grupo a que preside, o ECR (Conservadores e Reformistas Europeus), pode reivindicar hegemonia na estrutura de direita do continente, incluindo, se necessário, através de acordos com o outro grupo importante, Identidade e Democracia (ID, fundado em 2019, na esteira do grupo Europa das Nações e das Liberdades), ao qual pertencem a Lega e o Rassemblement National francês.

Ela conta com as sérias dificuldades do Partido dos Socialistas Europeus (PES), tanto devido à crise de alguns dos seus componentes nacionais – o Partido Socialista Francês reduzido a resultados marginais, as dificuldades do Partido Democrático Italiano e a perda do governo pelos socialistas suecos, etc. – como devido às desventuras judiciais de alguns eurodeputados “socialistas” importantes no caso Qatargate. Ela compreende que o Partido Popular Europeu – que sempre co-geriu as instituições europeias com o PES e os liberais de Renew Europe – está cada vez mais inclinado para a direita, precisamente para conter a sua perda de coesão. A médio prazo, imagina uma mudança de maioria política nas instituições da UE, uma Comissão Europeia já não baseada no PPE-PES e nos Liberais, mas no PPE, no ECR e em outras formações de direita. As recentes conversações frequentes entre Meloni e Manfred Weber (CSU Baviera), o presidente alemão do PPE, foram provavelmente motivadas por este plano.

Para tornar este caminho viável, tanto em Itália como na Europa, Giorgia Meloni relançou recentemente o projeto de um “partido único” da direita, o que lhe permitiria continuar a canibalizar a Lega de Salvini e a Forza Italia de Berlusconi, mas colocada sob o disfarce de um “projeto comum”.

A crise interminável do Partido Democrático

Do lado da oposição, os resultados particularmente dececionantes, embora largamente previstos, dos candidatos do PD, M5S (Movimento Cinco Estrelas) e as formações da “esquerda radical” nas recentes eleições regionais revelam o quão longe está atualmente a construção de uma alternativa ao domínio da direita.

O Partido Democrático (PD) tem estado envolvido, desde o dia seguinte à derrota esmagadora de 25 de setembro, num enfadonho debate congressual “para definir a identidade e o perfil do novo PD, a sua razão de ser, a sua organização, a sua proposta política, os seus valores e princípios” (citação do documento do congresso). A crise permanente da PD é bem simbolizada pelos nove dirigentes que, nos 16 anos da sua existência, sucederam uns aos outros na liderança, todos eles afastados devido ao seu fracasso e não por terem atingido o limite de idade. O projeto do partido baseava-se na ideia, que se revelou totalmente ilusória, de que as epígonos do Partido Comunista e da “esquerda” democrata-cristã eram os únicos com uma cultura política e organizativa capaz de oferecer às classes dirigentes um instrumento para gerir a “modernização” do país. Para o conseguir, patrocinaram e impuseram reformas constitucionais e institucionais eficientes e uma cultura pró-capitalista e empresarial. Tudo isto facilitou, por um lado, a destruição do tecido de solidariedade social que tinha “mantido o país unido” até aos anos 1980 e, por outro, o desenvolvimento da direita dura, primeiro a de Berlusconi, seguida pela de Salvini e, finalmente, a de Meloni. O que aconteceu, numa escala menor mas ainda mais angustiante devido às especificidades da Itália, é uma trajetória semelhante àquela com que Bill Clinton e depois Barack Obama prepararam o caminho para os trumpistas e Tony Blair para a vingança do partido Tory.

O próximo congresso do PD é o resultado da consciência da ausência de uma identidade cultural e de um projeto político. Todo o debate é sobre quais as alianças a fazer para sobreviver, seja com o micro-partido centrista Azione de Calenda e Renzi, ou com a proposta “de esquerda” do M5S de Giuseppe Conte. O “povo de esquerda”, que em tempos constituiu a poderosa base de apoio do PCI, desapareceu completamente. Basta dizer que o que restava deste “povo” foi capaz de eleger Matteo Renzi como chefe do país em 2013 com quase 70% dos votos. Um Renzi que foi considerado o candidato mais adequado para governar o país, um primeiro-ministro que, nos seus três anos de governo [fevereiro 2014-dezembro 2016], conseguiu adotar uma reforma radicalmente pró-patronal do Código do Trabalho, uma reforma neoliberal e privatizadora do ensino público (a “boa escola”) e tentar impor uma contra-reforma antidemocrática da Constituição (felizmente rejeitada, em dezembro de 2016, pelo referendo, com 59,1% dos votos).

O número de membros do partido – que, nos dias do PCI, atingiu a fasquia recorde de mais de 2 milhões – caiu em poucos anos: 800.000 em 2007, 150.000 hoje.

Embora o PD tenha estado sempre, sob diversas formas, no governo de 2011 a 2022 – com exceção do breve interlúdio do governo Conte I [de 1 de Junho de 2018 a 5 de setembro de 2019] – hoje não pode reivindicar qualquer feito como sua imagem de marca junto do eleitorado. Consegue manter, pelo menos nas eleições locais, um certo apoio – mais em percentagem do que em votos absolutos – apenas porque, mais do que os outros concorrentes, pode beneficiar de uma base organizada residual.

A vitória da jovem deputada ítalo-suíça-americana Elly Schlein nas recentes primárias abertas do PD foi ajudada por uma afluência às urnas superior à esperada (parece que mais de um milhão de eleitores votaram), invertendo assim o resultado da consulta “interna”, entre os membros, que tinha favorecido bastante o outro candidato, o antigo “renziano” Stefano Bonaccini [presidente da região Emilia-Romagna desde dezembro de 2014].

As declarações feitas pela nova secretária imediatamente após o anúncio dos resultados confirmam a flagrante contradição entre as intenções de Elly Schlein e o património político do partido que ela é agora chamada a liderar. “Vamos ajudar a organizar oposições para defender os pobres, contra um governo que os atinge”, disse ela, enquanto o partido trabalhava até ontem para excluir qualquer acordo com o M5S, considerado responsável pela queda do governo Draghi. “Defenderemos a escola pública”, disse ela, enquanto o PD redigiu e aprovou a reforma da privatização sob o lema da “boa escola” há apenas alguns anos. “Vamos opor-nos a quaisquer cortes nos cuidados de saúde”, enquanto os governos de centro-esquerda (bem como de direita) cortaram dezenas de milhares de milhões do orçamento dos serviços de saúde em poucos anos. “A prioridade é defender os direitos dos trabalhadores”, enquanto que o PD em 2015 conseguiu cancelar definitivamente as proteções contra despedimentos, o que nenhum dos governos anteriores tinha conseguido fazer.

Os resultados das primárias abertas atestam o desejo generalizado de uma grande parte da base popular de centro-esquerda de uma reviravolta política. Mas a nova secretária, a primeira secretária feminina, jovem (37 anos de idade), não-conformista (abertamente de uma orientação sexual “não binária”), não tem um aparelho de apoio num partido agora muito fortemente cartelizado, com poderosas correntes internas, que, naturalmente, são tudo menos expressões de correntes político-ideológicas que se enfrentariam com diferentes orientações. Ao invés, são grupos de poder que procuram dividir os espaços cada vez mais pequenos de governo e sub-governo disponíveis para o centro-esquerda.

Além disso, as fortes contradições entre as declarações da nova líder e o património político do PD, por um lado, e a competição entre as muitas correntes internas (das quais Elly Schlein continuará refém), por outro, tornam ilusória uma “regeneração à esquerda” deste partido, mesmo com esta nova secretária, que conseguiu reunir o ímpeto de um certo sector da juventude que quer um renovado reformismo social e ambiental.

O resto da oposição

Quanto ao Movimento Cinco Estrelas, está agora a apresentar a sua quarta versão: 1° a fase organizada, já em 2007, por Beppe Grillo, que recebe apoio das redes sociais e organiza comícios anti-corrupção [os dias do “Vai-te foder” – “Dia de Vaffanculo”, que conduzem à criação do partido em 2009]; 2° a fase 2013-2018 [avanço eleitoral em 2013 com mais de 23% dos votos e em 2018 com 32,68% dos votos] durante a qual hegemonizou uma grande parte da oposição ao liberalismo social de Renzi; 3° a fase “governamentalista”, primeiro “amarelo-verde” [Lega-M5S, Conte I], depois “rosa-verde” [PD-M5S, Conte II]; 4° o M5S 4.0, hoje, tenta reconstruir-se como um partido de esquerda moderada, atento à defesa dos “pobres”, do ambiente e da “paz”. Tem a frágil vantagem de ter conseguido instituir o Rendimento da Cidadania (RdC), mas, como mencionado na primeira parte deste artigo, o Governo está a tentar impedir o uso desta bandeira.

Além disso, no seu projeto de expulsar o PD do seu papel de partido central na oposição à direita, Giuseppe Conte está a pagar o preço de ter um partido desprovido de qualquer estrutura organizacional e de qualquer ancoragem concreta territorial e militante. A própria determinação em defender o RdC apenas se traduz em declarações grandiloquentes contra um “governo classista e antipopular”, sem a capacidade, ou talvez mesmo a vontade, de construir um movimento adequado para este fim. No país, especialmente no Sul, estão a surgir algumas iniciativas de massas em defesa da RdC, mas todas por instigação de coletivos locais ou sindicatos de base, completamente fora do controlo do M5S. As dificuldades do projeto de Giuseppe Conte refletiram-se nos resultados dececionantes das recentes eleições regionais no Lácio e na Lombardia, onde as listas “grilline” ficaram muito atrás das do PD.

Quanto à esquerda que está “à esquerda do PD” – que durante anos, embora no meio de muitas contradições, tem praticado uma política de aliança subalterna com o PD – confirmou a sua existência e o seu pequeno mas não insignificante peso eleitoral (cerca de 3%). Por outro lado, a lista de esquerda que tinha escolhido aliar-se ao M5S no Lácio – sob o nome de Polo Progressista di Sinistra & Ecologista – não obteve o resultado esperado e apenas recolheu pouco mais de 1% dos votos, mesmo que tenha conseguido a eleição de uma conselheira regional (Donatella Bianchi). Mas estas forças estão também a suportar o peso do triste caso que se abateu sobre o seu deputado italo-costamarfinense Aboubakar Soumahoro [Alleanza Verdi, Sinistra: uma aliança entre Europa Verde e Sinistra Italiana na Lombardia], cuja família foi implicada num episódio muito grave de corrupção e sobre-exploração dos trabalhadores migrantes.

As duas listas da “esquerda radical” – a “nostálgica” e a “Togliattiana” [referência a Palmiro Togliatti] do Partito Comunista Italiano-PCI, cujo líder é Mauro Alboresi, e a “pós-Berlingueriana” [referência a Enrico Berlinguer] do Unione popolare: uma aliança entre Rifondazione e Potere al Popolo – obtiveram resultados irrisórios (cerca de 1%), confirmando a sua irremediável insignificância.

O pesado papel dos sindicatos

Num país que há muitos anos não assiste a lutas sociais e laborais significativas, as grandes centrais sindicais são as principais responsáveis pelo crescimento da extrema-direita e pela marginalização da esquerda. As três confederações sindicais – CGIL, CISL e UIL – pela sua persistente inação mesmo perante as piores iniciativas neoliberais dos vários governos, facilitaram a destruição da solidariedade de classe, a fragmentação da força de trabalho por empresas, o isolamento de algumas lutas de resistência eficazes e o aumento do sentimento da inevitabilidade da política neoliberal.

A última grande luta social e sindical em Itália foi a dos professores e estudantes em 2015 contra a reforma da “boa escola” promovida por Renzi e pelo seu governo. Mesmo esta luta encontrou apenas apoio formal nas confederações e, em particular, na CGIL, envergonhada por ter de apoiar uma mobilização contra um governo de “centro-esquerda”. No final, mesmo a sua própria federação profissional decidiu ficar-se e deixar a lei passar no parlamento.

Entre então e agora, a CGIL e as outras confederações não realizaram quaisquer mobilizações importantes. Mesmo a generosa mobilização e luta liderada pelos 400 trabalhadores da GKN [fábrica de componentes de automóveis] em Florença, que tentaram construir uma batalha conjunta contra as deslocalizações, foi deixada no isolamento mais cínico e agora corre o risco de acabar numa pesada derrota.

Os sindicatos “de base” ou “conflituais”, também devido ao seu espírito competitivo entre si e à sua “dependência” política dos seus círculos de liderança histórica, são incapazes (e até certo ponto pouco dispostos) de desenvolver um projeto sindical alternativo face à inação dos sindicatos maioritários.

Injustiças crescentes

Entretanto, se olharmos para a situação no terreno, as desigualdades e a fragmentação social estão a crescer sem controlo e a ação governamental pode, sem ser perturbada, acentuá-las.

Os números da bolsa de valores estão aí para o provar. A bolsa de valores italiana fechou as suas contas de 2022 no vermelho profundo: -12% de capitalização, mas os bolsos dos acionistas estão cada vez mais cheios de dividendos, graças, nomeadamente, aos lucros (mais de 70 mil milhões) realizados pelas grandes empresas energéticas e financeiras. Por exemplo, os lucros líquidos do gigante petrolífero italiano, ENI, mais do que duplicaram de 6 mil milhões de euros em 2021 para 13,4 mil milhões em 2022. O maior banco italiano, Intesa San Paolo, vai distribuir 5,3 mil milhões de euros em dividendos aos seus acionistas este ano e o segundo maior, Unicredit, aumentou os seus lucros em 48% para 5,2 mil milhões de euros em 2022. Dos 70 mil milhões em lucros líquidos globais, parece que mais de metade (mais de 36 mil milhões) será distribuído aos acionistas.

Os chefes da indústria transformadora também não estão a chorar: a empresa multinacional de automóveis Stellantis [PSA-Fiat Chrysler] declarou um lucro líquido de 16,8 mil milhões de euros para 2022 (+26% em comparação com 2021) e decidiu distribuir 4,2 mil milhões de euros aos acionistas em dividendos. A sociedade holding Exor, acionista maioritária da Stellantis (14%), receberá, portanto, mais de 600 milhões de euros em dividendos. E deste total, uma vez que a família Agnelli-Elkan detém 53% da Exor, cerca de 320 milhões irão parar aos bolsos da “família”, o que corresponde a um pouco menos de 1 milhão/dia. Os cerca de 80.000 empregados italianos da transnacional receberão um pouco mais de 150 milhões (como “bónus” pela sua participação nos lucros extraordinários), ou uma média de 1.879 euros cada, cerca de 5 euros por dia.

Os salários dos trabalhadores em Itália ainda são baixos, apesar da suposta “força” dos sindicatos. Segundo o ISTAT, o instituto nacional de estatística, o salário líquido anual médio dos trabalhadores italianos (após dedução de impostos e contribuições) é de 17.335 euros, ou 12 pagamentos mensais de 1.445 euros. É óbvio que a inflação (que atingiu 12% em 2022) fez com que estes 17.335 euros valessem menos 2.080 euros, ou seja, perderam o equivalente a quase um mês e meio de salário. Face a este crescimento do custo de vida, os contratos nacionais celebrados “ganharam” aumentos médios entre 2 e 3%. As previsões para 2023 indicam uma taxa de inflação decrescente, mas espera-se que seja de cerca de 5-6%, o que, naturalmente, será cumulativo com a inflação do ano que acaba de terminar.

Muitas pessoas perguntam qual é o interesse dos sindicatos, que têm cerca de 12 milhões de membros, incluindo pensionistas, se permitem que os trabalhadores sejam maltratados desta forma. Também isto é um poderoso motor de resignação, desencanto e fragmentação social.

As fraquezas do projeto Meloni

O governo de direita é forte, mas também tem fraquezas.

Meloni sabe que o projeto de partido único, por mais difícil que seja de pôr em prática, poderia, mais eficazmente do que a coligação de três partidos faz hoje, manter à distância os desvios dos dois líderes menores, Matteo Salvini por um lado e Silvio Berlusconi por outro. As declarações intempestivas de Berlusconi (e, em menor medida, de Salvini) exprimem certamente um excesso de vontade de se destacar, uma vontade de complicar a ação da líder, que é ora amiga ora concorrente, outrora subordinada mas agora dominante. Mas estas declarações expressam também a existência de diferentes abordagens a nível interno (os estratos sociais de referência a visar) e a nível internacional (os posicionamentos “geopolíticos”).

Isto é demonstrado pela muito recente troca de “bocas” através dos meios de comunicação social entre o líder da Forza Italia e o Primeiro-Ministro ucraniano Volodymyr Zelensky, o que constrangeu e irritou muito a Presidente do Conselho italiano durante a sua visita a Kiev a 21 de fevereiro. Berlusconi disse: “Eu, falar com Zelensky? Se eu fosse presidente do Conselho, nunca teria ido… Putin, a 24 de fevereiro de 2022, pensou que poderia facilmente ir a Kiev e colocar pessoas decentes no lugar de Zelensky e do seu governo”… Bastava que ele [o chefe de Estado ucraniano] parasse de atacar as duas repúblicas autónomas do Donbass e tudo isto não teria acontecido, por isso avalio muito, muito negativamente o comportamento desse senhor”.

Zelensky respondeu-lhe: “A casa de Berlusconi nunca foi bombardeada, eles nunca chegaram com tanques no seu jardim”. E Berlusconi replicou: “Ele não sabe que vivi, ainda criança, os bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial”.

As forças de centro-esquerda exageram muito os supostos efeitos destas diferenças de comportamento e as tensões políticas daí resultantes. Mas enquanto a oposição não se materializar num movimento de massas (o que está, infelizmente, muito distante neste momento), estas diferenciações não serão mais do que pequenos, embora embaraçosos, acidentes de percurso.

No entanto, a proposta de Giorgia Meloni de construir um único partido de direita tem talvez um objetivo mais importante para ela, o de cortar (ainda que apenas formalmente) os laços embaraçosos com o seu passado neo-fascista. Isto seria retomar o caminho já traçado por Gianfranco Fini [produto do MSI e iniciador do partido de extrema-direita Alleanza Nazionale em 1995] quando, em 2009, a sua Alleanza Nazionale se fundiu com a Forza Italia para formar o Popolo della Libertà, porque o mero abandono do nome MSI não foi suficiente para apagar a natureza da sua Alleanza Nazionale como um partido de nostalgia do regime fascista. Mas hoje em dia, haveria uma diferença fundamental. Na altura, Gianfranco Fini estava sujeito ao poder supremo de Berlusconi no seio do partido unificado, que acabou por expulsá-lo. Hoje, num hipotético partido unificado de direita, Giorgia Meloni estaria certamente no comando. O projeto de Fini e Berlusconi falhou na altura. Ainda hoje, o que torna a unificação da direita muito difícil é a ânsia patológica dos líderes de assumir a liderança em tal formação.

Existe, contudo, outra fraqueza de que a presidente do Conselho nunca fala, mas que pesa de forma silenciosa e insidiosa nos planos de Giorgia Meloni: a natureza e as inclinações da sua base militante. Até agora, a líder tem conseguido contê-lo. Ela conseguiu evitar celebrações com saudações fascistas e atos agressivos no rescaldo da sua vitória eleitoral em setembro de 2022. Conseguiu convencer o seu círculo mais próximo a manter uma atitude “equilibrada”: “somos democratas, condenamos as desprezíveis leis raciais” [de 1938, entre outras], evitando cuidadosamente qualquer declaração de repúdio global do passado fascista. Tudo considerado, mesmo o presidente do Senado, o antigo líder fascista Ignazio La Russa, mentor político de Giorgia Meloni, conseguiu apresentar o seu ostensivo ardor por colecionar memorabilia de Mussolini como uma “pequena paixão pessoal”.

A base militante tem mecanismos de controlo interno muito menos eficazes do que os do grupo de liderança do FdI. Assim, nos últimos dias, em Florença, em frente da sua escola, dois estudantes liceais de esquerda que comentaram negativamente a distribuição de folhetos por um grupo de militantes neofascistas da “Azione studentesca” – um grupo do qual a muito jovem Giorgia Meloni era a líder indiscutível até há cerca de quinze anos e que ainda reside na sede florentina da Fratelli d’Italia – foram atacados e fortemente espancados pelos membros do bando (seis contra dois). Os responsáveis do partido no governo foram rápidos a descrever o incidente como uma “briga deplorável”. A Presidente do Conselho permaneceu em silêncio.

A repetição de tais incidentes poderia certamente colocar o governo em maiores dificuldades do que as declarações inoportunas de várias figuras políticas. A presidente do Conselho está bem ciente da situação desconfortável vivida pela sua base militante, mas também sabe que não se pode livrar facilmente dela, nem por palavras (com declarações mais corajosas no sentido “anti-fascista”) nem, muito menos, quebrando de facto os laços organizativos e emocionais que tem com ela. Sabe também que, na hipótese reconhecidamente distante da emergência de embriões de um verdadeiro movimento de massa anti-governamental e antifascista, estas “brigadas de ação” poderiam revelar-se extremamente úteis.


Fabrizio Burattini é militante sindicalista e membro da Sinistra Anticapitalista. Texto recebido a 25 de fevereiro de 2023, traduzido e publicado em duas(link is external) partes(link is external) por A l’Encontre. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.

Notas

  1. ^ Alfredo Cospito, hoje com 55 anos, alvejou o diretor de uma empresa de energia nuclear nas pernas e colocou duas bombas caseiras em frente a um quartel da polícia em 2006, que não causou mortos ou feridos. (Red. A l’Encontre)
  2. ^ Giorgia Meloni não deixou de declarar, invertendo os papéis, num comunicado a 26 de Fevereiro, que foi “criminoso colocar no mar um barco de apenas 20 metros com 200 pessoas a bordo e uma previsão do mau tempo… O Governo está determinado a evitar as partidas e com elas este tipo de tragédia, e continuará a fazê-lo, exigindo sobretudo a máxima colaboração dos Estados de partida e de origem”. (Red. A l’Encontre)
  3. ^ Benedetto Croce, 1866-1952, filósofo de um chamado liberalismo, um dos fundadores do Partido Liberal em 1922, então próximo do fascismo. Em 1924, ele ainda considerava que “o regime de Mussolini não deveria ser mais do que uma ponte para a restauração de um regime liberal mais severo”.  A distância, para não dizer a rotura, com Mussolini ocorreu em 1925 (Red. A l’Encontre)
  4. ^ O termo foibe refere-se às cavidades nas rochas calcárias, entre outras na região de Trieste, para onde as pessoas, na maioria italófonas, foram atiradas. (Red. A l’Encontre)