Lula e os desafios dos clones malditos do arcabouço fiscal
Osvaldo Bertolino explica como Lula saiu a campo e quebrou o tom midiático monocórdio dos defensores do neoliberalismo
Por Osvaldo Bertolino
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva está completando os famosos cem dias, marca tida como ponto divisor entre as promessas de campanha e as perspectivas de que elas serão cumpridas. Na questão fundamental, a retomada da normalidade democrática segundo os preceitos constitucionais, não há o que contestar. A luta agora é pelo cumprimento das metas econômicas e sociais, um grande desafio, como pode ser visto pelo debate sobre o “arcabouço fiscal”, que começa a gerar controvérsias e a espalhar faíscas.
Diante disso, três perguntas emergem. A primeira: é possível construir o novo cenário desejado pela maioria dos brasileiros? A segunda: o governo Lula terá condições políticas para levar adiante seu projeto? E a última: de que forma as forças de direita que historicamente governaram este país tentarão impedir a consolidação de um Brasil democrático e progressista?
A primeira resposta: sim. O principal catalisador de votos da candidatura Lula foi a ênfase na questão democrática e social. Contudo, o sucesso do governo nessa área depende de outros quesitos, como a condução da política econômica e o envolvimento da sociedade no planejamento e execução do programa de governo. Pode-se dizer que Lula se elegeu com carta branca para romper com a linha desastrosa do pós-golpe de 2016. Tanto Michel Temer quanto Jair Bolsonaro lideraram governos calamitosos, que atentaram contra a democracia e pisotearam o arcabouço social do país.
A segunda resposta: também sim. Ao lado da empatia de grande parte dos brasileiros com Lula há, é claro, a vontade de mudanças profundas. O problema são os poucos mecanismos para que o povo possa manifestar esse ponto de vista de modo concreto, metendo a mão na massa. Assim, o desafio é ampliar esses canais, alargando o escopo da democracia. É, sim, verdade que fóruns populares não substituem o papel do Congresso. Mas sua atividade pode ser uma usina de ideias para os parlamentares do campo democrático, um eficiente mecanismo de consensos e um filtro das demandas sobretudo do poder econômico.
O governo ainda está submetido a um jogo de forças que impõem a tática de relações políticas fundada na defesa de muitas conquistas democráticas e sociais, avariadas e ameaçadas. As razões do atraso econômico e das injustiças sociais ainda não são claras para a sociedade. E talvez leve algum tempo e custe muita luta para se chegar ao ponto de atingir a consciência de que essas razões decorrem de arcabouços que vão muito além da questão fiscal.
A terceira resposta: depende do ritmo das mudanças. As forças conservadoras têm um programa e tática de luta bem conhecidos. Se o governo não tomar a dianteira dos fatos, certamente perderá terreno. Há um caso que talvez possa ilustrar bem essa constatação: a reação do Banco Central “independente” ao coro regido pelo presidente Lula contra os chamados juros escorchantes. Lula saiu a campo e quebrou o tom midiático monocórdio dos defensores do neoliberalismo como caminho único para a salvação da humanidade.
O presidente tem se mantido firme também na oposição à política de paridade de preços internacionais que repassa as cotações do barril do petróleo e do dólar aos valores da gasolina e diesel comercializados no país. “Minha obsessão nos primeiros cem dias era retomar as políticas sociais. Agora, a obsessão será a retomada do crescimento”, afirmou.
Sua posição firme tem sido importante sobretudo para o enfrentamento com a arrogância dos arautos do neoliberalismo, somada à monopolização dos meios de comunicação, o que dificulta um debate às claras sobre qual seria o melhor caminho para o Brasil. Com isso Lula respalda o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que tem sido enfático no combate a frouxidões na arrecadação de impostos de quem movimenta superlucros.
São ações que destoam do samba de uma nota só da direita, aquela antiga prática de dizer obviedades e platitudes que o ex-ministro da Fazenda Antônio Delfim Neto chamou de cânones de fanáticos. “Para eles, o desenvolvimento é a recompensa que desaba sobre a cabeça dos bem-aventurados que praticam as normas que (eles mesmos) supõem ser a boa e dura ‘ciência econômica’. É uma espécie de religião. Qualquer mobilização para o desenvolvimento econômico por parte do Estado é perda de tempo. Pior, é pecado! Contraria os princípios pelos quais se vai aos céus: a definitiva aceitação do deus mercado e a obediência estrita aos cânones da ‘ciência dura’. Quem ‘peca’ pode ter algum prazer no curto prazo, mas vai para o inferno no longo prazo”, escreveu ele na revista CartaCapital de junho de 2003.
O maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado, disse Machado de Assis. Essa é a questão. Na mídia, prevalece a publicação da pregação do presidente do Banco Central “independente”, Roberto Campos Neto, a voz cantante dessa “espécie de religião” citada por Delfim Netto. Para ele, o “arcabouço fiscal” elimina a explosão da dívida pública, mas não significa queda de juros. “Reconhecemos o esforço. Vamos observar como será o processo de aprovação no Congresso”, afirmou, ressaltando que não existe relação mecânica entre política fiscal e taxa de juros.
Campos Neto insiste em dizer que sua missão precípua é acompanhar as expectativas de inflação. Ou seja: basta acionar a alavanca dos juros de modo a conter os preços que todos serão salvos, irão para céu, conforme vaticinou Delfim Netto. Lula respondeu que “se a meta (de inflação) está errada, muda-se a meta”. “O que não é compreensível é imaginar que um empresário vá tomar dinheiro emprestado a essa taxa de juros”, asseverou.
Não há dúvida de que o Brasil está diante de dois caminhos, que se ligam a processos históricos. A presença de Campos Neto nas hordas da campanha que tentou reeleger o ex-presidente Jair Bolsonaro repete o que fizeram outros que professaram a mesma “espécie de religião”, pregando o caminho do céu e defendendo perversidades como as torturas, mortes e banimentos da ditadura militar. O mais proeminente deles era o avô do atual presidente do Banco Central, Roberto Campos, abertamente prosélito de platitudes fiscalistas e da morte para os que julgava socialmente indesejáveis.
Com ele estavam gente como Octávio Gouvêa de Bulhões e Mário Henrique Simonsen. Delfin Neto também serviu à ditadura, mas assumiu uma postura crítica em relação ao neoliberalismo, criticando fortemente seus arautos nos anos de 1990, chamados pelo jornalista Aloysio Biondi de “clones malditos dos intelectuais do passado”. Eram os pregadores do mantra de que para reduzir a dívida interna e o déficit público bastava privatizar tudo que viesse pela frente. Inclusive a Petrobras, insistentemente chamada por Roberto Campos de “petrossauro”.
O principal porta-voz dessas platitudes, o então presidente da República Fernando Henrique Cardoso (FHC), dizia que a taxa de retorno social com as privatizações seria substancialmente mais elevada do que a que o governo obteria em seus investimentos na mineração, na telefonia e na tecnologia industrial. “Cada um que prega contra as privatizações deveria ser obrigado a escrever mil vezes por dia, enquanto houver uma empresa estatal, um analfabeto ou uma criança mal nutrida no país: a democracia exige as privatizações para reduzir a dívida e liberar as despesas com os juros para gastos nas áreas sociais”, afirmou.
FHC e os “clones malditos” quebraram o país três vezes e entregaram o governo para Lula, eleito presidente da República em 2002, pendurado no Fundo Monetário Internacional (FMI), resultado da opção dos governos constituídos nos moldes do Consenso de Washington, desde a virada da década de 1980 para a de 1990. Se subordinaram completamente aos gestores de imensas massas de capital capazes de mover-se, com velocidade eletrônica, de uma ponta a outra do planeta, tomando empréstimos na moeda X para trocá-la pela moeda Y e jogar na queda da primeira para pagar menos no vencimento do débito.
O Brasil já havia passado por experiência semelhante, em menor escala, quando o governo do presidente Juscelino Kubitschek tentou executar o “programa de estabilização” elaborado pelo seu ministro da Fazenda, Lucas Lopes, e pelo diretor do Banco de Desenvolvimento Econômico (BNDE, hoje BNDES), Roberto Campos.
Havia uma contradição evidente: como conciliar altos investimentos com arrocho fiscal? Argentina e Chile experimentavam o tratamento de choque do FMI e os resultados faziam com que o plano de Lopes e Campos enfrentasse forte resistência no Brasil. Mas a pressão externa era grande e JK acabou cedendo, o que resultou no inevitável conflito entre o “Programa de Metas” e a “estabilização”. Lopes e Campos se isolaram no governo. A controvérsia acabou com as ordens do presidente da República para que as negociações com o FMI fossem rompidas.
Assim como dizem os neoliberais hoje, Lopes e Campos pediam a JK paciência porque a economia estava prestes a gozar dos frutos da “estabilização”. Mas o presidente não quis saber de conversa. Em discurso no Clube Militar, palco de intenso debate sobre as duas orientações que existiam no governo, JK disse: “O Brasil já se tornou adulto. Não somos mais os parentes pobres, relegados à cozinha e proibidos de entrar na sala de visitas. Só pedimos a colaboração de outras nações. Através de maiores sacrifícios poderemos obter a independência política e, principalmente, a econômica, sem ajuda de outros.”
Não há medida econômica desligada da política. Roberto Campos foi entronizado como poderoso ministro do Planejamento do governo Castello Branco – o primeiro da ditadura militar – com um programa impossível se aplicado num regime democrático. De cara, foi coautor de uma reforma que, de certa forma, mandou uma parte do Brasil de volta ao século XIX. Entre 1964 e 1967, ele e Octávio Gouvêa de Bulhões, ministro da Fazenda, operaram uma “reforma” econômica desastrosa para a maioria dos brasileiros. O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) substituiu o regime de estabilidade no emprego. As tarifas de importação foram baixadas. E impostos como o do solo, que penalizava latifúndios, foram varridos numa “reforma” tributária.
Mário Henrique Simonsen e Roberto Campos, publicaram, em 1974, o livro A Nova economia brasileira, no qual disseram que os objetivos básicos dos golpistas eram o combate à inflação, o reequilíbrio do balanço de pagamentos e a criação de bases sobre as quais deveria ocorrer o desenvolvimento de longo prazo. Qualquer semelhança com a atual pregação neoliberal não é mera coincidência.
Colocaram o dilema: produtivismo ou distribuitivismo? “A primeira estabelece como prioridade básica o crescimento acelerado do produto real, aceitando, como ônus de curto prazo, a permanência de apreciáveis desigualdades sociais individuais de renda. A segunda fixa como objetivo fundamental a melhoria da distribuição e dos níveis de bem-estar presente”, escreveram. Era arautos do que chamaram de produtivismo. Em 1981, no livro O Brasil pós-milagre, Celso Furtado constatou amargamente: “Poucas vezes ter-se-á imposto a um povo um modelo de desenvolvimento de caráter tão antissocial.”
São experiências que revelam a diferença num país governado pela premissa da democracia. Quando o governo sustenta posições firmes como agora, mostra que sabe e pode defender o desenvolvimento nacional e o progresso social. Cumpre formar a condição política capaz de enfrentar as vias do autoritarismo, caminho natural do projeto neoliberal, a essência do capitalismo da contemporaneidade.