Por Osvaldo Bertolino – capítulos da biografia de Pedro Pomar

A vizinhança estranhou a movimentação na residência do representante comercial João Vicente Gomes. O mistério foi desfeito quando Pedro Pomar revelou a verdadeira identidade e apresentou o grupo que o visitava — no qual estava Pablo Neruda, o famoso poeta e senador comunista chileno, que viera especialmente para o comício “São Paulo a Luiz Carlos Prestes”, que seria realizado no Estádio do do Pacaembu. No dia marcado para o evento, 15 de julho de 1945, um domingo, Prestes e a direção do PCB que o acompanhava almoçaram na casa de Pedro Pomar, em Pinheiros, que ficara maravilhado com a presença de tão ilustre figura, conforme narrou para os de casa.

Com o volume de atividades, Pedro Pomar afastara-se do comando do PCB em São Paulo, substituído pelo ferroviário Mário Scott, mas manteve como principal tarefa acompanhar os comunistas no estado. Durante os preparativos do comício no Pacaembu, ele quase se instalou no número 401 da Praça da República, em pleno coração da capital paulista, uma loja-armazém onde funcionava o Comitê pela Anistia, que abrigou a Comissão Promotora do Comício “São Paulo a Luiz Carlos Prestes”. Era um salão amplo, ocupado por mesas das sub-comissões, agitado por um interminável entra e sai.

As descrições indicavam onde estavam as sub-comissões de transporte, estádio, pintores, interior, finanças, estudantil e propaganda. Em um canto um pouco mais imponente pela reunião de várias mesas e o martelar de muitas máquinas de escrever — todas portáteis, o que atestava a condição de emprestadas —, ficava a Comissão Central, presidida pelo lendário general da Coluna Invicta, Miguel Costa. Com ele trabalhavam Luiza Pessanha Camargo Branco, líder feminista; Jorge Amado, escritor; e os dirigentes comunistas Mario Scott e Milton Caires de Brito. Ligadas diretamente à Comissão Central estavam três grandes comissões: a de organização, dirigida por Milton Caires de Brito; a de finanças, por Caio Prado Júnior; e a de publicidade, por Mário Schenberg.        

O escritor Oswald de Andrade e o pintor Rebolo Gonçalves — este último fora, também, um famoso jogador de futebol que desenhou, no começo dos anos de 1930, o atual emblema do Sport Club Corinthians Paulista com a âncora e os dois remos cruzados — se encarregaram de formar uma equipe para dar ao árido estádio de cimento um pouco de beleza e alegria. Di Cavalcanti e Clóvis Graciano estavam entre eles. Os jornalistas do Comitê de Jornalistas Democráticos — do qual fazia parte “o querido e ‘velho quadro’ comunista Antônio Mendes de Almeida”, segundo descreveu a Tribuna Popular, o jornal de massas do Partido — se mobilizaram para informar e orientar o povo. Era uma batalha épica, uma “guerra patriótica contra a besta-fera fascista e sua quinta-coluna nazi-integral-trotskista”. 

Importância da palavra Prestes

Se procurarmos indagar onde reside a importância da palavra de Prestes, vamos verificar que se acha no seu conteúdo. Ele é, além do líder político, o condutor intelectual que não pronuncia uma frase vã. As palavras de Oswald de Andrade, por quem Pedro Pomar nutria grande admiração — visitou o amigo até o fim de sua vida —, podem parecer exageradas, mas são a mais perfeita retratação do entusiasmo que tomou conta dos setores progressistas com o destaque que o Cavaleiro da Esperança alcançara. A Tribuna Popular saiu a campo para captar esse sentimento em São Paulo. Segundo Oswald de Andrade, a expectativa que se apossou da cidade decorria da energia que era a voz de Prestes.

Caio Prado Júnior disse que São Paulo o receberia de braços abertos. Segundo ele, o comício do Pacaembu seria igual ao de São Januário (o comício semelhante realizado em 23 de maio, no estádio de São Januário, do Clube de Regatas Vaco da Gama, no Rio de Janeiro). E, como lá, uma grande manifestação democrática. A marcha para a democratização do país teria em Prestes um expressivo marco. Jorge Amado também foi ouvido e declarou que o comício “São Paulo a Luiz Carlos Prestes” seria a maior demonstração do espírito unitário do estado. “O povo paulista receberá Prestes de braços abertos, pois vê no grande chefe aquele que conhece os problemas brasileiros, apresenta as soluções justas, e é o maior obstáculo ao golpe da quinta-coluna”, disse.

À Tribuna Popular, Pedro Pomar disse que o papel decisivo naquela tarefa patriótica representada pelo comício no Pacaembu seria desempenhado pela classe operária, que conquistara o posto por ser grandemente concentrada no estado de São Paulo e por sua combatividade. Ao contrário do que injustamente se dizia, afirmou, ela não era indiferente nem apática, da mesma maneira que não era o povo em geral. Se não respondia a apelos a que não podia atender pelo que encerravam de alheio e hostil aos seus interesses e anseios era porque a sua missão naquela hora consistia em derrotar os inimigos da unidade da classe e da unidade nacional. Isso ficaria demonstrado pelo seu comparecimento maciço ao comício do Pacaembu, em alianças com as forças democráticas que confiavam na sua maturidade política e ideológica, tão bem expressada na sua vanguarda, o Partido Comunista do Brasil.

Segundo Pedro Pomar, com a grande atividade das forças políticas no estado os comunistas procuravam realizar a tarefa que cabia ao PCB como destacamento avançado do operariado e do povo. Inflexíveis nas questões de princípios, os comunistas eram, ao mesmo tempo, flexíveis na ação política, destacou. “Temos procurado estabelecer contatos com todas as forças democráticas e progressistas, antepondo às muitas incompreensões que fizeram do negro passado o nosso inabalável propósito de unidade e cooperação para que se possa construir a grande pátria democrática, culta e emancipada, com que todos sonhamos”, disse.

Pedro Pomar informou que vinha de uma maratona de “proveitosas reuniões” com prestigiosos chefes políticos, com homens da indústria, da lavoura, do governo, que com atos inequívocos de compreensão e solidariedade patriótica e democrática trataram os comunistas como amigos. Debateram, em ambiente de respeito mútuo e de unidade, os problemas brasileiros fundamentais. Contribuiu para isso, disse Pedro Pomar, uma declaração de Mário Scott anunciando a intenção do PCB de participar da luta eleitoral procurando entendimentos com todas as forças democráticas e progressistas para constituir um parlamento capaz de legislar em benefício de todas as camadas do povo.

Segundo ele, as condições eram favoráveis ao combate às calúnias “do reacionarismo e dos agentes integralistas e trotskistas do capital colonizador isolacionista e muniquista”, que já não encontravam eco “nos meios bandeirantes”. Se o número não fosse tão grande, garantiu Pedro Pomar, poderia apontar as figuras com as quais se reunira para consolidar a ampla aliança do PCB em São Paulo.

Grandiosa jornada democrática

Um engenhoso plano de transportes foi montado para atender aos mais de cem mil participantes previsto pela Comissão Promotora do Comício “São Paulo a Luiz Carlos Prestes”. O Comitê Estadual do PCB divulgou uma proclamação convocando a população para a “festiva e grandiosa jornada democrática”. O evento foi anunciado também por rádio. “Domingo próximo, o líder democrático Luiz Carlos Prestes vem falar ao povo de São Paulo, com a sua autoridade de homem que desde 1924 tem sofrido pelo povo, que pelo povo tem lutado e que ao povo tem dedicado sempre o melhor da sua existência. E vem apresentar ao povo paulista suas ideias e de seu Partido sobre a situação nacional. Todos devem ir ouvi-lo falar, no Estádio do Pacaembu. Nós, trabalhadores do rádio, não poderemos faltar. Pouco importa a nossa opinião política, a nossa religião ou a nossa classe”, dizia um trecho do comunicado.

O Movimento Unificador dos Trabalhadores (MUT) igualmente promoveu intensos preparativos para a participação dos trabalhadores, organizando comissões por categorias. Cartazes cobriram as paredes e muros da capital paulista e panfletos circularam por toda a cidade. Um artigo do professor de música Cyro Brisolla — o conceituado “professor Cyro” da Academia Paulista de Música, fundada e dirigida por Eleazar de Carvalho — no Jornal do Comércio dizia que “nenhum brasileiro com um pouco de visão e que pretenda de verdade ver o país unido e em marcha para a democracia deixará de levar a Prestes nesse dia o tributo de sua admiração e reconhecimento”.

Quando os preparativos para o comício entraram na reta final, Pedro Pomar foi ao Aeroporto de Congonhas recepcionar Pablo Neruda. Era o dia 12 de julho de 1945, uma quinta-feira fria e garoenta. A fama do poeta, que durante a Segunda Guerra Mundial fez da sua poesia uma arma, levou um grande número de pessoas ao aeroporto, apesar do mau tempo. Logo ao descer do avião, ao lado da esposa, Delia Del Carril, Neruda recebeu uma calorosa homenagem do grupo de líderes operários, de escritores, de artistas e de jornalistas, liderado por Pedro Pomar e Diógenes Arruda Câmara.

O poeta foi saudado pelo escritor Sérgio Milliet, presidente da seção paulista da Associação Brasileira de Autores e Escritores; pelo representante do MUT, Benedito Dias Batista; por Jorge Amado, da Comissão Central do “Comício São Paulo a Luiz Carlos Prestes”; e por Oswald de Andrade, Paulo Mendes de Almeida, Maria Eugênia Franco, Jacinta Passos e outros membros da Comissão de Recepção a Pablo Neruda. Do aeroporto, ele se dirigiu ao hotel Esplanada, nas imediações da Praça da República, onde concedeu entrevista coletiva assim que se hospedou.

No dia seguinte, foi homenageado por escritores, poetas e jornalistas. Enquanto autografava livros de sua autoria, disse que o Brasil honrava a bandeira da democracia ao participar da gigantesca luta contra o hitlerismo “sedento de sangue”. “Sempre tivemos confiança no povo do Brasil, em todos esses anos de luta, de dores e de vitória. Ainda na prisão, Luiz Carlos Prestes era uma luz americana que se divisava desde a Europa (onde estava Neruda, apoiando a luta antifascista na Espanha). Sabemos que o povo do Brasil estava com o povo espanhol na sua heroica luta pela liberdade. Apesar de todo o silêncio que cobria o Brasil, quando o Chile lutava para levar a Frente Popular ao governo sabíamos que os trabalhadores dos campos e das cidades desejavam o triunfo dos partidos populares do Chile e de toda a América”, disse.

Segundo o poeta, com a nova era que se abria no Brasil, quando os homens podiam exprimir suas opiniões e quando Prestes podia guiar o seu povo, queria que soubessem os operários e os camponeses, as classes médias, os industriais progressistas, os intelectuais e os católicos o quanto interessava a vitória brasileira aos demais povos americanos, dos quais era um poeta militante. Comentou o papel dos partidos comunistas na Segunda Guerra Mundial, analisou a conjuntura chilena e se deteve nas considerações sobre o discurso de Prestes no comício de São Januário.

Para Neruda, os comunistas do Brasil forjavam um imenso movimento democrático destinado a ser a coluna dorsal da vida do país, evitando assim o transtorno futuro que produziria a ausência de uma consciência democrática do povo. Toda tentativa de golpe para a tomada do poder seria rechaçada por Prestes, avaliou. O poeta falava em tom exaltado, com a voz ardente. Levantou-se e, como se falasse consigo mesmo, indagou: Por quê? “Porque estas tentativas podem ser aproveitadas pelos inimigos da democracia e levarão a novos fracassos. Assim, pois, este momento de esperança deve servir para que se unam todos os homens e mulheres democratas do Brasil para que eles formem um imenso exército civil, sobre cuja base serão asseguradas, em definitivo, as conquistas democráticas do Brasil”, respondeu.

Neruda encerrou a rápida palestra e, acompanhado de Pedro Pomar e alguns membros da Comissão Organizadora do comício do Pacaembu, seguiu para uma exposição de José Pancetti, considerado um dos grandes paisagistas da pintura brasileira, no Instituto dos Arquitetos, a algumas quadras de onde estava. No trajeto, comentou a admiração pelo progresso de São Paulo e a ansiedade com que aguardava o momento de apertar a mão de Prestes, “el gran capitan”. Comentou também a distorção de suas declarações por dois jornalistas na entrevista do dia anterior, que lhe atribuíram afirmações “de cunho reacionário”. “Quero também expressar publicamente a confiança que despertaram em mim os dirigentes do Partido Comunista do Brasil”, disse ele. “A par da honestidade e da pureza de caráter que revelaram, eles demonstraram possuir excelente vitalidade e capacidade revolucionária”, completou.

A verve de Jorge Amado

Prestes chegou a São Paulo precisamente às dezoito horas e dez minutos do sábado, dia 14 de junho de 1945, vindo do Rio de Janeiro. Desembarcou dizendo que havia feito ótima viagem. A edição da Tribuna Popular daquele dia publicou um convite de Jorge Amado para o comício. Como homem de esquerda, convidava os “amigos” para ouvir no Pacaembu aquele que passara dez anos no cárcere por ter lutado contra o fascismo. Aquele que teve sempre os olhos fixos no Brasil e que soube, ao ser libertado, colocar as necessidades do povo sobre seus sentimentos individuais. Fazia o convite sem sectarismo. “No Pacaembu, vosso monumental estádio, só não cabem os traidores da pátria, os asseclas da quinta-coluna, que ainda guardam no coração a lama verde”, disse o escritor, referindo-se aos integralistas, a corrente fascista cujos membros ostentavam camisas verdes, o “galinhas verdes”.

Jorge Amado terminou o convite exercitando sua verve. “Lá vereis a Neruda, o chileno, a Lobato, o paulista. Lá vereis a Miguel Costa, o da Coluna, e a Mário Scott, o das locomotivas. A mulher paulista e o povo todo do Brasil. Luiz Carlos Prestes em meio dele, confundindo com ele. Eu vos convido, vinde todos, amanhã o vosso lugar é no estádio para bem do Brasil, para a grandeza da pátria”, escreveu.

O comício seria transmitido pela Rádio Cruzeiro do Sul, em ondas longas, e pela Rádio Difusora, em ondas longas e curtas, segundo a Comissão Organizadora do evento. Uma nota do Comitê Metropolitano do PCB do Rio de Janeiro na Tribuna Popular anunciou que seriam instalados vários alto-falantes no Largo da Carioca para transmitir o discurso de Prestes. “O Partido apela para todos os possuidores de rádio, inclusive rádios de automóvel, particularmente aos chauffeurs de praça, para que os façam ligar de maneira a serem ouvidos pelo maior número possível de pessoas. O mesmo espera o Partido que seja feito por todas as organizações populares que desejam contribuir para maior brilhantismo do grande acontecimento democrático”, dizia a nota, assinada por Francisco Gomes, secretário político do Comitê. Em muitas cidades o exemplo foi seguido.

Corsários nazifascistas

Até o céu estava colaborando para a grande festa no Pacaembu. De quinta (12) para sexta-feira (13), a chuva e o frio cederam lugar ao tempo firme. O sol brilhante do sábado prenunciava um domingo radioso. Não havia indícios de chuva e o serviço de meteorologia anunciara que afastava qualquer possibilidade de virada no tempo.

A previsão se confirmou. Quando os primeiros raios de sol surgiram naquele belo domingo de céu claro e temperatura baixa, o estádio do Pacaembu estava um espetáculo. Os artistas plásticos capricharam na decoração. Dois amplos painéis com motivos populares das cidades e dos campos ornamentavam a concha acústica (monumento arquitetônico que servia como anfiteatro e provocava um efeito acústico com o canto das torcidas, derrubado em 1970 para a ampliação das arquibancadas), visíveis de qualquer ponto do estádio. Na entrada do estádio estava um gigantesco retrato de Prestes pintado a óleo, com mais de quatro metros de altura. Nos pilares centrais do campo, flâmulas penduradas indicavam os nomes dos lugares onde se travaram as mais importantes batalhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB) e dos navios brasileiros torpedeados pelos corsários nazifascistas.

Nas grades do campo foram postos dísticos com palavras de ordem como estas: “O povo não quer golpe, quer eleições”, “O proletariado e a burguesia progressista construirão a democracia”, “O povo organizado destruirá a quinta-coluna”.  Nas torres laterais tremulavam bandeiras das Nações Unidas. No centro do campo, ocupando toda a extensão do gramado, letras de madeira formaram a palavra de ordem “Unidade, democracia e progresso”. Um grupo de torcedores dos clubes de futebol de São Paulo, uniformizados, organizou uma alegoria de efeitos patrióticos.

Uma série de comícios preparatórios nos bairros organizara os detalhes da apresentação, que seria filmada pelo cineasta Rui Santos. Nas primeiras horas da manhã, as delegações — algumas vindas do interior e de estados vizinhos — saíram das praças e de outros locais de concentração devidamente orientadas sobre como deveriam chegar ao estádio. Entraram carregando dísticos e bandeiras, cantando hinos patrióticos. O microfone instalado na tribuna de honra anunciava as delegações. Braçadeiras distinguiam, pelas cores, a origem de cada uma — amarelo para as caravanas do interior e de outros estados, verde-amarelo para o MUT, rosa para os clubes esportivos (poderiam ser também os respectivos uniformes), azul para os organismos de bairro. Às treze horas começaram os desfiles das delegações pelo campo.

Discurso de Monteiro Lobato

Pedro Pomar já estava na tribuna oficial, falando ao público, ao lado de outros dirigentes comunistas e de personalidades convidadas, quando, às quatorze horas e trinta minutos, foi anunciada a chegada de Pablo Neruda. Logo em seguida, com o Pacaembu já superlotado e os morros vizinhos tomados por uma massa considerável, entrou no campo o carro aberto que conduzia Prestes, sob intensos aplausos e ovações. Ao seu lado estava o antigo companheiro da Coluna Invicta, o general Miguel Costa, presidente da Comissão Central do comício. O carro deu uma volta no gramado, enquanto uma palavra ressoava pelo estádio: Prestes, Prestes, Prestes…  Em seguida, ele dirigiu-se à tribuna oficial.

Miguel Costa foi o primeiro a falar, seguido de Mário Scott. Luiza Pessanha Camargo Branco discursou em nome das mulheres, emocionando a multidão. Logo depois, foi anunciada a palavra de Monteiro Lobato, ao tempo em que era recomendado silêncio máximo porque, gravemente doente, ele ia ler de sua residência, ao telefone, o discurso de saudação a Luiz Carlos Prestes. A voz grave do escritor foi ouvida no mais absoluto silêncio.

Tenho como dever saudar Luiz Carlos Prestes porque sinceramente vejo nele uma grande esperança para o Brasil. Vejo nele um homem nitidamente marcado pelo destino. Vejo nele o único dos nossos homens que pelos seus atos e pelo amor ao próximo conseguiu elevar-se à altura de símbolo. Símbolo do quê? De uma mudança social, enorme canteiro em que as classes privilegiadas são as flores, e a imensa massa da maioria é apenas o esterco que engorda essas flores. Esterco doloroso e gemebundo.

Nasci na classe privilegiada e nela vivi até hoje, mas o que vi de miséria silenciosa nos campos e cidades me força a repudiar uma ordem social que está contente com isso e arma-se até com armas celestes contra qualquer mudança. A nossa ordem social me é pessoalmente muito agradável, mas eu penso em mim mesmo se acaso houvesse nascido esterco. Essa visão da realidade brasileira sempre me preocupou e sempre me estragou a vida. Nada mais lógico, pois, do que meu grande interesse pelo homem que não conheço, mas acompanho desde os tempos em que um punhado de loucos lutava contra todo o poder do governo.

E lutava por quê? Com que fim? Pela conquista do poder? Fácil lhe seria isso, como foi fácil para outros companheiros que desandaram. Prestes não lutava por. Lutava contra. Contra quê? Contra a nossa ordem social tão conformada com o sistema do mundo dividido em flores e esterco. E pelo fato de sonhar com a grande mudança foi condenado a trinta anos de prisão, como pelo fato de sonhar um sonho semelhante, Jesus foi condenado a morrer na tortura.

Os acontecimentos do mundo vieram libertar o nosso homem-símbolo e ei-lo hoje na mais alta posição a que um homem pode erguer-se em um país. Ei-lo na posição de força de amanhã. Na posição do homem que fatalmente será elevado ao poder e lá agirá para que o regime de flores e esterco se transforme em algo mais equitativo e humano.

Todos nós, um país inteiro, esperamos em Luiz Carlos Prestes; e esperamos nele tanto quanto desesperamos de outros cujos programas de governo botam acima de tudo a “manutenção da ordem”, isto é, a conservação do sistema de flores e esterco. E qualquer coisa no fundo da nossa intuição nos diz que Prestes não nos decepcionará, e que um dia o antigo Cavaleiro da Esperança se transformará no Realizador das Nossas Esperanças.

A luta não é minha. A luta é de todos nós.

Suas últimas palavras foram cobertas pelos aplausos. Terminada a fala de Monteiro Lobato, Pedro Pomar anunciou, após uma breve saudação, que o orador seguinte seria Pablo Neruda. Soaram os acordes do hino nacional chileno, ouvido de pé pela multidão. O poeta famoso leu, então, no ritmo dos aplausos, o poema escrito para aquela ocasião, intitulado Dito no Pacaembu.

Quantas coisas quisera hoje dizer, brasileiros,

quantas histórias, lutas, desenganos, vitórias,

que levei anos e anos no coração para dizer-vos, pensamentos

e saudações. Saudações das neves andinas,

saudações do Oceano Pacífico, palavras que me disseram

ao passar os operários, os mineiros, os pedreiros, todos

os povoadores de minha pátria longínqua.

Que me disse a neve, a nuvem, a bandeira?

Que segredo me disse o marinheiro?

Que me disse a menina pequenina dando-me espigas?

Uma mensagem tinham. Era: Cumprimenta Prestes.

Procura-o, me diziam, na selva ou no rio.

Aparta suas prisões, procura sua cela, chama.

E se não te deixam falar-lhe, olha-o até cansar-te

nos conta amanhã o que viste.

Hoje estou orgulhoso de vê-lo rodeado

por um mar de corações vitoriosos.

Vou dizer ao Chile: Eu o saudei na viração

das bandeiras livres de seu povo.

Me lembro em Paris, há alguns anos, uma noite

falei à multidão, fui pedir auxílio

para a Espanha Republicana, para o povo em sua luta.

A Espanha estava cheia de ruínas e de glória.

Os franceses ouviam o meu apelo em silêncio.

Pedi-lhes ajuda em nome de tudo o que existe

e lhes disse: Os novos heróis, os que na Espanha lutam, morrem,

Modesto, Líster, Pasionaria, Lorca,

são filhos dos heróis da América, são irmãos

de Bolívar, de O’ Higgins, de San Martín, de Prestes.

E quando disse o nome de Prestes foi como um rumor imenso.

no ar da França: Paris o saudava.

Velhos operários de olhos úmidos

olhavam para o futuro do Brasil e para a Espanha.

Vou contar-vos outra pequena história.

Junto às grandes minas de carvão, que avançam sob o mar,

no Chile, no frio porto de Talcahuano,

chegou uma vez, faz tempos, um cargueiro soviético.

(O Chile não mantinha ainda relações

com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Por isso a polícia estúpida

proibiu que os marinheiros russos descessem,

e que os chilenos subissem).

Quando a noite chegou

vieram aos milhares os mineiros, das grandes minas,

homens, mulheres, meninos, e das colinas,

com suas pequenas lâmpadas mineiras,

a noite toda fizeram sinais, acendendo e apagando,

para o navio que vinha dos portos soviéticos.

Aquela noite escura teve estrelas:

as estrelas humanas, as lâmpadas do povo.

Também hoje, de todos os rincões

da nossa América, do México livre, do Peru sedento,

de Cuba, da Argentina populosa,

do Uruguai, refúgio de irmãos asilados,

o povo te saúda, Prestes, com suas pequenas lâmpadas

em que brilham as altas esperanças do homem.

Por isso me mandaram, pelo vento da América,

para que te olhasse e logo lhes contasse

como eras, que dizia o seu capitão calado

por tantos anos duros de solidão e sombra.

Vou dizer-lhe que não guardas ódio.

Que só desejas que a tua pátria viva.

E que a liberdade cresça no fundo do Brasil como árvore eterna.

Eu quisera contar-te, Brasil, muitas coisas caladas,

carregadas por estes anos entre a pele e a alma,

sangue, dores, triunfos, o que devem se dizer

o poeta e o povo: fica para outra vez, um dia.

Peço hoje um grande silêncio de vulcões e rios.

Um grande silêncio peço de terras e varões.

Peço silêncio à América da neve ao pampa.

Silêncio: com a palavra o Capitão do Povo.

Silêncio: que o Brasil falará por sua boca.

Seria a vez de Prestes discursar. Antes, todos cantaram, de pé, o Hino Nacional brasileiro. Faltava pouco para as dezoito horas quando o comício terminou. Acompanhado de Pedro Pomar, Prestes visitou a sede da Comissão Central do comício, na Praça da República, para agradecer aos voluntários que organizaram o evento. Segundo a Tribuna Popular, funcionários do Pacaembu calcularam que cento e trinta mil pessoas estiveram presentes. Além das arquibancadas apinhadas, os corredores e os espaços em frente à tribuna foram totalmente tomados. Nos bairros, os cafés, restaurantes e confeitarias se encheram, todos ouvindo a transmissão pelo rádio.

Pablo Neruda estava entusiasmado. “Este comício supera todas as manifestações a que eu havia assistido, em qualquer parte do mundo”, disse ele. Recordava as gigantescas mobilizações das frentes populares que vira na Espanha e na França às vésperas da Segunda Guerra Mundial. “Pablo Neruda me disse e eu acredito: foi o maior espetáculo político jamais visto na América do Sul”, afirmou o dirigente comunista Agildo Barata.

O pintor Cândido Portinari também estava eufórico. “Nem sei o que dizer. Achei as palavras de Prestes uma coisa fantástica, fabulosa. Ele aponta o caminho que o povo deve seguir.” O escritor Graciliano Ramos foi na mesma toada: “Considero o discurso de Prestes em São Paulo uma excelente resposta aos provocadores.” Para Diógenes Arruda Câmara, o comício demonstrara que “o nosso glorioso Partido cumprirá com responsabilidade o seu dever de vanguarda dirigente, assegurando essa vitória, que não será apenas nossa, mas também de todos brasileiros que amam a sua pátria”.  

Os intelectuais ao lado do povo

É preciso, é preciso, capitão! A resposta de Monteiro Lobato a Luiz Carlos Prestes era sobre a necessidade de um poderoso Partido Comunista no Brasil. Eles conversavam a respeito das impressões do secretário-geral do PCB em relação à União Soviética. “Capitão, que de melhor e mais útil o senhor viu na União Soviética, que mais lhe impressionou?”, indagou o escritor, segundo a Tribuna Popular. “Vi muita coisa, mas de uma me convenci: o quanto é difícil construir o socialismo! E mais: que isso só é possível com um poderoso instrumento — o partido comunista bolchevista”, respondeu Prestes. Lobato quis saber se no Brasil era possível organizar um “instrumento” semelhante. “Temos todas as condições para construir em nosso país um poderoso Partido Comunista”, disse o Cavaleiro da Esperança, constatação de pronto apoiada pelo escritor.

A visita a Lobato era parte da agenda programada para os dias seguintes ao comício do Pacaembu. Pedro Pomar acompanharia Prestes e Pablo Neruda em diversas atividades. Na terça-feira, dia 17 de julho de 1945, participaram de uma recepção aos intelectuais paulistas oferecida na residência do escritor e jornalista Maurício Goulart, ligado a Miguel Costa e com ativa militância na ANL, no bairro de Higienópolis. Compareceram à festa figuras como Sérgio Milliet, Oswald de Andrade, Caio Prado Júnior e Jorge Amado. No dia seguinte, seria a vez da primeira conferência de Neruda, organizada pelo Comitê de Jornalistas Democráticos, com o tema “Povo e Poesia”. Ainda na quarta-feira, Pedro Pomar, Neruda e Prestes visitaram Monteiro Lobato em sua residência.

Além da cortesia, a visita a Monteiro Lobato teve o propósito de sondar a disposição do escritor brasileiro para se candidatar a deputado federal. Poucos dias depois, seu nome foi anunciado na chapa apresentada pelo Comitê Estadual paulista do PCB. Lobato desistiria da candidatura por discordar do apoio do Partido ao governo, que ele chamou de “perdão a Getúlio”. No Estado Novo, o escritor fora condenado pelo Tribunal de Segurança Nacional depois de ter enviado cartas ao presidente da República e ao então ministro da Guerra Góis Monteiro — que precedera Eurico Gaspar Dutra no cargo — dizendo que eles cometiam crimes de lesa-pátria com a vergonhosa subserviência às imposições da Standard Oil, sabotando na prática o potencial industrial petrolífero brasileiro. Cumpriu pena no Presídio Tiradentes, em São Paulo, parte dela em regime de incomunicabilidade. Na prisão, conhecera o comunista José Maria Crispim e se aproximou do PCB. Lobato era admirador de Prestes desde a Coluna Invicta.

A atitude de Vargas jamais seria perdoada. “Ora, veja: umas cartinhas sem importância, que poderiam ter ficado sepultadas nas gavetas das secretarias do governo, agora andam por aí fazendo um furor. Eu não pretendia tanto. São uns imbecis, uns idiotas!”, disse Lobato.

Ele lamentou ter encontrado o PCB já em idade provecta e ressaltou a importância dos comunistas. “Já estou velho, doente, cansado. Encontrei vocês muito tarde. Se eu fosse mais moço…”. Disse ter encontrado nos comunistas um mundo novo, que não acreditava poder existir. “Vocês resgataram minha confiança no futuro da humanidade. Vocês estão certos. Por isso são invencíveis. De nada valerão as perseguições e violências dos poderosos. Vocês constituem um movimento vitorioso pela força dos princípios. Nada poderá impedir a transformação do mundo. E vocês são o artífice dessa transformação”, afirmou, completando que se tornara “admirador do único partido honesto que já vi”.

Apesar dos apelos de Prestes, Pedro Pomar, Jorge Amado, Caio Prado Júnior e Artur Neves — que, além de membro do PCB, era editor de Monteiro Lobato na Companhia Editora Nacional (depois o foi também na Editora Brasiliense, quando os dois se mudaram para lá) — para que mantivesse a candidatura, Lobato foi irredutível.

Na tarde do dia 9 de setembro de 1945, quando Prestes concedeu entrevista coletiva na sede paulista do PCB, na Rua da Glória, o escritor Edgard Cavalheiro entregou-lhe uma carta. Nela estavam as razões da irredutibilidade de Lobato. “Venho pedir a eliminação do meu nome da lista dos candidatos a deputado pelo PCB. O meu precário estado de saúde impede-me ser, nessa falange, o que cumpre a todos: capaz, ativo, militante. Um Partido tão novo e saudável não pode começar a sua vida de parlamento com uma deficiência na primeira linha de combate. Para as grandes lutas requerem-se guerreiros em perfeita forma. Com a maior cordialidade, abraça-o o amigo e companheiro de ideais”, escreveu.

Depois da prisão, Lobato começou a adoecer rapidamente. Sentia cólicas de fígado, segundo um médico que o atendeu consequência de “trauma moral”. Passou a desenvolver também uma espécie de asma. Foi diagnosticado um cisto no pulmão. A solução seria uma intervenção cirúrgica. No leito do hospital, escreveu a carta para Prestes pedindo a eliminação do seu nome da lista de candidatos do PCB. Datada de 7 de setembro, foi escrita em duas vias para que uma fosse entregue à imprensa. Com a divulgação da sua posição, a desistência estaria consumada, evitando que seus amigos voltassem a insistir para que a revisse. “Não sirvo para deputado e não quero debater com tão bons amigos”, disse. 

Indignado com a prisão e ressentido com Vargas, Lobato optou por deixar o país, indo para a Argentina, onde ficou algum tempo em exílio voluntário. Ele voltaria ao assunto em 1947, reconhecendo que adotara uma posição errada. Em carta de solidariedade a Prestes no episódio dos provocadores que recorreram a uma hipotética guerra entre o Brasil e a União Soviética para acusar os comunistas de impatriotas por defenderem o país socialista, ele comentou sua decisão de desistir da candidatura a deputado federal pelo PCB. Prestes respondeu, também em carta, que nem sempre era possível fazer o que mandam os desejos e os sentimentos pessoais, “obrigados que somos, por convicção profunda e científica, de que muito acima de nossos sentimentos e paixões estão os interesses do proletariado”. “Compreendo agora que não foi propriamente por culpa nossa que você nos abandonou”, disse.  

O amigo do povo morreu

Pedro Pomar deu imensa importância ao encontro de Prestes com Monteiro Lobato, para ele um brasileiro de grande valor. Quando visitou João Saldanha, que se recuperava de uma doença pulmonar no Sanatório Vicente Aranha, na cidade de São José dos Campos, ele fez questão de levar Lobato, por quem o famoso jornalista e militante comunista nutria grande admiração. “Estivemos juntos por pouco tempo, mas guardei para sempre a melancolia e a infinita doçura daquele homem”, disse Saldanha.

A morte de Lobato, em 4 de julho de 1948, causou comoção nacional, em especial entre os comunistas. Diógenes Arruda Câmara disse na Câmara dos Deputados que a personalidade de Monteiro Lobato era tão rica que para examiná-la de maneira mais precisa seria necessário citar alguns fatos que definiam bem a sua posição na política brasileira. Citou a luta do escritor contra o Estado Novo, a sua participação na campanha da anistia em 1945 e a sua posição “firme e clara” contra a cassação do registro do PCB. “A grande homenagem de Monteiro Lobato nesta época foi, ao chegar do Prata, solicitar inscrição nas fileiras comunistas, porque nessas estava, realmente, seu lugar como escritor de vanguarda”, afirmou.

José Maria Crispim escreveu no jornal A Classe Operária que a morte do escritor foi dolorosa para o povo. “Sim, escritor, o homem bom, o amigo do povo morreu. Seu desaparecimento se dá no momento em que crescem as manobras imperialistas visando assaltar nossas reservas petrolíferas”, afirmou. “Os jornais da reação, noticiando o fato doloroso, como velhas carpideiras, apressaram-se em derramar lágrimas de crocodilo. Essa imprensa de aluguel que silenciou na ocasião em que Lobato foi preso e condenado pelo tribunal fascista do Estado Novo e que não protestou quando, recentemente, uma edição de seu último livro, de combate ao latifúndio, Zé Brasil, foi apreendida pela polícia de São Paulo e de outros Estados, procura falsear o sentido da obra e da vida do grande escritor. Não diz uma palavra sequer sobre a atitude do grande patriota em defesa do nosso petróleo ameaçado pelos trustes imperialistas”, escreveu. “Morreu Lobato em plena batalha anti-imperialista. Tombou como um soldado da boa causa, como um guerrilheiro que jamais se rendeu”, completou.

O mesmo jornal publicou a seguinte nota:

Com a morte de Monteiro Lobato, ocorrida nesta semana, não é somente a cultura que perde a sua mais forte e mais autêntica expressão nos dias de hoje. É também o povo brasileiro que se vê desfalcado de uma das mais corajosas figuras do movimento patriótico de libertação nacional. De fato, o que caracterizava Monteiro Lobato, apurando o seu talento e dando uma verdadeira popularidade à sua obra, era o patriotismo consequente, a preocupação honesta e constante pelos problemas de nosso povo, pelo progresso de nossa gente.

Esse patriotismo é que fez de Lobato um revolucionário de nossa cultura e, depois, um revolucionário militante, aproximando-o cada vez mais de Prestes e dos comunistas, a cujo Partido se filiou com orgulho nos últimos anos de sua existência. E é isso, sem dúvida, o melhor de seu exemplo e a razão de sua grandeza. O seu exemplo é o de que, nos dias de hoje, é impossível se ser patriota, lutar pelo progresso e pela felicidade de nosso povo, pela independência nacional, sem se marchar junto dos comunistas, ao lado dos comunistas, quando não seja dentro de suas fileiras.

Lutando contra o atraso semi-feudal de nossa terra, pela exploração de nosso petróleo, pela industrialização nacional, pela liberdade e pela democracia, Monteiro Lobato, filho das classes dominantes, com a sua inteligência, sua cultura e sua corajosa honestidade, teve de encontrar-se com a vanguarda do proletariado, com o Partido de Prestes — aprendendo a admirá-lo e compreendendo-o dentro das próprias prisões. Este encontro com o proletariado e seu Partido deu a Lobato novos horizontes, libertando-o do ceticismo, do desespero ou do cinismo apodrecido em que se afundam os intelectuais que se confinam no ambiente mesquinho das classes dominantes. Compreendendo isso é que o povo paulista, representando o povo brasileiro, soube prestar no enterro de Monteiro Lobato uma vigorosa consagração à sua memória.

No enterro de Monteiro Lobato, Pedro Pomar fez um vibrante discurso sobre sua campa em nome dos comunistas brasileiros e de Prestes.

Maratona em São Paulo e no Rio de Janeiro

Depois da visita a Monteiro Lobato, Prestes despediu-se de Neruda. Precisava voltar ao Rio de Janeiro com certa pressa a fim de preparar a primeira reunião legal da direção do PCB, na qual reencontraria o poeta chileno. Até uma visita prevista em algumas cidades do interior do estado fora cancelada.

Na quinta-feira, Neruda participou da conferência “O Partido Comunista e os intelectuais” em uma recepção oferecida pelo PCB de São Paulo. Pedro Pomar fez uma longa exposição, comentando o que os comunistas esperavam dos “escritores democráticos e progressistas”. Falaram também Oswald de Andrade, José Geraldo Vieira e Jorge Amado. Neruda fez uma saudação aos intelectuais de São Paulo e Diógenes Arruda Câmara encerrou a conferência.   

Após a maratona em São Paulo, seria a vez do Rio de Janeiro de receber o poeta chileno. O PCB organizou uma comissão com renomados intelectuais para receber Neruda no Distrito Federal, integrada por Sérgio Buarque de Holanda, presidente da Associação Brasileira de Escritores; Manuel Bandeira, da Academia Brasileira de Letras; Carlos Drummond de Andrade, Álvaro Moreira, Aníbal Machado, Astrojildo Pereira, Vinícius de Morais, Moacir Werneck de Castro, Lia Correa Dutra e Dalcídio Jurandir. Maurício Grabois e Rossildo Magalhães representaram o Partido Comunista do Brasil. No Rio de Janeiro, Neruda realizaria uma conferência na sede da União Nacional dos Estudantes e participaria da abertura do “Pleno da Vitória” — a primeira reunião legal da direção nacional do PCB depois do golpe do Estado Novo.

Alicerces do velho sistema capitalista

Os encontros de Prestes com Neruda e Lobato foram de grande valia para os comunistas brasileiros, segundo Pedro Pomar. Ele comentou o assunto na intervenção que pronunciou em São Paulo durante a conferência de intelectuais com Pablo Neruda, ainda sob o impacto do sucesso do comício no Pacaembu. “Saudamos com alegria a oportunidade deste encontro, o primeiro encontro público do nosso Partido com a intelectualidade de vanguarda da nossa pátria. E o fazemos sob a inspiração de dois grandes acontecimentos: o camarada Prestes advertindo os intelectuais do perigo de que estão ameaçados e apontando o caminho certo; e o encontro de Prestes com o nosso amigo Monteiro Lobato”, disse ele na abertura do evento.

O significado desses acontecimentos, de acordo com Pedro Pomar, residia em um fato inteiramente novo, que era o surgimento do PCB como expressão das forças mais jovens da liberdade e da cultura, e para as quais se dirigiam a ciência, a literatura e a arte de vanguarda, no constante combate que travavam para o progresso e o aperfeiçoamento da civilização.

Em silêncio, a plateia ouviu aquele paraense de fala mansa e contundente, sem oscilar o tom de voz, passar pela breve história do Partido Comunista do Brasil, segundo ele resultado do movimento proletário e revolucionário que, após a guerra de 1914-1918, sacudiu os alicerces do velho sistema capitalista. Não tinha horizontes fechados nem ficava emaranhado no confuso labirinto dos sofismas e da demagogia vulgar, comentou. Sabia o que queria e para onde ia porque utilizava em seus trabalhos a doutrina científica de Marx, Engels e Lênin.

Permitissem que fizesse aqueles esclarecimentos, disse. Fatos eram fatos, emendou. “Partamos, porém, do princípio de que concordais conosco que o marxismo é a ciência do estudo da vida social e que pode adquirir a mesma precisão das demais ciências, oferecendo-nos a possibilidade da aplicação prática das leis que governam o desenvolvimento da sociedade”, prosseguiu. “Todas as pessoas que tomam conhecimento da nossa filosofia e de nossas atividades sabem realmente que nosso trabalho tem fundo científico e artístico. Tal o motivo porque nos sentimos tão à vontade no convívio com os homens de cultura de nossa pátria.”

Dirigindo-se aos presentes como “amigos intelectuais”, Pedro Pomar recorreu ao escritor soviético Máximo Gorki para repetir sua clássica pergunta: Com quem estais? A resposta vinha do anseio dos intelectuais, reflexo das antigas aspirações do povo, por cultura e liberdade. Uma “vasta literatura” comprovava os compromissos dos comunistas com a ciência, com a arte e com o “valor do pensamento humano”. “Temos nesta hora o dever de apelar para vosso sentimento democrático, para vosso espírito de combate a favor do avanço da cultura, contra a intolerância e o preconceito que impedem o entendimento entre os brasileiros”, disse. O país vivia uma nova realidade e, como afirmava Engels, cada novo descobrimento o materialismo deve assumir um novo aspecto, asseverou.

Habilidoso com as palavras, Pedro Pomar foi envolvendo a plateia, encadeando os conceitos e encaixando apelos para a consciência de que o lugar dos intelectuais era na esquerda. “Amigos intelectuais! A nossa palestra convosco tem o caráter cordial de amigos, o calor fraternal de irmão da mesma luta pelo avanço da ciência, da literatura e da arte. Os verdadeiros comunistas são cientistas e artistas. Cientistas pelo que têm provado o marxismo como método de interpretação científica da natureza e da sociedade. Artistas porque exprimem a consciência da luta revolucionária da classe operária, que é a mais alta forma de consciência social. A verdadeira arte é aquela em que a forma de trabalho corresponde ao seu conteúdo. A arte para o militante comunista consiste em ver o novo no processo da evolução social e saber criar formas de lutas adequadas a cada instante”, afirmou.  

Havia em suas palavras preocupação com a influência do trotskismo em São Paulo, berço de autênticos “escribas do fascismo”. O PCB nascera sob a influência dos anarquistas e sua formação não foi das melhores, explicou. A composição dos quadros dirigentes era mais de origem pequeno-burguesa do que proletária. Por aí chegaram os trotskistas. Outro fator que permitiu a entrada do trotskismo no Partido, analisou, foi que em São Paulo as contradições de classe apareciam mais do que em outros estados. Pedro Pomar não se alongou no assunto, mas referia-se a um agrupamento comunista paulista que assumiu a bandeira trotskista.

As palavras de Pedro Pomar denotavam uma grande preocupação dos comunistas com o trotskismo. “Trotskismo, para nós, através de provas exuberantes e irrefutáveis, deixou há muito de ser uma ideia política para se transformar em bando de agentes terroristas do fascismo. Pela importância dessa questão, nosso Partido está com intenção de fazer um trabalho especial sobre ele”, disse. Era dever dos comunistas chamar a atenção sobre os prejuízos que a mentira e a calúnia trotskistas haviam feito, especialmente entre os intelectuais, afirmou. O maior deles era que os comunistas não admitiam críticas nem liberdades. De novo, Pedro Pomar recorreu a Engels: “O livre arbítrio não é nem pode ser outra coisa que a capacidade de decidir-se com conhecimento de causa.”

Aquele encontro com os intelectuais, disse Pedro Pomar, tinha grande significado porque dava a oportunidade de informar que foram os comunistas os maiores inimigos do maior inimigo da cultura: o fascismo. “Não devem apagar-se de nossas memórias as fogueiras de livros, o sofrimento dos sábios e dos poetas, o exílio de tantos seres, os campos de concentração, as universidades fechadas, com seus mestres substituídos por ignorantes e fanáticos”, enfatizou. A intelectualidade devia inspirar-se na vida do povo, nas lutas do povo, nas aspirações do povo.

O comunismo é a juventude do mundo

Os maiores intelectuais brasileiros sempre foram homens ligados ao povo, defensores do povo, de acordo com Pedro Pomar. “Monteiro Lobato nos conta ademais que soubemos, como povo, erigir monumentos a revoltosos — isto como a melhor expressão do nosso sentimento progressista e revolucionário. Dessa forma, queremos vos relembrar os escritores, cientistas e poetas que escreveram, estudaram as vozes, o potencial e os anseios do povo e da terra brasileira, desde Gregório de Matos, o poeta da escola bahiana, até os rebeldes da Inconfidência. Desde os intelectuais da Independência até os abolicionistas. Desde os republicanos até os que, como Euclides da Cunha, Manoel Bonfim, Lima Barreto, João Ribeiro e Domingos Ribeiro, liam Marx e procuraram assimilar o marxismo. Antes da morte, como outros, João Ribeiro exaltou o marxismo e chegou a declarar: O futuro do mundo é o comunismo. O que nos traz à memória a frase de Vaillant-Couturier, fundador da Casa de Cultura da França, de que ‘o comunismo é a juventude do mundo’”, comentou.

Lembrou que intelectuais brasileiros, ao lado dos operários, fundaram o PCB — entre eles, Octávio Brandão e Astrojildo Pereira. E pediu permissão aos “amigos e companheiros” para falar sobre o que pensava o PCB a respeito de alguns pontos referentes à arte e à literatura. Apesar de tudo o que já havia sido dito e escrito, tentavam impingir nos intelectuais uma concepção que não era a dos comunistas. Ressalvou que todo intelectual precisaria ter uma compreensão exata dos fenômenos e uma visão realista dos problemas da sociedade. “Saiba-se, porém, que não confundimos literatura com propaganda política, com arte e literatura de tendência. Uma obra de arte, mesmo que reflita opiniões contrárias às nossas, nunca deixou de ser admirada por nós, como obra de arte. Que o entusiasmo dos comunistas por Dante, Shakespeare, Tolstoi e Castro Alves testemunhe o que afirmamos. Que os conceitos de Marx sobre Diderot e Balzac sirvam de prova para essa opinião”, disse.

O Partido e a classe operária precisavam — segundo Pedro Pomar — que os intelectuais, com sua arte e espírito de pesquisa, ajudassem a realizar a grande tarefa imposta pela história. Deixou claro que não seriam impostas obrigações. “Estas vós a assumis com o povo, com a cultura, com a liberdade de criar e pensar”, enfatizou. E indagou: “Qual a situação de nossos homens de ciência, técnicos, escritores, poetas, jornalistas, pintores, escultores, professores, engenheiros, médicos, agrônomo? Nossa instrução pública, senhores, como vive?” O Brasil estava atrasado, se distanciando progressivamente dos países mais adiantados. Milhões de brasileiros não sabiam ler, não podiam compreender a música, a poesia e a pintura.

Pedro Pomar encerrou a conferência dizendo que para atingir o ideal de progresso, democracia e desenvolvimento pacífico, era preciso construir, com o auxílio de todos os brasileiros, de qualquer tendência ou partido, crença ou raça, a sólida união nacional. Seria esse o caminho para “o mundo novo que almejamos, o mundo da liberdade e da justiça, o mundo onde a cultura não sofra nenhuma limitação e o espírito criador do homem se expanda sem solução de continuidade, o mundo onde tenhamos a oportunidade de dizer: “Anteriormente, todo o espírito humano, todo o seu gênio criava apenas para dar a uns todos os bens da técnica e privar os outros do indispensável — da instrução, do desenvolvimento intelectual.”

Dirigiu aos intelectuais presentes uma enfática conclamação. “Em nome dessa imensa tarefa histórica, não vale a pena trabalharmos? Não vale a pena entregarmos todas as nossas forças? Concitamos-vos a lutar conosco, como tendes feito, a lutar pela unidade de nosso povo, tanto para a conquista como para a defesa da cultura. Assim poderemos concluir, como Lênin, que os comunistas trazem em si as grandes forças latentes do renascimento e da renovação.”