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O governo Allende e os 50 anos do golpe no Chile: do sonho à tragédia

22 de agosto de 2023

O assessor internacional da Fiocruz e pesquisador do Laboratório de Análise Política Mundial (Labmundo), Tiago Nery, relembra o golpe que derrubou Allende no Chile em 1973.

Por Tiago Nery

La estrella de la esperanza

Continuará siendo nuestra.

Victor Jara

O dia 11 de setembro de 2023 marca os 50 anos do golpe militar no Chile, que derrubou Salvador Allende e interrompeu a primeira tentativa de transição pacífica para o socialismo na história. A chamada “via chilena”, que prometia “uma revolução ao sabor de empanadas e vinho tinto”, foi um processo revolucionário único, atraindo olhares e pessoas de diferentes partes do mundo. Todavia, o sonho do socialismo democrático daria lugar a uma ditadura brutal que durou 17 anos, assassinando e torturando milhares de pessoas e transformando o Chile no primeiro laboratório mundial do neoliberalismo.

            Allende e a Unidade Popular (UP) criaram um novo paradigma de revolução, que se apoiava em coalizões partidárias em regimes democráticos. O experimento chileno transcendeu o pequeno país sul-americano e despertou atenção do exterior. Na Itália e na França, onde partidos comunistas e socialistas tinham chances de chegar ao poder, a Unidade Popular abria uma fresta para o futuro. Henry Kissinger, conselheiro de segurança do presidente Nixon, temia o “insidioso efeito modelo” do governo Allende, mencionando especificamente a Itália, cujo Partido Comunista Italiano tinha chances reais de chegar ao poder pela via eleitoral (Simon, 2021; Winn, 2010).

            Para Washington, as forças armadas latino-americanas e os escritórios das grandes empresas transnacionais, o melhor antídoto contra o “vírus chileno” era a proliferação de regimes anticomunistas, como o do Brasil. De fato, a estratégia de desestabilização do governo Allende, a “fórmula para o caos” segundo expressão da CIA, foi semelhante à empregada pelos Estados Unidos e pelas elites brasileiras no golpe militar que havia derrubado João Goulart em 1964.

Para entender o processo histórico que culminou na ascensão e na queda de Allende, analisaremos a história recente do Chile; a trajetória de Allende e da esquerda rumo ao poder; e a Revolução Chilena, com suas conquistas e contradições que levaram ao golpe de 11 de setembro de 1973.

Breve história do Chile e o mito da excepcionalidade democrática

A independência do Chile ocorreu entre 1811 e 1818 e foi liderada por Bernardo O’Higgins, que contou com a ajuda do argentino José de San Martín. O’Higgins governou como presidente supremo até 1822. Seguiu-se a experiência fracassada do federalismo sob a tutela de governantes liberais anticlericais, que foram sucedidos pelos conservadores liderados por Diego Portales, em 1830. A consolidação do Estado portaliano e a Constituição conservadora de 1883 estabeleceram uma república autocrática e um Estado centralizado. Para alguns analistas, o Chile foi o primeiro Estado moderno da América espanhola.

            A economia chilena ficou muito dependente da exportação de cobre e prata durante o século XIX. Na década de 1870, o declínio dos preços internacionais causou uma profunda crise econômica e social. A resposta do Chile foi a Guerra do Pacífico (1879-1883) contra a Bolívia e o Peru, que levou ao apoderamento dos recém-descobertos desertos de nitrato daqueles países. Entre 1884 e 1914, ocorreu o boom do nitrato, um período marcado pelo enriquecimento das elites do país e das companhias britânicas, mas a um alto custo para os trabalhadores. As lutas dos mineiros foram lendárias, culminando com o massacre de Santa Maria, em Iquique (Winn, 2010).

As elites chilenas estavam divididas sobre a melhor maneira de usar os lucros derivados do nitrato. O presidente liberal José Balmaceda iniciou um projeto de reformas que procurou usar o Estado para ampliar a posse chilena dos campos de nitrato, limitando os monopólios britânicos. Balmaceda pretendia ainda reforçar o desenvolvimento capitalista do campo e estimular a industrialização. Entretanto, seus oponentes no Congresso provocaram, com a ajuda britânica, uma guerra civil. Segundo o sociólogo Tomás Moulian (2002), a guerra civil marcou o início antecipado do século XX chileno. Balmaceda, o presidente chileno que Allende mais admirava, cometeu suicídio – uma trajetória semelhante à do próprio Allende oito décadas mais tarde.

            Entre 1891 e 1924, o Chile teve uma República Parlamentar elitista, um pseudoparlamentarismo marcado por governos débeis que repartiam prebendas entre grupos oligárquicos enquanto usavam a força do Estado para reprimir a classe trabalhadora. Entre 1920 e 1925, o presidente Arturo Alessandri aproveitou-se da crise do modelo primário-exportador para introduzir a questão social no Chile. Entre 1924 e 1932, houve um ciclo de desordem e ingovernabilidade. Os governos de Alessandri e Carlos Ibáñez conseguiram aprovar uma nova Constituição que punha fim à República Parlamentar elitista e restaurava o Executivo forte. Ademais, conseguiram aprovar uma legislação trabalhista que legaliza os sindicatos e as greves (Moulian, 2002).

            Em 1932, o coronel Marmaduke Groove liderou um golpe militar e declarou o Chile a primeira “República Socialista” das Américas, que durou apenas doze dias. O país havia sido fortemente atingido pela crise de 1929, perdendo 80% de sua renda de exportação (Winn, 2010). Esse impacto fez com que o Chile fosse um dos países que mais apoiariam a criação da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), em 1948. Nesse período, “socialismo” havia se tornado uma ideia corrente num país falido, mas estava mais próximo de um capitalismo de Estado do que do marxismo.

            Entre 1932 e 1973, o Chile atravessou cinquenta anos de uma suposta estabilidade política, que o tornava uma exceção numa região tão conturbada. No entanto, entre a independência e 1970, o país atravessou guerras civis e golpes de Estado. Porém, o fato de que não haver um golpe de Estado desde 1932 não significava que a ameaça não existia. A suposta excepcionalidade estava construída sobre a mistura perigosa do esquecimento e da mistificação. Esquecimento dos tempos de governos oligárquicos e repressivos que predominaram entre 1891 e 1932; esquecimento das leis que proscreveram os comunistas entre 1948 e 1958 (Moniz Bandeira, 2008; Moulian, 2002). O excepcionalismo chileno afigurava-se mais como mito do que realidade. Essa ilusão empurraria a sociedade chilena para grandes aventuras, culminando na crença ingênua sobre o suposto apego das forças armadas do país à legalidade democrática.

A trajetória das forças de esquerda e de Allende rumo ao poder

Na década de 1930, diante do avanço do nazifascismo, as forças progressistas tentaram criar frentes políticas amplas que envolvessem liberais, social-democratas e comunistas. Governos de Frente Popular chegaram ao poder na Espanha, na França e no Chile. A Frente Popular chilena era uma coalizão de centro-esquerda hegemonizada pelo Partido Radical, mas que incluía pela primeira vez os Partidos Comunista e Socialista. Em 1938, a vitória de Pedro Aguirre Cerda deu à esquerda uma experiência de governo, deslocando a oligarquia e inserindo as classes médias no governo.

Em 1932, Allende se formou em medicina a tempo de lutar pela República Socialista de Grove, que era seu primo, sendo preso por suas ações. Ao ser libertado, jurou dedicar sua vida à luta social. Em 1933, Allende foi um dos fundadores do Partido Socialista em Valparaíso, que o elegeria deputado em 1937. Durante o governo da Frente Popular, foi nomeado ministro da Saúde aos 31 anos. Allende foi um ministro ativo e inovador ao aproveitar sua posição para instruir os chilenos sobre as causas sociais das doenças.

A experiência da Frente Popular convenceu Allende de que seria possível construir o socialismo dentro das instituições políticas existentes no Chile. Para Allende, a principal fraqueza da Frente Popular residia no fato de ser dominado por “partidos burgueses” e não pelos “partidos proletários”. Na década de 1940, com o colapso da Frente Popular e a perseguição aos comunistas durante a Guerra Fria, Allende percebeu que o sucesso do movimento popular no Chile dependia da unidade dos partidos da classe trabalhadora.

Em 1952, Allende concorreu pela primeira vez à presidência do Chile, apoiado pelo Partido Comunista e com uma plataforma que incluía a nacionalização das gigantescas minas de cobre. O Chile respondia por 80% da produção mundial do cobre, a maior parte controlada pelas empresas estadunidenses Braden Cooper Co., Anaconda e Kennecott, responsáveis por 75% das exportações do país. Ao final do pleito, Allende obteve pouco mais de 5% dos votos. Nas eleições de 1958, Allende conseguiu unir as facções do seu Partido Socialista e aliar-se ao Partido Comunista, constituindo a Frente de Ação Popular (FRAP). Ele recebeu 28,9% dos votos, perdendo por apenas 2,7% para o conservador Jorge Alessandri (Moniz Bandeira, 2008; Winn, 2010).

Com a Revolução Cubana, o espectro político deslocou-se para a esquerda na América Latina. Nesse contexto, Washington passou a apoiar reformas a que havia se oposto anteriormente, encontrando em Eduardo Frei, do Partido Democrata-Cristão (PDC), o parceiro perfeito para a Aliança para o Progresso no país. No pleito de 1964, os Estados Unidos forneceram 4 milhões de dólares para a campanha de Frei, além de outros 3 milhões para uma “campanha de terror” na mídia, que insinuava que se Allende fosse eleito a democracia chilena desapareceria. Nesse pleito, Allende obteve 39% dos votos, mas Frei acabou eleito com 56% (Moniz Bandeira, 2008; Simon, 2021; Winn, 2010).

Em 1969, Allende articulou a formação da Unidade Popular (UP), coalizão que integrava o Partido Socialista, o Partido Comunista, o Partido Radical, o Movimento de Ação Popular Unitária (MAPU, uma dissidência do PDC formada por cristãos progressistas) e dois grupos menores de esquerda. O Movimento de Esquerda Revolucionário (MIR) não integrava a coalizão, nem acreditava na via legal, mas viria a apoiar a candidatura de Allende. A UP era dominada por seus partidos de esquerda e sua base social se apoiava principalmente na Central Unitária dos Trabalhadores (CUT).

Nas eleições de 1970, Jorge Alessandri, do Partido Nacional (PN), era o franco favorito, e Allende, um claro “azarão”. O PDC escolheu como candidato um integrante de sua ala esquerda, Radomiro Tomic. Allende concorreu com um programa que previa 40 medidas, que iam desde a nacionalização do cobre e a reforma agrária até assistência médica gratuita e a concessão de um litro de leite para cada criança. Após uma eleição acirrada, no dia 4 de setembro, Allende foi eleito com 36,3% dos votos. Alessandri obteve 34,9% e Tomic, 27,8%. A diferença entre Allende e Alessandri foi de apenas 39 mil votos (Simon, 2021; Winn, 2010).

A Constituição de 1925 previa que, se nenhum dos candidatos recebesse a maioria dos votos populares, caberia ao Congresso Pleno decidir entre os dois mais votados. No passado, o Congresso havia ratificado o resultado popular. Em 1970, entretanto, Alessandri se recusou a reconhecer o triunfo de Allende. Apesar de Tomic ter reconhecido a vitória de Allende, Alessandri iniciou negociações com o PDC para impedir a confirmação dele pelo Congresso Pleno.

Os Estados Unidos consideravam a vitória de Allende um desafio ao seu interesse nacional. Kissinger afirmou que não havia razão para Washington permitir que o país se tornasse marxista devido à irresponsabilidade do seu povo. Os Estados Unidos delinearam dois caminhos para bloquear a ascensão de Allende. O “Caminho 1” previa um golpe constitucional; o “Caminho 2” defendia o apoio a um violento golpe militar.

A investidura de Allende dependia de um entendimento com o PDC, que exigia a aprovação de um Estatuto de Garantias Democráticas em troca do seu apoio. Para surpresa de Frei, Allende aceitou as condições do PDC, deixando o “Caminho 2” como alternativa. No entanto, a CIA percebeu que nenhum golpe ocorreria enquanto as Forças Armadas fossem lideradas pelo general René Schneider, cuja doutrina defendia a não intervenção militar. Os planos golpistas mudaram para o sequestro de Schneider, cuja culpa recairia sobre a esquerda. No entanto, o plano fracassou com a morte do general durante a tentativa de sequestro. Carlos Prats assumiu o comando do Exército, mantendo os princípios de seu antecessor. O crime comoveu a sociedade e uniu a classe política. No fim, o conjunto dos parlamentares do PDC votou em Allende, que foi confirmado pelo Congresso Pleno por 153 votos em um total de 195 (Moniz Bandeira, 2008; Simon, 2021; Winn, 2010).

Ao ser empossado, no dia 4 de novembro de 1970, Allende e a esquerda chilena estavam completando uma longa jornada que se iniciara nos desertos de nitrato um século antes. Aos 62 anos, esse senhor de óculos fundos, bigode e bochechas de avô já era reconhecido em todo o mundo como um veterano revolucionário da América Latina. Após dezoito anos e três derrotas na tentativa de alcançar a presidência, o povo entrava com o “companheiro presidente” no La Moneda.

A Revolução Chilena e o golpe de 11 de setembro

O governo da UP foi um experimento inédito que se diferenciava tanto do modelo cubano quanto da social-democracia da Europa Ocidental. O objetivo final era a transição para o socialismo, e não a reforma do “Estado burguês”. Para Fidel, a eleição de Allende tinha sido a mais importante vitória desde a Revolução Cubana. Apesar de claro em seus objetivos, o programa da UP era vago nos meios para atingi-los.

            O programa da UP previa quatro importantes reformas estruturais que, em conjunto, levariam ao controle social dos principais setores da economia: a recuperação das riquezas minerais básicas do país, como o cobre; a nacionalização dos bancos; a socialização de empresas estratégicas e uma reforma agrária. Essas reformas eram o cerne da Revolução Chilena. Ao tomar conhecimento do programa da UP, Zhou Enlai, o primeiro-ministro da China, escreveu uma carta a Allende: “Vocês querem fazer tudo isso num tempo tão curto com uma imprensa livre, um parlamento e os Estados Unidos na oposição? Estão indo rápido demais”. Ao contrário do que Fidel recomendara, o governo da UP daria passos demasiadamente revolucionários.

            Em julho de 1971, o governo Allende aprovou emenda constitucional nacionalizando a indústria do cobre. Nem mesmo os direitistas se atreveram a votar contra a medida. Allende celebrou a votação como o “Dia da Dignidade Nacional”, referindo-se a ela como a “segunda independência do Chile”. Essa seria uma das poucas mudanças estruturais que a ditadura de Pinochet não reverteria.

            A estatização do sistema bancário ocorreu mediante a compra de ações dos bancos privados pela Corporación de Fomento de la Producción (CORFO), criada por Aguirre Cerda em 1939, com a finalidade de promover a industrialização do país. Um ano após a posse de Allende, seu governo controlava 90% do setor bancário chileno.

            O propósito de Allende não era estatizar toda a economia. O programa socialista da UP propunha a criação de uma Área de Propriedade Social (APS) dirigida pela CORFO no caso das empresas mais estratégicas. Algumas delas seriam de propriedade do Estado, enquanto outras teriam um misto de participação pública e privada. Como não podia contar com a aprovação do Congresso, Allende utilizou poderes executivos e leis dos anos 1930, 1950 e 1960. A legalidade dessas ações seria questionada e se tornaria um ponto de conflito permanente com a oposição e o Poder Judiciário.

            O programa da UP previa uma reforma agrária gradual ao longo dos seis anos do mandato de Allende. No entanto, a inquietação e a pressão de baixo fizeram o governo acelerar a reforma. Em meados de 1972, 70% das expropriações já tinham sido realizadas. Assim, o governo Allende foi responsável pela reforma agrária mais rápida da história sem uma revolução violenta.

            Em 1971, as perspectivas do governo eram positivas. O PIB cresceu 8,5%, e o desemprego caiu de 8,3% para 3,8%. A participação dos assalariados na renda nacional subiu de 42,2% para 50,4% (Moniz Bandeira, 2008). As políticas de educação, saúde e habitação beneficiaram as camadas populares. Em 1972, as reformas sociais transformaram o Chile em uma das sociedades mais igualitárias da América Latina.

            No plano cultural, o movimento da Nova Canção atingiu seu apogeu no governo Allende. Enquanto artistas como Victor Jara, Isabel Parra e Ángel Parra (os dois últimos filhos da grande cantora Violeta Parra) deram voz à experiência dos camponeses e trabalhadores, grupos como o Inti-Illimani e o Quilapayún introduziram instrumentos andinos e sons indígenas na música chilena. O cantor Victor Jara, que tinha fortes vínculos com a UP e pertencia ao Partido Comunista, seria assassinado alguns dias após o golpe militar. A vida deste grande artista está registrada na bela e comovente biografia “Victor: Uma canção inacabada”, da sua companheira Joan Jara.

            Apesar do êxito inicial, o governo cometeu erros que levariam a uma situação econômica caótica e à perda do apoio da classe média. A rápida estatização da economia causou danos à produção. O aumento do meio circulante faria a inflação disparar e atingir os três dígitos em 1973. À escassez de bens de consumo, o governo Allende respondeu criando as Juntas de Abastecimiento e Precios (JAPs), garantindo uma cesta básica à maioria dos chilenos. Todavia, foi incapaz de estabilizar a economia e negociar um acordo político que garantisse a governabilidade.

            Com o agravamento da crise, Allende procurou dialogar com o PDC. As negociações passavam pela discussão de uma reforma constitucional que reverteria o processo de socialização da economia e que Allende havia vetado anteriormente. O Partido Comunista, cuja posição moderada se aproximava mais de Allende, apoiava um entendimento com o PDC. No entanto, o Partido Socialista, que havia dado um giro à esquerda, opunha-se a qualquer acordo. O assassinato de Pérez Zujovic, ex-ministro de Frei, por um suposto grupo de extrema esquerda, foi explorado pela direita e afetou as relações do PDC com a UP. O PDC fez uma inflexão à direita, aproximando-se do PN. Dessa forma, o respaldo tácito que o PDC dava a Allende, no Congresso, terminou.

            A batalha pelo Chile saía cada vez mais dos salões do Congresso e ia para as ruas. Como no Brasil de 1964, a classe média foi instrumentalizada e realizou a “marcha das panelas vazias”. Surgiu o “Pátria y Libertad”, grupo neofacista paramilitar cuja pretensão era disputar as ruas de Santiago, tradicionalmente ocupadas pela esquerda. Por outro lado, cada vez mais camponeses e trabalhadores administravam seus locais de trabalho, moradores da periferia dirigiam seus bairros, povos indígenas desafiavam décadas de discriminação e opressão. Setores da esquerda, sobretudo o MIR e o Partido Socialista, estimulavam a ocupação de fábricas e terras, defendendo a criação do poder popular.

Em outubro de 1972, ocorreu a greve dos proprietários de caminhões, que logo recebeu a adesão de médicos, engenheiros e outras associações profissionais de classe média. O lockout geral, que provocou o colapso econômico, tinha o objetivo de criar as condições para o golpe de Estado. Allende respondeu às ameaças usando os poderes de emergência garantidos pela Constituição, incorporando as Forças Armadas ao gabinete e mobilizando a classe trabalhadora organizada. O general Prats assumiu o ministério do interior e a vice-presidência. Conquanto a mobilização popular das classes subalternas em apoio ao governo tivesse sido extraordinária, a greve geral evidenciou a inviabilidade da “via chilena” para o socialismo.

A UP estava dividida em relação à estratégia a ser seguida. A “revolução vinda de cima” estava paralisada no Congresso. A “revolução vinda de baixo” havia salvo o governo, mas a visão original de Allende de um caminho democrático para o socialismo parecia bloqueada. A ala radical da UP, liderada pelos socialistas, estimulava Allende a esquecer a “via chilena” e a aliança ilusória com a classe média e colocar-se na liderança do avanço revolucionário. A ala moderada da coalizão, liderada pelos comunistas, era favorável a um acordo com o PDC e à consolidação do conquistado.

O contexto internacional não permitia o êxito da “via chilena”. Os Estados Unidos cortaram todas as linhas de crédito em retaliação às medidas do governo Allende. Os projetos iniciados durante o governo Frei foram paralisados. O “embargo invisível” visava desestabilizar a democracia e pressionar os militares a superar sua neutralidade constitucional, conduzindo-os à intervenção política. Ao se referir ao bloqueio externo, o grande poeta Pablo Neruda dizia que o Chile era um “Vietnã silencioso”. Em dezembro de 1972, Allende denunciou a agressão imperialista na ONU. O governo da UP voltou-se para a URSS, que não tinha condições efetivas de ajudar o Chile. A solidariedade cubana era insuficiente para romper o cerco internacional.

            Em março de 1973, a oposição tentou transformar as eleições parlamentares em um plebiscito sobre o governo Allende. Apesar do caos econômico e social, a coalizão governista recebeu 44% dos votos, enquanto a oposição amealhou 55%, distante dos 76% necessários para aprovar o impeachment no Congresso. Ao final, prevaleceu o impasse: o governo continuava minoritário e a oposição sem força para derrubá-lo pelas regras do jogo democrático (Simon, 2021). Um mês depois das eleições, o PDC depôs sua liderança moderada, substituída por um grupo pró-golpe.

            Em 29 de junho de 1973, houve uma tentativa de golpe militar por parte da extrema direita, rapidamente reprimido pelo general Prats e pelas tropas leais ao governo, que incluíam o general Augusto Pinochet. O chamado “tancazo”, que resultou em vinte mortos, pareceu um ato isolado. Na realidade, entretanto, foi a cena de abertura do ato final da batalha pelo Chile, cujo clímax seria o golpe de 11 de setembro.

              Em 22 de agosto de 1973, a oposição aprovou na Câmara dos Deputados, por 81 votos a 41, uma moção condenando o governo por “romper a ordem constitucional” (Simon, 2021). Era a declaração que os conspiradores civis e militares precisavam para proporcionar cobertura política para o golpe. Uma semana depois, Tomic publicou uma carta profética, comparando os líderes do Chile a personagens de uma tragédia grega: “todos sabem o que vai acontecer, mas cada qual faz exatamente o necessário para que aconteça a desgraça que se pretende evitar” (Moniz Bandeira, 2008; Winn, 2010).

            Os planos de conspiração militar avançavam, e o general Prats era o único obstáculo a um golpe. Pressionado pelas esposas de oficiais do alto escalão das Forças Armadas, os generais do Exército se recusaram a seguir apoiando Prats, que não queria dividir o Exército. No dia 23 de agosto, ele renunciou ao cargo de comandante-em-chefe em. Em seu lugar, assumiu Pinochet.

            No dia 4 de setembro de 1973, uma multidão de 800.000 pessoas desfilou pelas ruas de Santiago para manifestar apoio ao governo. Foi a maior manifestação política da história chilena. Na última reunião para discutir a crise, até o Partido Socialista liberou Allende para fazer os acordos que julgasse necessários. O presidente estava planejando convocar um plebiscito e, caso a UP perdesse, renunciaria. A convocação estava marcada para 10 de setembro, mas acabou sendo adiada 24h. Temendo que a proposta de Allende reduzisse as tensões políticas e dividisse a oposição, as Forças Aramadas resolveram antecipar o golpe de Estado, previsto inicialmente para 18 de setembro.

            O golpe teve início na madrugada de 11 de setembro, com um levante da Marinha. Às 7h35, acompanhado de poucos assessores e da escolta pessoal, Allende chegou ao La Moneda. Tentou falar com Pinochet, e não conseguiu. Temia que tivesse sido preso. Somente às 8h30, quando soube de que lado estava o general, Allende perdeu a esperança de contar com o Exército. Seriam cerca de doze guardas com armas pequenas contra tanques, aviões e tropas das Forças Armadas. Com o AK-47 que Fidel havia lhe presenteado, Allende se preparou para comandar a resistência heróica.

            Pouco depois das 10h, Allende fez seu último pronunciamento pela Rádio Magallanes, um dos discursos mais importantes da história latino-americana. Suas palavras representavam a despedida de um homem que se dispunha a morrer, dignamente, no seu posto, como o comandante de uma nau que naufragava: “Diante destes fatos só me cabe dizer aos trabalhadores: Não vou renunciar! (…). Eles têm a força e poderão nos dominar. Mas não se detêm os processos sociais nem com crime nem com a força. A história é nossa e a fazem os povos”.

            Em torno das 12h, jatos da Força Aérea Chilena bombardearam o La Moneda. Nas ruínas ardentes do palácio presidencial, Allende despediu-se dos seus companheiros e dirigiu-se ao Salão Independência. Os corredores do palácio esvaziado ouviram um grito: “Allende no se rinde, mierda!”. Com seu gesto, Allende privou os golpistas de seu prisioneiro político especial, negando ao regime militar legitimidade constitucional. Como cantou Pablo Milanés em uma bela canção dedicada a Allende, “cesó por un momento la existencia, morías comenzando a vivir”.

Salvador Allende sempre soube que lutava sobre o fio da navalha, que seu esforço para encontrar o caminho adequado para a transição democrática ao socialismo envolvia uma grande margem de risco que ele deveria aceitar. Assim o fez com uma grandeza sem paralelo. O projeto da UP era tão amplo e generoso que comoveu milhões de pessoas no mundo. No entanto, o Chile sofreu as consequências da tentativa de implantação do socialismo em um país atrasado e dependente dentro da economia mundial capitalista. Os 1001 dias do governo da UP suscitaram esperanças e representaram uma experiência de repercussão internacional. Apesar do desfecho trágico, Allende e a UP seguem vivos na memória de todos aqueles que lutam contra as injustiças e insistem em sonhar com uma sociedade mais justa e fraterna.

Bibliografia

MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Fórmula para o caos: Ascensão e queda de Salvador Allende (1970-1973). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

MOULIAN, Tomás. Chile actual: Anatomía de un mito. 3. ed.Santiago: LOM, 2002.

SIMON, Roberto. O Brasil contra a democracia: A ditadura, o golpe no Chile e a Guerra Fria na América do Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

WINN, Peter. A revolução chilena. São Paulo: UNESP, 2010.

Tiago Nery é doutor em ciência política pelo IESP/UERJ, assessor internacional do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas da Fundação Oswaldo Cruz (INI-Fiocruz) e pesquisador do Laboratório de Análise Política Mundial (Labmundo). E-mail: [email protected]

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