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O “marco temporal” e as metamorfoses da colonização

5 de outubro de 2023

Artigo de João Quartim de Moraes

Em 11 de julho passado, a Fundação Grabois honrou-nos (a Lígia Osório Silva e a mim), consagrando a primeira Live do João” (organizada pela Escola Nacional João
Amazonas) a uma apresentação do livro Novo Mundo: metamorfoses da colonização, de que somos coautores e que vinha de ser publicado pela editora da Unicamp.

Militantes, simpatizantes, intelectuais de espírito aberto e crítico acompanharam a exposição e o debate, animado com competência e acuidade pelo historiador Fernando Garcia. Os interessados poderão acompanhar essa atividade no Portal Grabois. Até por isso, não pretendemos traçar aqui uma visão panorâmica do livro, mas tão somente pôr em evidência como o confronto suscitado pelo chamado “marco temporal” remete perversamente ao ponto de partida histórico da luta de cinco séculos pelo reconhecimento dos direitos fundamentais dos povos originários.

Até 1988, essas populações não tinham personalidade jurídica para defender eficazmente seus direitos em face das agressões que sofriam por parte dos grileiros e capangas do latifúndio. Para pôr fim ao estatuto subalterno até então reservado aos indígenas, a Constituição de 1988 estipulou em seu artigo 231: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” O preceito constitucional visava a salvar as populações indígenas de um lento, mas contínuo aniquilamento, iniciado na “terra brasilis” pelos conquistadores portugueses, ampliado pelos bandeirantes e, nos tempos modernos, pelos grileiros e pistoleiros a soldo dos latifundiários ou “ruralistas”.

A sanha dos aniquiladores não esmoreceu, como nos relembrou recentemente a nova tragédia humanitária na terra dos Yanomanis, provocada pelos garimpeiros,
seus mandantes e o governo bíblico-fascista que os protegeu durante quatro anos. Por serem ilegais e muitas vezes criminosas, essas atividades podem ser tolhidas e punidas por autoridades republicanas dignas desse nome. Os círculos dirigentes do latifúndio, que não operam no “bas-fond”, mas na cobertura do agronegócio, preferem ter a lei
de seu lado, ou então passar por cima, nunca por baixo dela (não são ladrões de galinhas). Por isso incumbiram seus advogados e outros prepostos de inventar “ad hoc” o argumento do “marco temporal” para desidratar o artigo 231 da Constituição.

O debate judicial em torno do “marco temporal” remonta a 2003, quando um estudo da Funai reconheceu como terra originária dos indígenas Xokleng uma área de 23.000 km 2 na região do Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Os Xokleng vinham sendo exterminados desde o século XIX pelos “bugreiros”, matadores profissionais de “bugres” contratados pelos “ruralistas” locais. Por si só, o termo “bugre”, corruptela de “búlgaro”, mereceria um comentário: ele carrega em sua etimologia extermínios milenares. Aqui apenas assinalamos que o sentido pejorativo do termo designava as populações marcadas para serem eliminadas.

Exibindo uma concepção de ambiente que exclui os povos originários, o Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina ignorou o estudo da Funai e entrou com ação de reintegração de posse da área. O Tribunal Regional da 4ª Região (TRF-4), tristemente notório pela iníqua condenação de Lula, lhe deu ganho de causa. A Funai recorreu ao STF, que teve o cuidado de reconhecer, em decisão de 11 de abril de 2019, a “repercussão geral” do julgamento do recurso, fixando assim um parâmetro jurídico para a questão das terras indígenas. Relator do caso, o ministro Edson Fachin acatou o recurso da Funai. Submetida ao plenário, a decisão do TRF-4 contra os indígenas foi anulada em votação concluída em 21 de setembro. Nove votos contrários ao sinistro “marco temporal” e dois ministros favoráveis às pretensões do “agrobusiness”, previsivelmente ambos nomeados por Bolsonaro.

Um dos dois votos contra os direitos dos indígenas, o do ministro hiper evangélico André Mendonça, apresentou uma espantosa fundamentação histórica: o “direito de conquista” sobre as terras dos povos originários, exercido pela Coroa portuguesa no século XVI. Deixando de lado o pequeno pormenor de que o Brasil se tornou independente em 1822 e proclamou a República em 1889, fazendo caducar as conquistas da Coroa portuguesa, a expressão “direito de conquista” no melhor dos casos é um oxímoro irônico, mas tomada em sentido próprio, não passa da negação dodireito, própria à barbárie. As conquistas, com efeito, são atos de força. Enquanto tais, elas não criam direitos, salvo, claro, a adotar a ideia do “direito da força”, cara ao nazismo.

Novo mundo: metamorfoses da colonização reconstitui as polêmicas teológico-jurídicas sobre os direitos dos indígenas travadas na Espanha logo após a conquista, destacando, entre outros, dois frades dominicanos espanhóis: Bartolomeu de Las Casas, merecidamente reconhecido como o mais eminente defensor dos povos originários agredidos pelos conquistadores, e Francisco de Vitoria, o grande iniciador da “segunda escolástica” neotomista. Em 1532, Vitoria expôs na Universidade de Salamanca suas três Relectiones de Indis, consagradas à discussão dos fundamentos jurídico-teológicos da dominação do Novo Mundo. Ele desafiou o absolutismo do imperador Carlos V para sustentar que os indígenas eram legítimos proprietários das terras onde viviam. A posteridade o considerou um dos fundadores do moderno Direito Internacional.

Ao longo dos cinco séculos que nos separam dos primeiros juristas defensores dos indígenas, prosperaram, sobretudo no XIX, as políticas de extermínio, sistemáticas nos Estados Unidos e na pampa argentina. No resto do continente, os movimentos indígenas e as forças democráticas ergueram-se contra o etnocídio, limitando os desastres humanos e ecológicos.

No Brasil, a recente vitória moral e jurídica da causa dos povos originários no STF foi imediatamente contestada pela maioria reacionária do Congresso Federal, que aprovou com fulminante rapidez uma lei estabelecendo o “marco temporal” exigido pelos donos da terra. Os parlamentares reacionários assumiram a responsabilidade de desencadear um confronto institucional em três atos previsíveis: (a) o presidente Lula veta a lei; (b) o Congresso reúne a maioria absoluta para derrubar o veto; (c) uma ação direta de inconstitucionalidade é proposta perante o STF. O desfecho, porém, é menos previsível.

João Quartim de Moraes é professor titular aposentado do Departamento de Filosofia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A esquerda militar no Brasil (Expressão Popular).