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Nilson Araújo de Souza: Natureza da crise atual e a Revolução Brasileira

23 de outubro de 2024

Pesquisador do Grupo de Acompanhamento e Pesquisa sobre Desenvolvimento nacional e socialismo, Nilson Araújo de Souza argumenta que “a derrota do fascismo depende não só da “luta de ideias” (…), mas também de o governo Lula completar bem sua tarefa de reconstrução nacional, e isso implica num nível de crescimento econômico tão robusto que possa incorporar as amplas massas num padrão de vida substancialmente mais elevado do que o que herdamos do bolsonarismo”.

Apresentamos aqui algumas considerações sobre a natureza da crise atual no mundo capitalista e da Revolução Brasileira. Sobre a natureza da crise, começamos recorrendo a algumas contribuições do informe apresentado pelo Presidente do Partido Comunista da Federação Russa, Gennady A. Zyuganov, no Plenário do Comitê Central do Partido, realizado em maio de 2024, sobre a natureza da crise estrutural que atravessa o mundo capitalista e da luta de classes na atualidade, com ênfase na polarização entre o decadente e agressivo império estadunidense e a China socialista e pacífica em ascensão, bem como os motivos do ressurgimento do fascismo.

Essa interpretação dos fatos mundiais da atualidade, além do conhecimento já acumulado sobre a realidade brasileira, em grande medida inspirados no processo de construção dos programas do MR8/PPL, nas formulações constantes do programa de 2009 do PCdoB, nos seminários promovidos pela Fundação Maurício Grabois por meio da Cátedra Claudio Campos e na relatoria da Plataforma Emergencial de Reconstrução Nacional, nos ajuda a desvendar os caminhos do eixo “Fortalecimento da Nação”. Com essa preocupação, apresentamos aqui algumas reflexões teóricas, analíticas e programáticas sobre a Revolução Brasileira e a natureza da luta ideológica que devemos travar contra o fascismo e o neoliberalismo a fim de avançarmos no processo revolucionário.

Os alicerces anteriores estão tremendo ou desmoronando

Segundo Zyiuganov, “os alicerces anteriormente conhecidos estão tremendo e desmoronando (…). O mundo está mudando rapidamente”. E mais ”A humanidade está à beira de mudanças fundamentais”, “o capitalismo entrou em sua crise mais aguda em 100 anos”.

Tal estado de coisas se deveria a dois fatores fundamentais: 1) uma profunda crise do sistema imperialista mundial, agravada depois que, como consequência  do colapso financeiro e da crise subsequente de 2007/2009, reforçando as tendências inerentes à crise estrutural deflagrada entre fins dos anos 1960 e começo dos anos 1970, exacerbou o parasitismo rentista financeiro e a já extrema desigualdade social; 2) a tensa, violenta e acelerada transição geopolítica mundial, com o declínio relativo do decadente, violento e belicista império estadunidense e a rápida ascensão da China socialista e pacífica, caminhando para a superação da unipolaridade – resultante do fim da União Soviética – e a construção de um mundo multipolar que possibilite uma relação mais justa entre povos e nações.

Em um quadro semelhante na década de 1930, época da anterior grande crise estrutural do capitalismo (de 1914 a 1945: duas guerras mundiais e uma grande depressão seguida de uma longa estagnação econômica no meio), afirmara Dimitrov que os círculos imperialistas “estão tentando transferir todo o fardo da crise para os ombros do povo trabalhador (…). Eles estão tentando resolver o problema do mercado escravizando povos fracos, aumentando a opressão colonial e uma nova redivisão do mundo através da guerra (…). Eles estão se esforçando para impedir o crescimento das forças da revolução (…). Para isso, precisam do fascismo”.

Imaginem hoje, com a exacerbação de todas as contradições do sistema imperialista mundial, mergulhado numa “guerra eterna” e podendo, por sua ação provocativa, engendrar a possibilidade de uma terceira guerra mundial, que certamente degeneraria numa guerra de caráter nuclear.

Para implementar esse regime de terror e exacerbar a superexploração dos trabalhadores e espoliação das nações mais débeis, levando à vala comum inclusive os trabalhadores dos países centrais, setor importante da grande burguesia imperialista, ou seja, a parcela mais decadente, mais reacionária e xenófoba da oligarquia bélico-financeira-midiática do núcleo central do imperialismo, recorre ao fascismo. Arremata Zyuganov: “O fascismo (…) continua sendo uma ferramenta nas mãos dos imperialistas americanos”. Como há cem anos, as forças de ultradireita atuam como um “esquadrão de combate do grande capital”. “O fascismo é produto do grande capital e expressão de seus interesses”. “O fascismo é uma ditadura terrorista aberta dos elementos mais reacionários, mais chauvinistas e mais imperialistas do capital financeiro”.

Foi assim que nas décadas de 1920/1930 esse setor da oligarquia financeira apoiou as forças mais obscuras, levando Hitler, Mussolini, Franco e seus cúmplices ideológicos ao poder e mais recentemente tem feito ensaios no Brasil, em outros países latino-americanos, nos EUA e em quase toda a Europa. E assim de marginais políticos, os nazifascistas lutam pelo poder no mundo, abençoados por Wall Street e outras praças financeiras de semelhante fama, como a Faria Lima, que nas eleições de São Paulo apoiou uma candidatura bolsonarista marcada e escrachadamente fascista, que não é apenas um “marginal político”, mas um marginal mesmo.

O presidente do PCFR revela, no entanto, que a humanidade está reagindo. “A demanda global por mudanças é óbvia. A humanidade não está preparada para suportar um sistema que a condena à vegetação e à degradação e ameaça uma guerra nuclear”.

A natureza do fascismo tupiniquim

Afirmar que “o fascismo é uma ditadura terrorista aberta dos elementos mais reacionários, mais chauvinistas e mais imperialistas do capital financeiro” nos parece uma verdade inquestionável, mas agora nós daqui do ”Sul Global” devemos responder qual a natureza essencial do fascismo numa economia periférica e dependente como a nossa.

Consideramos que aqui também o fascismo é a ditadura dos elementos mais reacionários do capital financeiro, mas não de um inexistente capital financeiro nacional (no sentido de Lênin e Hilferding, isto é, enquanto fusão dos monopólios bancários com os monopólios industriais), mas do capital financeiro imperialista. Portanto, enquanto o fascismo nos países centrais do imperialismo é, por natureza, expansionista, imperialista, agressivo, o fascismo de um país dependente como o Brasil é, por natureza, entreguista, a despeito de, numa maior das fake news de todos os tempos, adotar as cores, o hino e a bandeira nacionais e de se autoproclamar “patriota”. O patriotismo deles consiste em bater continência para a bandeira estadunidense, como fez um ex-presidente brasileiro.

Examinemos agora como essa ideologia arcaica, anti-ciência, intolerante, autoritária, racista, supremacista, negacionista, ignorante, misógina, em suma, avessa ao estudo e ao conhecimento científico, consegue encantar e galvanizar milhões de pessoas, não apenas da alta burguesia e das camadas médias, mas, inclusive, parcelas importantes do proletariado. É como se fosse o encantamento da serpente.

Existe a ideia de que o problema é que os fascistas capturaram os “valores tradicionais” da sociedade (defesa da família e da vida, contra a legalização das drogas…), incorporaram-nos na sua “narrativa”, ainda que apenas da boca para fora, e passaram a difundi-los em grande escala, sempre recorrendo às denominadas “fake-news” e usando para isso as chamadas “mídias sociais” (que, controladas pelas big techs, não têm nada de social e muito menos são portadoras da liberdade), ao mesmo tempo que procuram denegrir a imagem dos comunistas (e comunista para eles seria qualquer pessoa que não concorde com  suas posições estapafúrdias) acusando-nos de sermos contra os valores fundamentais da sociedade, quando, na verdade, são eles que, ao contrário do que alardeiam, se chocam contra todos esses valores, ao esgarçarem a família, causarem discórdia em seu seio e apoiarem ou patrocinarem políticas que causam desemprego, fome e miséria, destruindo as famílias dos mais pobres; ao atentarem, frequentemente, contra a vida não apenas individualmente, como também coletivamente (não custa lembrar do terror nazista de Hitler que, além dos milhões de mortos nos campos de batalha, assassinaram sistematicamente judeus, comunistas, ciganos em campos de concentração; não custa também lembrar que aquele que, ainda que não o diga explicitamente, pousa como líder do fascismo brasileiro pontificou que a ditadura não havia feito seu trabalho porque não teria matado 20.000 pessoas).

Consideramos respeitável a opinião de que a questão do fascismo tem a ver fundamentalmente com os valores, com a pauta dos costumes. Esse é o ponto: usam e abusam desse arsenal para tentar nos colocar na defensiva e esconder a questão fundamental. A questão fundamental está em que, mergulhado numa crise estrutural há já bastante tempo, o sistema imperialista já não apresenta, nem pode apresentar, alternativas dignas (como fez na época do Welfare State do pós-guerra) para amplas massas da população, os deserdados não da Terra, mas do Sistema capitalista-imperialista mundial. Numa economia dependente, como a nossa, esse quadro é muito mais grave porque o trabalhador tem que servir a dois senhores, ou seja, gerar um lucro tão grande que, além de locupletar às transnacionais e ao capital financeiro dos países centrais, garanta a parcela da burguesia interna. Daí a superexploração da força de trabalho. 

Assim, quando assume um “governo de direita”, ao estar de acordo com as políticas que tendem a reforçar as tendências à crise, sintetizadas na ideologia neoliberal, nada muda (a não ser regressivamente como as contrarreformas trabalhista e previdenciária que prejudicam a vida dos trabalhadores), mas, também, quando assume um “governo de esquerda”, que, mesmo não concordando formalmente com essa política, realiza muito pouco de mudança real que impacte fortemente a vida das amplas massas deserdadas, sendo, em parcela importante, capturado pela pressão da Faria Lima e praticando o neoliberalismo, uma doutrina que funciona como um Robin Hood às avessas: tira do pobre para dar ao rico (sobretudo a oligarquia financeira e os rentistas). E assim entra governo e sai governo, mas as condições de vida dessa parcela deserdada da população ou melhoram apenas marginalmente ou estancam ou, na maioria das vezes, deterioram. E às vezes melhoram para depois piorar. Nesse quadro, não veem futuro para seus filhos: quando conseguem emprego, trata-se de empregos precários e de baixos salários. Soa quase como um pedido de socorro recorrer ao “pai”, ao “messias”, ao “mito”. E assim trata-se de uma massa disponível para ouvir e incorporar o discurso dos líderes fascistas. Como se fosse algo assim: “como ninguém resolve nada, vou tentar outro caminho”.

Os fascistas estão a serviço do verdadeiro Sistema

Para completar sua “narrativa”, recheada de fake news, propaga o fascismo que o responsável por todo esse quadro de deterioração econômica, social, política, cultural, ambiental seria um tal “Sistema” comandado pelos “globalistas”, que seriam infiltrados pelos comunistas, os quais ademais teriam se infiltrado nas escolas, universidades e outros “aparelhos ideológicos” do Estado para disseminar um tal de “marxismo cultural” (o falecido guru dessa corrente no Brasil, querendo mostrar erudição, chegou a citar Gramsci). Segundo o gosto do “líder”, esse tal Sistema pode se expressar em qualquer estrutura de poder que possa ser um obstáculo à sua tentativa de empalmar o poder.

Diríamos que essa prática corriqueira do fascismo brasileiro segue à risca a elucubração de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda da Alemanha Nazista: “Uma mentira dita mil vezes torna-se verdade”.

Os comunistas liderando o mundo? Quem dera!  Mas há uma questão de fundo: execram um Sistema abstrato, falso e mesmo inexistente, para esconder-proteger o verdadeiro Sistema, o real, o concreto: o sistema imperialista hegemonizado pela oligarquia bélico-financeira-midiática dos EUA – que vive basicamente de rendas financeiras e da indústria da morte, tendo a mídia a incumbência de legitimar suas ações mundo afora -, obviamente coadjuvado por setores apátridas e gananciosos em cada um dos nossos países, representados sobretudo, no caso brasileiro, pelos rentistas financeiros que ganham sem nada produzir e, portanto, sem trabalhar, além de certos membros da grande burguesia do país, à moda da antiga burguesia comercial  chinesa.

E é óbvio que os fascistas não são contra esse Sistema real: ao contrário, estão a serviço dele. Quando na oposição, fazem muita arruaça para pressionar o governo (nas suas várias instâncias territoriais) a aprovar medidas do interesse do Sistema realmente existente. Quando conseguem chegar ao poder, utilizam-no para tentar implantar regimes autoritários, na verdade ditaduras, a fim de garantir, por meio da superexploração dos trabalhadores e do uso predatório de nossos recursos naturais, a espoliação nacional e o lucro máximo, ou seja, a superganância exigida por esse insaciável Sistema real, para isso desencadeando o terror e uma repressão brutal sobre os trabalhadores e suas lideranças, além certamente do setor produtivo nacional, particularmente o setor industrial.

Somos nós, os comunistas e as demais forças democráticas e patrióticas, que estamos contra o Sistema real e somos então os verdadeiros patriotas (os de verdade; não os de fachada) e, portanto, não devemos deixar “normalizar” essa “narrativa” fascista de que eles são contra o Sistema, quando, na verdade, são subservientes a ele, como a história vem demonstrando desde Hitler e Mussolini até os dias de hoje. É esse o verdadeiro cerne da luta de ideias dos nossos tempos. Esse discurso de desmonte da grande mentira do fascismo, feito pela Frente Insubmissa, contribuiu certamente para a importante vitória que a Frente Popular teve nas últimas eleições francesas.

Revolução Brasileira: completar a construção nacional

Além de realizar a denúncia implacável dessa “narrativa” fascista, desconstruindo desde seus alicerces arquitetados na base da mentira de que são contra o Sistema, quando, na verdade, estão a serviço dele, até sua superfície, ao propalarem que são os campeões da liberdade, quando, na verdade, a utilizam para implantar regimes autoritários, inclusive sob a forma de ditadura aberta, temos que, com a mesma ênfase, desmontar a farsa de sua componente econômica: o neoliberalismo. O neoliberalismo não nasceu com o fascismo, mas sua radicalização é a face econômica do fascismo. Temos então que realizar a denúncia sistemática e contundente do fascismo e do neoliberalismo.

Tem sido a implementação dessa ideologia como norteadora das políticas econômicas que, de um lado, tem destruído nossa indústria e deteriorado fortemente as condições de vida do nosso povo e, de outro, rendido lucros extraordinários para os grandes grupos econômico-financeiros, com destaque para os estrangeiros. Essa deterioração resulta, dentre outras coisas, da abertura para a entrada de produtos e capitais estrangeiros praticamente subsidiados, gerando quebradeira da indústria nacional e portanto desemprego; pela privatização desnacionalizante do patrimônio público e a desnacionalização de empresas privadas, gerando também desemprego; pela combinação entre as antirreformas trabalhista e previdenciária, as quais, além de retirar direitos trabalhistas consagrados na CLT desde 1943, praticamente anulam a possiblidade de um trabalhador pobre se aposentar.

E a ideologia neoliberal, macaqueando a formulação fascista, professa que atua dessa forma em nome da liberdade, reproduzindo o que supostamente fora feito no começo do capitalismo: laissez-faire, laissez-passer (deixa produzir, deixa comercializar). Escondem que a primeira economia capitalista, a Inglaterra, só veio propor e praticar o livre comércio, em meados da década de 1840, depois que conquistou a posição de “oficina do mundo” por ter vivido na sua inteireza e praticamente solitária a primeira revolução industrial-tecnológica nos setenta anos anteriores, o que possibilitou incrementar substancialmente a produtividade do trabalho e, portanto, rebaixando o valor das mercadorias.  As três gerações de países que se industrializaram depois o fizeram com base no protecionismo e na forte ação do Estado na economia. Ademais, atualmente, os grandes trustes e carteis têm imenso poder econômico. Tirar, portanto, o Estado da economia para deixar o “mercado” regular significa, na prática, entregar o controle da economia aos monopólios privados, que são sobretudo estrangeiros. Que liberdade é essa? É a ditadura dos cartéis, como já demonstrou no passado, em boa hora, o empresário nacionalista brasileiro de origem alemã Kurt Rudolf Mirow.

Mas não basta denunciar os inimigos do povo. Devemos mostrar claramente um caminho, uma alternativa, que ao mesmo tempo seja factível e crível e que avance na direção de resolver o mais rápido possível os graves problemas que afligem nosso povo e sucateiam a economia do nosso país, engendrados pela ação e a crise estrutural desse sistema perverso que, no afã da superganância, oprime e magnifica a superexploração (ou seja, paga um salário abaixo do valor da força de trabalho, isto é, o mínimo social indispensável para o trabalhador sustentar sua família com dignidade) da grande maioria dos trabalhadores do mundo, além de explorar predatoriamente nossos recursos naturais. Antes só os trabalhadores da periferia recebiam esse subsalário; mas a ganância insaciável do setor dominante da burguesia, que é a oligarquia financeira dos países centrais, com destaque para a dos EUA, aliada à dificuldade de conter a inexorável queda da taxa lucro, generalizaram a superexploração dos trabalhadores para o conjunto do mundo capitalista.  

Acreditamos que devemos dizer claramente que nossa missão atual é completar a Revolução Brasileira que, deflagrada em 1930, foi interrompida pela contrarrevolução de 1964.  Isso significa, em grande medida, completar o processo de construção nacional. E, para dar conta da Revolução Brasileira, duas questões, além de outras, se fazem necessárias:

  1. formar uma maioria sócio-política capaz de desencadear um processo de transformações no país, conformada pelos trabalhadores da cidade e do campo, as camadas médias urbanas e rurais, a parcela remanescente e resiliente da burguesia industrial (após um longo e tenebroso inverno  de sucateamento, desnacionalização e destruição) e a nova burguesia urbana e rural (não nos referimos ao cartel do agronegócio, mas à plêiade de pequenos e médios produtores rurais que são oprimidos por ele) que pode estar surgindo no bojo do programa reindustrializante do governo Lula (NIB);
  2. apresentar um programa capaz de dar conta dessas transformações e ao mesmo tempo seja inteligível para as amplas massas do povo e que contribua para completar a construção da Nação brasileira e seu consequente fortalecimento.

A nosso ver, ao Brasil, a essa altura, só restam três alternativas:

a) continuar essa longa agonia de desindustrialização e dificuldades crescentes para nosso povo e terminar tendo nossas incomensuráveis riquezas naturais abocanhadas pelas grandes potências, ao lado das já crônicas desindustrialização e reprimarização da nossa economia, num retorno sombrio ao final do século XIXe começo do XX, ou seja, anterior à Revolução de 1930 – este seria o caminho da destruição nacional (só faltaria remontar a República Velha do café com leite);

b) dar a volta por cima, desenvolver-se nos marcos da dependência, formar monopólios e um capital financeiro próprios, convertendo-se naquilo que Marini chamou de subimperialismo – além de ser praticamente impossível implementar essa alternativa, devido à sangria externa e ao monopólio engendrados pela dependência, além do rentismo, não interessa ao povo trabalhador brasileiro, à medida que significaria a grande burguesia brasileira, além de não resolver os próprios problemas do Brasil,  superexplorar os trabalhadores irmãos nossos nos sofridos países da periferia do mundo imperialista (no dizer de Lenin: “não pode ser livre um povo que oprime outro povo”);

c) conquistar a segunda independência, a independência econômica, e se desenvolver de maneira autônoma, democrática (que implique em democracia política, econômica e social, ou seja, uma nova democracia, estudando para isso como Mao formulou e adotou a Nova Democracia ao estilo chinês), com o Estado alavancando a economia e colocando o trabalho no centro do desenvolvimento (entendido, como dizia Celso Frutado, como transformações das estruturas econômicas, sociais, políticas e culturais) e que seja ambientalmente sustentável – esta sim a alternativa que interessa à Nação e à grande maioria da população, mas isso não ocorrerá espontaneamente; terá que ser planejado e construído e isso demanda muita luta, conforme observou Getúlio Vargas, ao propor a democracia econômica e planificada.

Não será fácil trilhar esse caminho, mas a conjuntura internacional, com suas múltiplas crises e uma acelerada transição geopolítica para um mundo multipolar, ainda que coalhada de tensões e guerras, ao favorecer o avanço da luta dos trabalhadores e demais povos do mundo, igualmente favorece a luta do povo brasileiro por sua emancipação nacional e social e por nosso desenvolvimento. Isso não significaria necessariamente o Brasil aderir a qualquer um dos lados da contenda porque, como anuncia o título do livro de Paulo Nogueira Batista Jr, “O Brasil não cabe no quintal de ninguém”. Mas, por óbvio, a economia brasileira, munida de um projeto próprio e autônomo de desenvolvimento, tem muito mais chances de se beneficiar de uma relação com a economia chinesa do que com a dos EUA, sobretudo nas áreas de tecnologia, infraestrutura e industrialização, que seriam obtidas por meio de alguma forma de relacionamento com o projeto Cinturão e Rota, promovido internacionalmente pela China. Assim, ainda que o Brasil procure se relacionar com as duas nações e as demais nações do planeta, a tendência natural seria uma aproximação maior com a China e os BRICS +.

Mas, para formar a maioria sócio-política que respalde as transformações  necessárias à retomada de um  desenvolvimento sustentado e soberano, alavancado pelo Estado e centrado no trabalho, é fundamental adotar um programa que atenda aos interesses e por isso possa galvanizar a ampla maioria da população: da classe operária e do campesinato, passando pelas camadas médias, até setores remanescentes e resilientes da burguesa nacional, além da nova burguesia que, mesmo que insuficientemente, está sendo criada pela Nova Indústria Brasil. Esses setores têm potencial para avançar por esse caminho, a depender da luta ideológica que travemos na sociedade.

Atualmente, é mais do que óbvio que cabe ao Estado um papel protagonista no processo de desenvolvimento, qualquer que seja o regime social. Até importantes países, de onde vieram os pregoeiros da inação do Estado na economia e seus respectivos governos, estão adotando fortes políticas estatais nesses tempos de crise. Neste caso, os setores estratégicos da economia têm que estar nas mãos do Estado ou sob sua coordenação: setores monopolistas sob comando público e setores concorrenciais sob controle privado.   Se não fosse assim, teriam que ser controlados por monopólios estrangeiros ou, na rebarba, por alguns poucos grupos nacionais – já que se trata de grandes empreendimentos.

Quanto mais atrasada está a economia de um país, maior a necessidade de o Estado protagonizar seu desenvolvimento. O Brasil, que já teve seus “momentos de glória”, chegando a ser a oitava economia do mundo capitalista, não só vem patinando há mais de quatro décadas, com alguns interregnos, como mergulhou numa profunda crise, fazendo nossa economia, com a desindustrialização e a reprimarização, retroagir no tempo várias décadas.  Havendo chegado a esse ponto, a retomada do desenvolvimento e seu aprofundamento dependem ainda mais da firme ação do Estado, ainda mais em tempos de uma revolução tecnológica. 

Tal experiência já foi parcialmente vivida no Brasil. Deflagrado pela Revolução de 1930, sob a liderança de Getúlio Vargas e com respaldo na doutrina do nacional-desenvolvimentismo que foi sendo construída ao longo dos embates travados entre os que queriam industrializar o país de forma independente e aqueles que pretendiam manter a velha economia primário-exportadora sob controle externo (estes, quando admitiam  a possibilidade de industrialização, arrematavam que havia de ser sob controle estrangeiro porque o brasileiro afinal de contas teria vocação agrícola; vide embates entre Roberto Simonsen e Eugênio Gudin), o processo de construção do Estado nacional moderno, quer dizer, de completar a construção da nação brasileira, poderia ter sido concluído com a implementação das Reformas de Base de João Goulart, mas foi brutalmente interrompido pela contrarrevolução de 1964.

No entanto, a força dessa doutrina e de sua implementação prática era tão grande que até mesmo a ditadura que foi imposta para interromper o caminho brasileiro de Getúlio e Jango, teve que, para garantir o crescimento da economia (1967-1980), recorrer a alguns de seus instrumentos, sobretudo a ação do Estado na economia, como a manutenção e a criação de estatais, o investimento e o financiamento públicos, o protecionismo e as encomendas governamentais, além da preservação da legislação trabalhista e previdenciária (com uma ligeira modificação na primeira, ao transformar a estabilidade no emprego pelo FGTS).

A essência da doutrina nacional-desenvolvimentista se funda no controle nacional sobre a economia nacional (Estado e burguesia nacional), no trabalho como centro do desenvolvimento, no Estado como alavanca e, portanto, como coordenador do processo de desenvolvimento e na cultura como meio de contribuir para a emancipação das consciências, conquistada a partir do combate sem quartel às mentes colonizadas. Com a mente colonizada, será impossível o desenvolvimento. Dito ao contrário: o desenvolvimento só se tornará factível com as mentes emancipadas, pois a autoconfiança de um povo, o confiar mais em si mesmo, é um alicerce fundamental do processo de desenvolvimento. Caminhar com as próprias pernas, pensar com a própria cabeça e ouvir o próprio coração, proclamou Lula na Avenida Paulista durante as comemorações da primeira vitória em 2002. 

O objetivo maior dessa doutrina é construir a Nação brasileira e para isso recorreu, em grande medida, a uma sorte brasileira de capitalismo de Estado, promovendo a industrialização e criando e implementando uma das legislações trabalhistas mais avançadas do mundo. O capitalismo de Estado seria a forma econômica como se daria no Brasil o cumprimento das tarefas nacionais e democráticas, completando o processo de construção da nação brasileira (na questão democrática está incluída a questão social, à medida que se trataria de uma democracia real, como diz o próprio nome: poder do povo). Seria o conteúdo essencial do novo projeto nacional de desenvolvimento e, por conseguinte, a forma de completar a atual etapa da revolução brasileira.

A tarefa primeira da Revolução Brasileira consiste, na atual etapa da vida nacional e da luta de classes no mundo e no Brasil, em completar o processo de construção da nação brasileira, interrompido em 1964 depois que a contrarrevolução deu o golpe contra as Reformas de Base. Apesar de herdar parte do legado de Getúlio/Jango, a construção nacional foi a partir de então brutalmente deformada por meio da subordinação ímpar ao núcleo central do imperialismo, sobretudo o dos EUA (reforçando significativamente, mediante a invasão de capital estrangeiro, sob a forma de investimento/aquisição ou empréstimos, os mecanismos de dependência econômica que caracterizaram o Brasil desde a nossa independência política, mas que haviam sido fortemente combatidos na era nacional-desenvolvimentista, recolocando a importância estratégica da questão nacional); do violento aumento da desigualdade social e, consequentemente, da miséria em que afundou parcelas significativas da nossa população, os deserdados por esse Sistema; da financeirização da economia, implicando a criação de uma camada minúscula, mas poderosa de rentistas financeiros, que ganham rios de dinheiro, vivendo de cortar cupom, sem produzir um parafuso sequer. E por alguns que produzem parafuso, mas foram levados, depois de anos de desindustrialização e aperto monetário, fiscal e cambial, a transferir uma parte substancial de seus capitais para a esfera financeira.

A Revolução Brasileira, na atual etapa, significa a transformação das estruturas econômica, social, política e cultural do país, de modo a possibilitar a retomada sustentada (e sustentável, mas por decisão autônoma e sem frear o avanço das forças produtivas) do desenvolvimento autônomo e que beneficie a ampla maioria da população mediante a implementação de um novo projeto nacional de desenvolvimento. Dado o grau de destruição a que os distintos governos neoliberais, ao longo de décadas, submeteram o país, esse processo de transformação e a solução das questões nacional e democrática supõem também a reconstrução nacional.

Para atingir esse objetivo, temos que buscar isolar e derrotar politicamente não apenas o fascismo, mas também sua componente econômica – o neoliberalismo -, que se infiltra inclusive nos governos chamados de progressistas. Por mais que neoliberalismo não seja igual a fascismo, está cada vez mais evidente que, para preservar essa ideologia econômica implementada na maioria dos países capitalistas a fim de garantir a espoliação das nações do chamado Sul Global, a superexploração da força de trabalho e o uso predatório dos recursos naturais, além de se apropriarem da riqueza e patrimônios públicos e privados mundo afora, sobretudo na periferia do mundo capitalista, a parcela mais apodrecida da oligarquia financeira mundial, vanguardeada pela dos EUA, recorre à tentativa de implementar modelos políticos autoritários, particularmente o fascismo, sua face mais nefasta e perversa.  

Para percorrer o caminho brasileiro da Revolução, deve-se adotar um conjunto de medidas, um conjunto de transformações, que efetivamente enfrentem os graves  problemas existentes no país e criem as condições para a retomada e transformação do processo de desenvolvimento, a saber: a sangria externa, o rentismo financeiro, a destruição do Estado nacional, a constante ameaça do fascismo, o espetacular aumento da desigualdade social, um baixíssimo nível salarial, a desindustrialização e o sucateamento da infraestrutura, a péssima concentração fundiária e a falta de moradia urbana ao lado da especulação imobiliária, as péssimas condições de saúde da população, os baixos níveis de educação na média da população, o subfinanciamento e, portanto, o não fomento à cultura, a falta de oportunidades para a juventude, a discriminação da mulher, o racismo, a extrema deficiência da defesa nacional, política externa de governo e não de Estado.

Os comunistas, que lutam por uma sociedade em que um ser humano não seja explorado por outro ser humano, isto é, o socialismo, devem ser os lutadores mais firmes e combativos no enfrentamento desses problemas e assim levar as tarefas nacionais e democráticas até o fim. Já sabemos desde Lenin que não existe uma muralha da China entre uma etapa e outra da Revolução (que, no caso da Rússia, se desdobrava em democrático-burguesa e socialista), tanto é que as tarefas democrático-burguesas (como a reforma agrária) que deixaram de ser cumpridas pela revolução burguesa de fevereiro de 1917, foram realizadas pelo poder operário, em aliança com o campesinato, construído a partir da Revolução de Outubro.

O atual governo Lula, como bem disse Renato Rabelo, seria um “governo de transição” – de uma situação de constante ameaça à democracia, um verdadeiro caos econômico, um desvario entreguista e privatista, desemprego, fome e miséria para uma de normalidade democrática, reorganização da economia e retomada do desenvolvimento, defesa da soberania e do Estado nacional, criação de emprego e combate à desigualdade e à fome.

O presidente Lula está tentando percorrer esse caminho em meio a muita pressão da Faria Lima e com minoria no Congresso Nacional (de maioria conservadora e ultradireitista). Só há uma maneira de ele ter êxito e se manter: “botar o povo na jogada” e livrar-se desse grupo neoliberal enquistado na área econômica que engessa a economia em uma política monetária e fiscal que restringe a nossa capacidade de investimento na infraestrutura, na indústria e no bem-estar da população. Uma das nossas lutas mais importantes deve, portanto, visar a contribuir para o governo dar essa virada econômica, podendo assim Lula criar as condições propícias para um novo projeto nacional de desenvolvimento que inaugurará uma nova era em nosso país e derrotará de vez o fascismo.

Membros da equipe governamental propalam que a economia não teria mais impacto na política, tanto é que vários governos do planeta, incluindo o de Lula, estariam entregando o crescimento da economia e a geração de emprego e melhoria salarial e, ainda assim, não estariam sendo bem avaliados pela população. Não se deram conta do que ocorre no mundo capitalista e no Brasil de hoje. Os trabalhadores e o conjunto do povo têm sido tão explorados, tão oprimidos, tão espezinhados que não mais se contentam com um mísero crescimento econômico (o ministro da Fazenda tem alardeado que o teto de crescimento do nosso PIB, o tal do PIB potencial, é tão-só a cifra medíocre de 3% ao ano) e uma geração de emprego de segunda categoria, ainda que com carteira assinada. É verdade que a taxa de desemprego diminuiu bastante no último ano e meio, mas 7,5 milhões de irmãos e irmãs nossos seguem no exército de reserva, 39,5 milhões na informalidade e 13,6 milhões trabalham sem carteira assinada no setor privado. Portanto, pelo menos cerca de 60 milhões de trabalhadores e trabalhadoras, sem contar suas famílias, sobrevivem a duras penas. Por óbvio, não passa pela nossa cabeça que devamos resolver essa grave situação “tudo ao mesmo tempo agora”, mas é evidente que não estamos avançando no ritmo necessário, dada a gravidade do problema. Aqui em São Paulo, boa parte desses deserdados votou no fascista, arrivista, mentiroso e envolvido com o crime organizado. Isto porque lhes prometeu a prosperidade por meio de um tal de empreendedorismo. Parafraseando o Cristo, é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um pobre chegar ao reino dos ricos, a não ser assaltando nos bancos as aposentadorias e pensões dos nossos velhinhos.

A derrota do fascismo depende não só da “luta de ideias”, como indicamos anteriormente, mas também de o governo Lula completar bem sua tarefa de reconstrução nacional, e isso implica num nível de crescimento econômico tão robusto que possa incorporar as amplas massas num padrão de vida substancialmente mais elevado do que o que herdamos do bolsonarismo (que não deve servir de referência para absolutamente nada), ou seja, de retomarmos o desenvolvimento, certamente a única forma de o governo Lula completar a transição. Mas isso não depende só do governo, mas também – e talvez sobretudo – da nossa luta contra o fascismo e o neoliberalismo.

Concluindo, vamos dar dois exemplos do que poderia ter sito feito dentro da “correlação de forças” para ajudar no processo de mudança e que certamente aumentaria essa correlação a nosso favor:  bastaria o ministro da Fazenda, quando teve a chance no Conselho Monetário Nacional, haver alterado a meta de inflação (quem foi o sacrossanto esperto que decretou que a inflação em 2024 teria que ser “naturalmente” de 3%? Por que não 4%, 5%…?), anulando a desculpa dos banqueiristas do Banco Central para manter os juros nas alturas, e não engessado o arcabouço fiscal (os tais “déficits zero”, ou seja, meta que beneficiava os próceres da Faria Lima bem mais do que eles estavam “prevendo”, de acordo com a pesquisa Focus do BC na época), o que liberaria recursos para um nível de investimento público mais robusto, além de também fortalecer o investimento privado pela redução dos custos financeiros, que a economia estaria crescendo bem mais do que vem crescendo nos últimos dois anos. Poderíamos começar por aí e isso abriria espaço para prosseguirmos as mudanças indispensáveis; e, obviamente, prosseguir a luta tenaz contra os juros de escorcha. Ainda há tempo! Antes tarde do que nunca! Basta desvencilhar-se do neoliberalismo. Ou, como disse Tiradentes: “libertas quae sera tamen”.

Nilson Araújo de Souza é pesquisador do GP 1: Desenvolvimento nacional e SocialismoEconomista, Mestre em Economia pela UFRGS, Doutor em Economia pela Universidad Nacional Autónoma de Mexico (UNAM), com pós-Doutorado em Economia pela USP; professor aposentado pela UFMS, professor visitante voluntário do Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina da UNILA; membro do Comitê Central e da Comissão Política Nacional do PCdoB, Diretor da Fundação Maurício Grabois e do Instituto Claudio Campos, presidente do Sindicato dos Escritores no Estado de São Paulo; autor de vários livros, antigos e ensaios sobre economia brasileira, latino-americana e mundial, destacando-se “Economia brasileira contemporânea – de Getúlio a Lula” e “Economia internacional contemporânea – da depressão de 1929 ao colapso financeiro de 2008”, além de haver organizado vários livros com diversos autores.

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial dFMG

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