Carlos Lopes: Lenin contra o sionismo
Carlos Lopes apresenta um pequeno resumo das posições clássicas, sobre o sionismo, dos fundadores do marxismo-leninismo
Hoje está claro, escandalosamente claro, o caráter criminoso do sionismo. Os crimes dos nazistas israelenses não são acidentes dentro do sionismo. Ao contrário, fazem parte da sua natureza intrínseca.
Não foi isso o que vimos, desde que os sionistas começaram a se instalar na Palestina? Ou na sua ação em outros lugares, como nos guetos e campos, sob a ocupação alemã, no Leste Europeu?
Não bastassem os acontecimentos – inclusive as guerras e limpezas étnicas – ocorridas no Oriente Médio desde o fim da Segunda Guerra Mundial, os recentes bombardeios de Gaza, do Líbano, da Síria, do Irã, a repressão e massacres na Cisjordânia, com milhares de crianças, mulheres, idosos e homens mortos ou mutilados, são uma demonstração eloquente e nauseante desse caráter criminoso.
O que é agravado, mais ainda, quando os sionistas pretendem atribuir a pecha de antissemitas a quaisquer de seus oponentes, mesmo quando os opositores do sionismo são judeus. Em suma, quem não apoia – e terá que ser um apoio entusiástico – o genocídio dos palestinos, árabes e muçulmanos em geral, mesmo que estes últimos sejam também semitas, é considerado antissemita pelos sionistas.
Evidentemente, é uma tentativa hipócrita e desavergonhada de usar os crimes nazistas contra os judeus para justificar (é bem o termo) os crimes sionistas contra os palestinos, árabes e muçulmanos.
Entretanto, judeus não são sinônimos de sionistas, como, aliás, as manifestações judaicas contra os assassinatos de palestinos demonstraram – e como demonstram, por exemplo, os livros do historiador israelense Ilan Pappé, especialmente, A Limpeza Étnica da Palestina (2006) e Dez Mitos sobre Israel (2017).
Na obra Eichmann em Jerusalém (1963), Hannah Arendt mostra a luta, dentro da comunidade judaica, desde o século XIX, entre os assimilacionistas e os sionistas (v. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, tradução de José Rubens Siqueira, Companhia das Letras, 1999).
Mais: Arendt mostra que o lado progressista dessa luta era constituído pelos assimilacionistas, que propunham a absorção dos judeus pelas comunidades nacionais de que faziam parte.
Quanto aos sionistas, que, desde Theodor Herzl e seu O Estado Judeu (1896), propunham a separação dos judeus como nação à parte – e, por consequência, a fundação de um Estado judeu “puro” – tornaram-se, inclusive, preferidos dos nazistas, como o próprio Eichmann demonstrou, pelo menos até a Conferência de Wannsee (1942), na qual os nazistas decidiram-se pela “solução final”, isto é, pela eliminação dos judeus no continente europeu.
Antes da Segunda Guerra Mundial e do extermínio dos judeus pelos nazistas, o sionismo era considerado medularmente reacionário, e, do ponto de vista político, insignificante. Os nazistas, com a perseguição aos assimilacionistas, com o favorecimento aos sionistas, e, depois, com a vitimização ocasionada pelo genocídio de judeus, conseguiram transformá-lo em algo tão importante que fundou-se, sob o guarda-chuva da ONU, até mesmo um estado – o Estado de Israel – para abrigar os sionistas, onde antes, como escreveu Ilan Pappé, existia a Palestina, nação que tinha (e tem), realmente, um povo próprio.
Não por acaso, os sionistas repetem hoje, com os palestinos, o que os nazistas fizeram com os judeus – a limpeza étnica debaixo de sangue.
Muitos acreditam que a situação atual, em relação ao sionismo, não é a mesma de antes da Segunda Guerra Mundial. Afinal, o Estado de Israel existe – e não existia, antes da Segunda Guerra.
Infelizmente, o caráter desse Estado, fundamentalmente um braço armado – até os dentes – do imperialismo, não permite que tenhamos ilusões a esse respeito. O sionismo mantém seu caráter reacionário – e tornou-se, levando a extremos esse caráter com a fundação do Estado de Israel, assassino.
MARX E A QUESTÃO JUDAICA
Citamos, acima, alguns autores de origem judaica – Ilan Pappé e Hannah Arendt – que foram (ou são) opositores do sionismo.
Vejamos, então, um outro autor, também de origem judaica, mas muito anterior a Ilan Pappé e Hannah Arendt.
Em 1843, Marx abordou a questão judaica, com uma conclusão sintética: “A emancipação social do judeu é a emancipação da sociedade do judaísmo” (Marx, A Questão Judaica, grifo nosso).
Por quê?
Escreve Marx:
“… O judeu, que aparece na sociedade burguesa como um membro especial, não é senão a manifestação específica do judaísmo da sociedade burguesa.
(…)
“A sociedade burguesa engendra constantemente o judeu em suas próprias entranhas.
“Qual era o fundamento da religião hebraica? A necessidade prática, o egoísmo.
“O monoteísmo do judeu é, portanto, na realidade, o politeísmo das muitas necessidades, um politeísmo que converte até mesmo o vaso sanitário em objeto da lei divina. A necessidade prática, o egoísmo, é o princípio da sociedade burguesa e se manifesta como tal em toda sua pureza da mesma maneira que a sociedade burguesa extrai totalmente de seu próprio seio o Estado político. O Deus da necessidade prática e do egoísmo é o dinheiro.
“O dinheiro é o Deus zeloso de Israel, diante do qual não pode legitimamente prevalecer nenhum outro Deus. O dinheiro humilha todos os deuses do homem e os converte em mercadoria. O dinheiro é o valor geral de todas as coisas, constituído em si mesmo. Portanto, despojou o mundo inteiro de seu valor peculiar, tanto o mundo dos homens como a natureza. O dinheiro é a essência do trabalho e da existência do homem, alienada deste, e esta essência estranha o domina e é adorada por ele.
“O Deus dos judeus se secularizou, converteu-se em Deus universal. A letra de câmbio é o Deus real do judeu. Seu Deus é somente a letra de câmbio ilusória.
“A concepção que se tem da natureza sob o império da propriedade e do dinheiro é o desprezo real, a degradação prática da natureza, que na religião hebraica existe, certamente, mas só na imaginação”.
(…)
“A nacionalidade quimérica do judeu é a nacionalidade do negociante, do homem de dinheiro em geral.
(…)
“O judaísmo atinge seu apogeu com a consagração da sociedade burguesa; mas a sociedade burguesa só alcança a consagração no mundo cristão. Somente sob a égide do cristianismo, que converte em relações puramente externas para o homem todas as relações nacionais, naturais, morais e teóricas, podia a sociedade civil chegar a se separar totalmente da vida do Estado, romper todos os vínculos genéricos do homem, suplantar estes vínculos genéricos pelo egoísmo, pela necessidade egoísta, dissolver o mundo dos homens num mundo de indivíduos que se enfrentam uns aos outros atomística, hostilmente.
“… O cristão foi, desde o primeiro instante, o judeu teórico; o judeu é, portanto, o cristão prático, e o cristão prático se fez novamente judeu.
“O cristianismo só havia chegado a superar o judaísmo real na aparência. (…)
“O cristianismo é o pensamento sublime do judaísmo, assim como o judaísmo é a aplicação prática vulgar do cristianismo. Porém, esta aplicação só poderia chegar a ser geral quando o cristianismo, como religião acabada, levasse a termo, teoricamente, a auto-alienação do homem de si mesmo e da natureza.
“Só então pôde o judaísmo impor seu império geral e alienar o homem alienado e a natureza alienada, convertê-los em coisas venais, em objetos entregues à sujeição da necessidade egoísta, à negociação e à usura.
“A venda é a prática da alienação. Assim como o homem – enquanto permanece sujeito às cadeias religiosas – só sabe expressar sua essência convertendo-a num ser fantástico, num ser estranho a ele, assim também só poderá conduzir-se praticamente sob o império da necessidade egoísta, só poderá produzir praticamente objetos, colocando seus produtos e sua atividade sob o império de um ser estranho e conferindo-lhes o significado de uma essência estranha, do dinheiro.
“O egoísmo cristão da bem-aventurança se transforma, necessariamente, em sua prática acabada, no egoísmo concreto do judeu, a necessidade celestial na terrena, o subjetivismo na utilidade própria. Não explicamos a tenacidade do judeu a partir da religião, mas do fundamento humano de sua religião, da necessidade prática, do egoísmo.
“O fato da essência real do judeu realizar-se e ter-se realizado de modo geral, na sociedade burguesa, explica por que esta mesma sociedade não pôde convencer o judeu da irrealidade de sua essência religiosa, que não é, cabalmente, senão a concepção ideal da necessidade prática. Não será, por conseguinte, no Pentateuco ou no Talmude, mas na sociedade atual que iremos encontrar a essência do judeu de hoje, do judeu que não mais se apresenta como aquele ser abstrato, senão como um ser altamente empírico, do mesmo modo que é na sociedade de nossos dias que se encontra a limitação do judeu e a limitação judaica da sociedade.
“O judeu se tornará impossível tão logo a sociedade consiga acabar com a essência empírica do judaísmo, com a usura e suas premissas. O judeu será impossível porque sua consciência carecerá de objeto, porque a base subjetiva do judaísmo, a necessidade prática, se terá humanizado, porque se terá superado o conflito entre a existência individual-sensível e a existência genérica do homem” (Marx, A Questão Judaica, grifos nossos).
Isso foi escrito há mais de 180 anos. No entanto, permanece atual, inclusive em suas consequências políticas: o destino do judeu e do judaísmo, na medida em que a sociedade avance do ponto de vista econômico – isto é, em direção ao socialismo e à sociedade sem classes – é desaparecer como entidade separada, uma vez que a própria comunidade humana se liberte do judaísmo.
É uma posição em tudo oposta à do sionismo – que, na época em que Marx publicou A Questão Judaica, ainda não existia politicamente. Marx, lembramos apenas de passagem, era neto de um rabino.
Porém, é verdade, Marx não examina a questão específica do sionismo, mas a questão judaica em geral – o fato de chegar, quanto a essa questão, a conclusões antepostas ao sionismo, em uma época onde o sionismo político não existia, é uma demonstração de sua genialidade e da precisão da dialética materialista, quando ele tinha apenas 25 anos.
LENIN E O BUND
Muitos anos depois, Lenin, o grande continuador de Marx e Engels, abordaria a questão, mas agora em sua total nitidez política, pois, então, o sionismo já se tornara uma ideologia (e uma política) definida, inclusive dentro do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), onde o Bund tentava oferecer uma salada mista de sionismo e social-democracia, nome pelo qual o comunismo era conhecido antes da Revolução Russa.
O Bund era a União Geral Operária Hebraica da Lituânia, Polônia e Rússia (Bund é “união” em ídiche), que existia desde 1897. Sua base social eram os artesãos semi-proletários judeus.
Em 1898, o Bund ingressou no POSDR.
No II Congresso do POSDR (1903), o Bund reivindicou ser reconhecido como “único representante do proletariado judeu”. Esta, e a pretensão a constituir uma federação com o POSDR, ao invés da autonomia dentro dele de que já dispunham, era a condição que os bundistas estabeleciam para continuar dentro do partido.
Ambas as ideias foram rejeitadas pelos delegados ao Congresso do POSDR, o que provocou a retirada do Bund do Congresso e do partido.
Em outubro de 1903, num artigo publicado em Iskra, Lenin examinou os argumentos do Bund. O texto, que consta do oitavo tomo das Obras Completas de Lenin, é um dos mais precisos do líder bolchevique – sobretudo quanto a questões de princípio.
Os bundistas argumentavam o seguinte:
a) as vantagens, quanto à unidade do partido, e para todas as suas “frações”, da federação ao invés da autonomia;
b) o suposto caráter histórico do Bund como “representante único do proletariado judeu”;
c) “ … a alegação de que o proletariado judeu é o proletariado de toda uma nacionalidade, nacionalidade que se acha em uma situação específica”.
Como Lenin observa, as duas primeiras alegações não implicam em questões de princípio.
Quanto à primeira (as supostas vantagens da federação sobre a autonomia), escreve Lenin:
“No contexto da federação, se nos diz, as frações do Partido são iguais em direitos e participam diretamente nos assuntos comuns; no da autonomia, carecem de direitos e não participam, como tais, na vida geral do Partido. Este raciocínio cai por inteiro no campo do manifestamente absurdo; se parece, como uma gota de água com outra, aos raciocínios que os matemáticos chamam sofismas matemáticos e em que se demonstra – à primeira vista, com estrita lógica – que dois e dois são cinco, que a parte é maior que o todo, etc. (…) a pessoas que pretendem ser os únicos representantes do proletariado judeu, é até irritante ter que explicar-lhes um sofisma tão elementar como é o de pespegar um significado diferente à expressão ‘fração do Partido’ na primeira e na segunda metade do mesmo raciocínio. Ao falar da federação, se entende por fração do Partido à soma de organizações existentes em diferentes lugares; ao falar da autonomia, se entende por fração do Partido a cada organização local por separado. Se colocamos estes conceitos um junto do outro, em aparência idênticos, no mesmo silogismo, chegamos à inevitável conclusão de que dois e dois são cinco. (…)
“Não é muito mais exitosa a tentativa de demonstrar a ‘incongruência lógica’ da autonomia, tentativa realizada por meio da divisão desta em autonomia programática e autonomia técnica. Por si, esta divisão é absurda em grau superior. Por que qualificar de problemas técnicos os métodos específicos de agitação entre os operários judeus? O que tem a ver aqui a técnica, quando se trata de particularidades de língua, de psicologia, de condições de vida? Como é possível falar de independência nos problemas programáticos com motivo, por exemplo, da reivindicação de igualdade de direitos civis para os judeus? O programa da social-democracia expõe só as reivindicações fundamentais comuns a todo o proletariado, com presciência de suas diferenças profissionais, locais, nacionais e de raça. Estas diferenças determinam que a mesma exigência de completa igualdade dos cidadãos perante a lei engendre em uns lugares a agitação contra uma forma de desigualdade, e, em outros lugares, ou com respeito a outros grupos do proletariado, contra outra forma, etc. O mesmo ponto programático se aplica de modo distinto, dependendo das diversas condições de vida, da diferença entre as culturas, da distinta correlação das forças sociais nas diferentes regiões do país, etc. A agitação em prol da mesma reivindicação programática se leva a cabo de distinto modo e em distintas línguas, tendo em conta todas essas diferenças. Por conseguinte, a autonomia nos problemas que dizem respeito especificamente ao proletariado de determinada raça, de determinada nação ou região, significa que se deixa à própria decisão da correspondente organização, determinar as reivindicações específicas que se colocam para levar à prática o programa geral, assim como determinar os métodos de agitação. O Partido, em seu conjunto, seus organismos centrais, estabelecem os princípios fundamentais gerais do programa e da tática, enquanto que os diferentes modos de aplicar estes princípios, no terreno da prática e da agitação, são estabelecidos pelas diversas organizações do Partido subordinadas ao centro, segundo suas diferenças locais, de raça, nacionais, de cultura, etc.
“… não é o mais puro escolasticismo dividir a autonomia em questões programáticas e técnicas?
(…) “O Programa social-democrata reclama a plena igualdade de todos os cidadãos perante a lei. Para levar à prática este Programa, o operário judeu de Vilna apresenta uma reivindicação específica e o operário bashkir de Ufá outra reivindicação específica completamente distinta. Isto quer dizer que ‘no conjunto de problemas’ ‘se separam alguns’? Se a reivindicação geral da igualdade de direitos se concretiza na formulação de uma série de reivindicações específicas relativas à abolição de formas específicas de desigualdade, isto quer dizer que se separam aqui dos problemas gerais certos problemas específicos? As reivindicações específicas não se separam das gerais, mas que se colocam para levar à prática as reivindicações gerais do Programa. Se separa o que se relaciona especificamente ao judeu de Vilna com diferença do que se relaciona especificamente ao bashkir de Ufá. A generalização de suas reivindicações, a representação de seus interesses gerais de classe (e não de seus interesses específicos, profissionais, de raça, locais, nacionais, etc.) é incumbência de todo o Partido, do centro deste. (…) os bundistas (…) não compreenderam em absoluto a relação entre as reivindicações gerais e as específicas da social-democracia. Imaginaram que ‘do conjunto de problemas que costuma abordar a social-democracia se separam alguns’, quando em realidade cada problema tratado em nosso Programa é uma generalização de toda uma série de problemas e reivindicações específicas; cada ponto do Programa é comum a todo o proletariado e, ao mesmo tempo se divide em problemas específicos de acordo com as diferenças existentes entre ofícios dos proletários, entre suas condições de vida, sua língua, etc., etc. Os bundistas se sentem tontos pelo caráter contraditório e a dualidade da situação do Bund, consistentes em que nos problemas específicos atua como Bund, enquanto nos problemas gerais perde sua fisionomia própria. Um pouco de reflexão lhes haveria feito entender que tal ‘dualidade’ se dá na situação de todos, absolutamente todos os operários social-democratas, que nos problemas específicos aparecem como trabalhadores de determinado ofício, como membros de determinada nação ou como residentes em determinada localidade, enquanto que nos problemas gerais ‘perdem sua fisionomia própria’ e se equiparam a quaisquer outros social-democratas. A autonomia reconhecida ao Bund pelos Estatutos de 1898 é exatamente igual, por sua natureza, à do Comitê de Tula, por exemplo (…). Não só em ‘alguns’ problemas programáticos, mas em todos sem exceção se lhes concede independência, senhores, sempre e quando se trate de aplicar estes problemas às características específicas do proletariado judeu” (Lenin, A situação do Bund dentro do partido, Obras Completas, tomo 8, trad. Esp.).
A HISTÓRIA FALSIFICADA
A segunda alegação do Bund (seu caráter histórico de representante único do proletariado judeu) é enfrentada de maneira rascante por Lenin:
“Em primeiro lugar, esta tese é falsa. O próprio autor do folheto diz que ‘o trabalho de outras organizações (além do Bund) neste sentido (isto é, o trabalho realizado por elas entre o proletariado judeu) ou não aportou nada, ou deu somente resultados que não merecem atenção’. O trabalho se levou a cabo, pois, segundo sua própria confissão, e, por conseguinte, o Bund não foi o único representante do proletariado judeu; quanto à apreciação dos resultados deste trabalho, por certo ninguém confiará no juízo do próprio Bund; por último, é de sobra sabido que este se opôs ao trabalho de outras organizações entre o proletariado judeu (bastará citar o conhecido episódio da luta do Bund contra o Comitê de Ekaterinoslav do Partido, que se havia atrevido a lançar uma proclamação dirigida aos operários judeus); de maneira que, se os resultados obtidos não merecem atenção, parte da culpa corresponde ao próprio Bund.
“No mais, o grau de verdade que possa conter a referência histórica do Bund não demonstra, ainda que minimamente, a justeza de sua argumentação. Os fatos que realmente ocorreram, e a que se referiu o Bund, não falam a favor, mas contra ele. Estes fatos consistem em que durante os cinco anos transcorridos desde o Primeiro Congresso, o Bund existiu e se desenvolveu totalmente aparte e de modo independente das demais organizações do Partido. (…)
“Então, que se depreende deste fato indubitável? Na opinião dos bundistas, a necessidade de inclinar-se diante dele, de submeter-se a ele servilmente, de convertê-lo em um princípio, no único princípio que proporcione uma sólida base para a situação do Bund de legalizar este princípio nos Estatutos, que devem reconhecer o Bund como representante único do proletariado judeu dentro do Partido.
“A nosso ver, pelo contrário, tal conclusão é o mais puro oportunismo, ‘seguidismo’ da pior espécie. A conclusão que deve-se tirar da história de cinco anos de dissensão não é que se deve legalizá-la, mas que é necessário acabar com ela de uma vez para sempre. (…) Deduzir um “princípio” de organização de uns quantos anos de desorganização do Partido equivale a proceder como aqueles representantes de uma escola histórica que, segundo uma conhecida expressão sarcástica de Marx, estavam dispostos a defender o chicote com o argumento de que era histórico”.
A BASE SIONISTA
Enfim, o terceiro argumento do Bund é, afinal, uma questão de princípio: a alegação de que os judeus constituem uma nação própria, um povo e uma nacionalidade separados das outras – e, por isso, deveriam ter um partido proletário próprio e separado dos demais proletários, ou, no mínimo, federado a um partido que representasse os demais proletários.
Trata-se de um argumento meramente – isto é, vulgarmente – sionista.
Daí, a réplica de Lenin:
“… esta ideia sionista é totalmente falsa e de essência reacionária. ‘Os judeus deixaram de ser uma nação, a qual não pode conceber-se sem determinado território’, diz um dos mais destacados teóricos do marxismo, Karl Kautsky (veja-se núm. 42 de Iskra e a separata deste número: A matança de Kishiniov e o problema judeu, pág. 3). E estudando recentemente o problema das nacionalidades na Áustria, este mesmo autor procura dar uma definição científica do conceito de nacionalidade e estabelece seus dois critérios fundamentais: a língua e o território (Die Neue Zeit, 1903, núm. 2). E o mesmo escreve, palavra por palavra, um judeu francês, o radical Alfred Naquet, em sua polêmica contra os antissemitas e os sionistas. ‘Se a Bernard Lazare – diz acerca de um sionista notório – lhe agrada considerar-se cidadão de um povo especial, problema dele; mas eu declaro que, ainda que tenha nascido judeu…, não reconheço a nacionalidade judia… e não tenho outra nacionalidade além da francesa… Constituem os judeus um povo aparte?Ainda que em um passado muito longínquo fossem, indubitavelmente, um povo, respondo com um não categórico a esta pergunta. O conceito de povo pressupõe determinadas condições, que não se dão no presente caso. O povo tem que possuir um território no qual se desenvolva e, além disso, pelo menos em nosso tempo, enquanto a confederação mundial não haja ampliado ainda essa base, tem que possuir uma língua comum. E os judeus não possuem já um território nem um idioma comum… Bernard Lazare, como eu, provavelmente não conhece nem uma palavra de hebraico, e se o sionismo alcançasse as suas metas, não lhe seria fácil entender-se com seus congêneres (congéneres) de outras partes do mundo” (La Petite République, 24 sept. 1903). “Os judeus alemães e franceses não se parecem em nada com os judeus polacos e russos. Os traços característicos dos judeus não encerram nada que leve a marca (empreinte) da nacionalidade. Se, coincidindo com Drumont, fosse lícito reconhecer aos judeus como nação, se trataria de uma nação artificial. O judeu de nossos dias é produto de uma seleção antinatural que seus predecessores sofreram durante quase dezoito séculos.’ Aos bundistas lhes fica, talvez, o recurso de formular a ideia de uma nacionalidade específica dos judeus russos, cuja língua é um jargão e, seu território, a área de assentamento”.
Vem, agora, o centro do argumento de Lenin contra o sionismo:
“Totalmente insustentável, do ponto de vista científico, a ideia de um povo judeu específico é reacionária por seu significado político. Uma demonstração prática irrefutável disso são os fatos por todos conhecidos da história recente e da realidade política atual. A decadência do regime de estruturas medievais e o desenvolvimento da liberdade política foram acompanhados em toda a Europa da emancipação política dos judeus, da passagem deles de seu jargão à língua do povo entre o qual vivem e, em geral, de um inegável progresso de sua assimilação à população circundante. Devemos voltar, por acaso, às teorias originais e afirmar que a Rússia representará precisamente uma exceção, apesar de que na Rússia adquiriu uma profundidade e extensão muito maiores o movimento de libertação dos judeus, graças ao despertar de uma heroica consciência de classe no proletariado judeu? Por acaso pode considerar-se como algo fortuito o fato de que sejam precisamente as forças reacionárias de toda a Europa, e em especial as da Rússia, as que se opõem à assimilação dos judeus e se esforçam por consolidar seu isolamento?”
E, como consequência, Lenin formula a contradição com que abrimos este artigo, aquela entre o assimilacionismo e o sionismo:
“O problema judeu se coloca justamente nestes termos: assimilação ou isolamento?, e a ideia da ‘nacionalidade’ judaica reveste um caráter marcadamente reacionário não só em seus defensores consequentes (os sionistas), mas também naqueles que procuram combiná-la com as ideias da social-democracia (os bundistas). A ideia de uma nacionalidade judaica contradiz os interesses do proletariado judeu, pois provoca nele, direta ou indiretamente, um estado de ânimo hostil à assimilação, o estado de ânimo do ‘gueto’. (…) Qualificar sua própria luta em favor da ideia sionista de nação judaica, do princípio federativo de organização do Partido, como ‘luta pela igualdade de direitos dos judeus no seio da família do proletariado mundial’, significa degradar a luta do plano das ideias e dos princípios ao plano dos receios, das incitações e do atiçamento dos preconceitos que se formaram historicamente” (Lenin, op. cit.).
***
Este é um pequeno resumo das posições clássicas, sobre o sionismo, dos fundadores do marxismo-leninismo, através de suas próprias palavras.
A vida – isto é, a prática – confirmou inteiramente o que eles haviam entrevisto em épocas bastante remotas. A instalação dos sionistas na Palestina e a pronunciada defensiva dos assimilacionistas (que, apesar disso, não desapareceram), conduziu a uma catástrofe humanitária, ao expansionismo imperialista sob procuração, ao impiedoso roubo de terras, à limpeza étnica, ao banho de sangue – com milhares de crianças, mulheres, idosos e homens mortos ou mutilados.
Pretendeu-se conceder foro de história ao sionismo, transformando os judeus, que já haviam deixado de ser uma nação e um povo, em, supostamente, uma nação e um povo. Ou seja, dando aos sionistas – não propriamente aos judeus – um território. O resultado foi o assassinato em massa de um povo e uma nação, estes, sim, existentes e verdadeiros. Concretamente, para que os israelenses existissem como povo e nação era necessário eliminar os palestinos – e os árabes, talvez os muçulmanos – como povo e como nação.
Este, aliás, é o conteúdo de A Limpeza Étnica da Palestina, de Ilan Pappé.
Mais felizmente do que infelizmente, a eliminação palestina ficou na tentativa, apesar de muito dolorosa. Os israelenses e os imperialistas não conseguiram – e não vão conseguir – exterminar os palestinos, os árabes, os muçulmanos, como povo e como nação. Mas, é verdade, impuseram a eles sofrimentos inenarráveis.
Esse não é o único fracasso dos israelenses.
Ninguém, apesar de todo o esforço midiático, político, econômico e militar durante quase 80 anos, concebe que israelense seja sinônimo de judeu.
Israelense pode ser sinônimo de sionista, mas não de judeu.
Resta dizer que Israel e o sionismo não resolveram o problema judeu. Pelo contrário, o agravaram.
As raízes desse problema, que se arrasta na atualidade, foram expostas por Marx e Lenin há muito tempo.
Com certeza, mais cedo do que alguns esperam, a humanidade reencontrará seu caminho, provisoriamente afogado no sangue e sepultado entre os corpos das crianças de Gaza.
Porque continuar assim é impossível.
Carlos Lopes é redator-chefe do jornal Hora do Povo e vice-presidente nacional do PCdoB.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG