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Novas Tecnologias Disruptivas – Raça, Classe e o Fetiche Tecnocrático: O Feriado de 20 de Novembro e a Defesa Técnica

20 de novembro de 2024

No mês da consciência negra, Cristhiano Duarte, pesquisador na Chapman University, aborda como o fetiche tecnológico tem um potencial disruptivo nas lutas dos movimentos negros nacionais.

Pai, Filho e o Espírito Santo

Como prometido na nossa coluna anterior, esse mês vamos passar por um temática que me agrada muito— e que ao meu ver é absolutamente inseparável de qualquer análise séria da ordem social institucionalizada que convencionamos chamar de capitalismo. Em homenagem as lutas dos vários movimentos negros pela implementação do feriado de 20 de Novembro, um dia dedicado a memória do herói Zumbi dos Palmares, esse mês falaremos de raça e de classe.

Nesse momento, eu imagino que os leitores e as leitoras devem estar se perguntando: ‘mas ora, como assim? Essa não era para ser uma coluna sobre o estado da arte das novas tecnologias? Esse não era para ser o espaço do 5G, do Big Data, da IA, do Algoritmo? O que a santíssima trindade envolvendo raça, classe e gênero tem a ver com as ditas tecnologias disruptivas?’. Em uma palavra: tudo!

Espero não me alongar demais na justificativa da temática, posto que ela é, ao fim e ao cabo, mais um pedido desculpas ao meu editor do que qualquer outra coisa. Novembro é o mês da consciência negra e eu estaria fazendo um desserviço se me ausentasse dessa discussão. Permitam-me, caros leitores e leitoras, começar dizendo que o ‘tecno-racismo’ ou o ‘racismo digital’ são muito bem documentados e explorados na literatura nacional e internacional [1-5]. Qualquer algoritmo de inteligência artificial é escrito por uma equipe de seres humanos, mais ainda, os bancos de dados usados na etapa de treinamento desses algoritmos são também, acima de tudo, preparados por seres humanos. Nesse sentido, se o banco de dados espelhar o viés racista/sexista/classista de quem o preparou, o aprendizado desenvolvido pela ‘inteligência’ vai refletir com exatidão o viés preconceituoso presente nos dados — ou nos programadores por detrás da cena. Exemplos da reprodução de opressões raciais e de gênero em bancos de dados abundam. Entretanto, a justificativa que nos interessa aqui é mais próxima do fenômeno que ficou conhecido como exclusão digital: em 2021, somente cerca de metade da população mundial tinha acesso à internet, resultando em algo em torno de 3,7 bilhões de pessoas em modo offline — a maior parte delas de países em desenvolvimento, e uma grande fatia representada por mulheres [6,7]. Se a informação que produzimos se tornou uma commodity, como defendem certos analistas, uma grande parcela da população mundial está diretamente bloqueada desse mercado — para o bem ou para o mal. Ao serem alçados ao céu das commodities fora do alcance e, portanto, longe do domínio (e do controle) da maior parte da população mundial, recursos técnicos ganham ares de deuses do Olimpo. Suas palavras são lei — revolução industrial 4.0, fetiche das commodities 2.0. Mas porque essa abordagem é crucial para a escolha da temática desse mês?

A nossa coluna de estreia foi muito clara, falaremos do teor disruptivo das novas tecnologias sempre através das lentes do materialismo histórico. Não me advogo o único e verdadeiro herdeiro de Karl Marx, muito pelo contrário, quando muito a nossa coluna será pintada com as cores do marxismo político [8]. Por um entendimento materialista histórico queremos dizer um entendimento da atividade social e das relações sociais através das quais os seres humanos interagem com a ‘natureza’ a fim de produzir e reproduzir suas condições de vida, um entendimento que reconhece que os produtos da atividade social, as formas de interação social produzidas e reproduzidas pelos seres humanos, elas mesmas se tornam forças materiais, não menos importantes que os fatos dados. Nesse sentido, quando anos de luta anti-racista organizada são frustrados pelo uso de uma particular tecnologia, vista como defesa técnica irrefutável, o tema da racialização do povo trabalhador é mais do que pertinente para essa coluna.

Pedido de desculpas feito, vamos logo ao que interessa.

Zumbi dos Palmares, Herói Nacional

Como dito acima, nossa coluna desse mês aproveita que novembro celebra a consciência negra e, ao homenagear Zumbi dos Palmares, também homenageia a todos e todas que tombaram — e vem tombando — na luta pela emancipação da população trabalhadora negra no Brasil: os vários Dragões do Mar, as várias Terezas de Benguela, os Malês e seus descendentes, as várias Luízas Mahins, os vários Ciprianos Baratas, as várias Dandaras, os vários Marighellas, as várias Rozas Cabinda, os vários Luiz Gama, as várias Adelinas, as várias Elisabeths, os vários Azarias, os vários Wellingtons. A resistência contra o extermínio e o encarceramento em massa da população trabalhadora negra assume muitas e variadas formas. E, como era de se esperar, elas não faltam nas cidades brasileiras onde o passado escravocrata foi milimetricamente apagado da história.

O feriado nacional da consciência negra, comemorado no dia 20 de Novembro e sancionado pelo Presidente Lula em 2023 (Lei 14.759/23), acabou sendo personificado na figura de Zumbi dos Palmares— filho de Serra da Barriga, líder do quilombo dos palmares, estrategista na resistência negra à escravidão, e herói inserido no livro de aço dos heróis e heroínas da pátria. Zumbi é figura unânime nas lutas anti-racistas até os dias de hoje. A promulgação do feriado em sua homenagem é uma vitória que permite várias leituras, contudo duas facetas (materialista-históricas) também deveriam ter um lugar privilegiado na nossa memória. Primeiro, o feriado foi uma demanda dos movimentos negros nacionais, das chamadas ‘bases’ — feitas de carne e osso, de sangue e suor, de passado, presente e futuro. Segundo, feriados são momentos em que a classe pode virar as costas pra enorme máquina de moer gente do capital. Se valor é tempo médio de trabalho social envolvido na produção de commodities, um feriado, ou seja, um intervalo de tempo ‘não trabalhado’, supostamente lança duras ondas de choque na roda da acumulação capitalista.

Nesse sentido, a demanda por reconhecimento dos movimentos negros atingiu em cheio as engrenagens da acumulação de valor. Mas é claro que essa conquista não veio sem um intenso contra-ataque por parte dos arautos do capital.

O Fetiche Tecnocrata: “foi uma defesa técnica”

Muito antes da sanção presidencial e da aprovação no Congresso Nacional, a batalha pelo feriado se deu com muita luta nos municípios e nos territórios, e é nesse terreno do concreto que a nossa coluna esbarra no potencial disruptivo das novas tecnologias. Analisamos aqui o caso da cidade de Juiz de Fora, considerada em 2017 como a terceira cidade com a maior desigualdade racial do Brasil — nem um pouco surpreendente para uma cidade cujo passado negro foi apagado da história [9]. Ainda que a luta pelo feriado tenha começado muito antes, ainda em 2015, foi só em no ano de 2023 que ela encontrou um desfecho frustrante para os movimentos negros locais. Após anos de muita articulação, de organização conjunta — algo complicado com a fragmentação dos movimentos sociais e partidos — de audiências públicas, de ameaças de violência física e de racismos institucionais, um fato foi preponderante para a derrota do feriado local: uma apresentação de powerpoint preparada pelo lobby da câmara dos dirigentes lojistas local.

Um telão, um projetor e um powerpoint — sem falar de uns dados organizados de maneira que em nada apontavam para a causalidade que o lobby do capital local queria implicar. Uma apresentação chinfrim feita em powerpoint, uma inovação tecnológica de 1987, foi o que bastou para derrotar o feriado na câmara municipal. Vereadores, vereadoras e parte do movimento negro se convenceu que uma apresentação técnica tinha sido dada, que os dados eram irrefutáveis, que a demanda estava perdida. Representantes do movimento negro se questionaram o porquê da proponente do projeto também não ter usado da mesma tecnologia — ainda que ela também tenha fornecido evidências tão fortes quanto seu adversário político. O papel não é mais tecnológico, o powerpoint ainda o é.

A disputa política que se estendeu por anos, o corpo-a-corpo nas ruas, as panfletagens, as ameaças, os dias de sol quente e muita saliva, o lobby do capital, o financiamento de campanha, a orientação de uma cidade que por razões históricas se tornou apenas um polo regional de serviços, o racismo institucional, a separação entre o político e o econômico tão típica do capitalismo… nada foi levado em consideração no balanço final. O fetiche tecnocrata, a supremacia do uso de uma tecnologia ‘neutra’, a pretensa defesa técnica foi dada como fundamental para a derrota do movimento negro. O ciclo do capital se fechou de maneira estrondosa: uma tecnologia produzida sob o comando do capital, vendida a preço de ouro para o capital e fora do alcance do amplo público foi astutamente usada para por de joelhos um movimento que jogaria um grão de areia nas suas engrenagens. Raça e classe unidas mais uma vez, mas agora na derrota para a ‘tecnologia’.

O Algoritmo é o Chicote que se Aprimorou

Os avanços tecnológicos disruptivos que presenciamos são nada mais nada menos que a materialização das leis de movimento impostas pelas relações de propriedade sociais da nossa ordem social. Imaginar que exista um imperativo de avanço tecnológico cumulativo, deterministicamente projetado a priori, unidirecional, linear e libertador das mazelas do capitalismo equivale, na prática, a estender o tapete vermelho ao fetiche da commodity. Dar às novas tecnologias o status de produtos de uma lei universal, neutra e transhistórica é a porta de entrada para que sejamos esmagados pelo discurso da tecnocracia, é não entender que a ‘inteligência’ é apenas artificial, e que os algoritmos são apenas listas de instruções escritas por um trabalhador ou uma trabalhadora altamente qualificados. Em outras palavras, do momento da produção até o seu uso, não existe neutralidade nas novas tecnologias disruptivas. Como a luta pela promulgação do feriado em homenagem a Zumbi dos Palmares em Juiz de Fora nos mostra, deixar-se maravilhar pela tecnologia é não ver de onde e de quem vem a chicotada.

Agora imaginem se toda uma cidade ‘inteligente’ fosse projetada, executada e gerenciada por um algoritmo? Aguardem as cenas dos próximos capítulos…

Como dito na nossa última coluna, iríamos dedicar esse espaço para homenagear a luta do povo negro. O mês da consciência negra e o feriado do 20 de Novembro não nos foi entregue de bandeja. O reconhecimento das demandas do povo trabalhador brasileiro, majoritariamente negro, é um pequeno passo no longo caminho que é a emancipação da classe trabalhadora do subjugo do capital. Um salve para todos os meus irmãos e irmãs que lutam para ter um alimento em casa, que enfrentam a mão pesada da polícia, que correm pra subir os móveis do barraco quando chove, que enfrentam como podem o patrão que paga pouco, que fazem protesto na frente no postinho de saúde. Um salve para essa classe que é feita de carne e osso, que tem cor e que tem gênero.

Pra não dizer que não falei das flores

Enquanto escrevo essa coluna, me sinto na obrigação de comentar muito rapidamente três fatos. Primeiro, há de se notar que o prêmio Nobel de Física desse ano foi dado a dois pesquisadores (John Hopfield e Geoffrey Hinton) por trabalhos que pavimentaram o caminho para o desenvolvimento de algoritmos de aprendizado de máquina super poderosos — prometo que falo mais disso num futuro próximo. Segundo, e olha que coincidência, parte do prêmio Nobel de Química também foi dado a pesquisadores que utilizaram inteligência artificial para predizer a complexa estrutura de certas proteínas — um problema com 50 anos de idade. Por fim, estamos vendo ressurgir com força as discussões pela redução da jornada de trabalho no Brasil. Uma pauta antiga dos trabalhadores e trabalhadoras. O texto do projeto, a favor do fim da escala 6×1, é de autoria da Deputada Erika Hilton e acaba de atingir o número mínimo de assinaturas para que a PEC comece a tramitar no Congresso Nacional. Baby steps! Como o discurso da automação e do fim do trabalho também intersectam esse ponto, pretendo dedicar minhas próximas colunas a esse tema.

Como é bom ver a esquerda voltar a pautar o debate no Brasil!

Notas

[1] https://cee.fiocruz.br/?q=Tarcizio-Silva-O-racismo-algoritmico-e-uma-especie-de-atualizacao-do-racismo-estrutural
[2] https://edition.cnn.com/2021/05/09/us/techno-racism-explainer-trnd/index.html
[3] https://www.aaas.org/news/technologys-built-machine-bias-reflects-racism-scholar-says
[4] https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2021-03/algoritmos-pesquisadores-explicam-tecnologia-que-intensifica-racismo
[5] Cathy O’Neil. Algoritmos de Destruição em Massa. Editora Rua do Sabão (2021)
[6] https://www.imf.org/en/Blogs/Articles/2020/06/29/low-internet-access-driving-inequality
[7] https://press.un.org/en/2021/dsgsm1579.doc.htm
[8] Ellen Meiksins Wood. Democracia contra o Capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo (2010).
[9] https://www.sinserpujf.com.br/2024/05/14/desigualdade-racial-em-juiz-de-fora-ainda-persiste-apos-136-anos-da-abolicao-da-escravatura/

Cristhiano Duarte é pesquisador da Chapman University. É membro do Grupo de Pesquisa da FMG sobre Trabalhadores e a Era Digital.

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial dFMG