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Ditadura: João Quartim de Moraes avalia o governo do ditador Geisel no ano de 1974

10 de dezembro de 2024

O filósofo João Quartim de Moraes analisa o ano de 1974, momento em que o MBD conquistou importante avanço no parlamento brasileiro. Esse é o terceiro artigo da série “Presença do passado”, de Quartim. Foto: Reprodução.

1974: o “choque do petróleo” e o choque eleitoral

O ano de 1974 iniciou-se com a economia capitalista internacional sofrendo o impacto do “choque do petróleo”, um dos mais claros e importantes exemplos da interconexão dialética da economia e da política em nossa época. Em outubro de 1973, Egito e Síria lançaram uma ofensiva contra o Estado colonial israelense. Os Estados Unidos imediatamente organizaram uma ponte aérea para transportar as armas e os equipamentos bélicos que permitiram a seus protegidos de Tel Aviv reequilibrar a relação de forças no campo de batalha e contra-atacar. Indignados com a descarada intervenção estadunidense, os Estados exportadores árabes de petróleo, Arábia Saudita à frente, decidiram aumentar os preços e reduzir de 5% ao mês a produção, até que fossem evacuados os territórios da Palestina ocupados pelos colonialistas. Decretaram também o embargo total das exportações de petróleo para os Estados Unidos e para seu principal lacaio europeu, a Holanda. O preço médio do barril passou de 3 a 18 dólares em algumas semanas, tendendo a se estabilizar, no final do ano, em 11,65. 

Quando Geisel iniciou seu governo, os preços das importações brasileiras de petróleo estavam crescendo drasticamente (entre 3 e 4 vezes em relação a 1973), acentuando as fortes pressões inflacionárias que vinham se manifestando durante o cruel “milagre” econômico de Delfim Neto. A pequena burguesia perdeu a euforia dos anos anteriores, do patriotismo futebolístico da Copa do Mundo de 1970 ao ilusório “empreendedorismo” financeiro expresso no slogan: “não tome uma Brahma, compre ações da Brahma!” etc. Junto com os da gasolina, os preços dos bens básicos de consumo não paravam de subir e com eles a desilusão e o descontentamento. Não obstante, o êxito dos exportadores árabes em seu enfrentamento com o colonialismo sionista e com seus protetores do Pentágono e de Wall Street, certamente pesou na adoção da nova política externa brasileira. O “terceiro mundo” mostrara sua força: valia a pena desatrelar-se da subserviência aos Estados Unidos. Tal foi a diretriz de Geisel, a despeito das dificuldades internas.

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Mostrando uma visão das relações internacionais em ruptura com o alinhamento subalterno de seus predecessores no campo estadunidense ele tomou uma série de iniciativas convergentes que confirmaram não se tratar de decisões isoladas, mas de uma postura coerente de política externa independente. Ele reatou relações diplomáticas com a China Popular, rompidas pelos golpistas de 1964; reconheceu a independência dos povos africanos em luta contra o colonialismo português; rompeu o acordo militar com os Estados Unidos.  

No plano interno, porém, diferentemente de Médici, que ao ser empossado em 1969 manifestou a expectativa de “restabelecer a democracia”, mas deu carta branca aos agentes do terrorismo de Estado para exterminar a resistência armada, Geisel absteve-se de promessas inconsequentes, ponderando que a revogação do Ato 5 pressupunha o aniquilamento dos que se opunham ao regime com armas na mão. Em longa série de entrevistas de caráter autobiográfico conduzida por dois pesquisadores do CPDOC (entre julho de 1993 e março de 1994), ele comentou a pergunta “se o governo Médici era uma perspectiva de normalização” (sic). Dentro dos limites da polidez protocolar, após dizer que ele era “um homem de bem”, Geisel acrescentou: “Era simpático, todos gostavam dele. Tinha as condições para a tarefa. É verdade que não era um homem de grandes luzes, também não era um homem de trabalhar muito… Ficava nas grandes linhas. E era apaixonado pelo futebol”. Traduzindo em linguagem mais crua: Médici era um medíocre funcionário público fardado, sem ideias próprias, preguiçoso, principalmente interessado em futebol, deixando a Delfim Neto as decisões de política econômica. Quanto à alusão dos entrevistadores à “perspectiva de normalização” de Médici (cujo governo tornou norma a tortura sistemática em larga escala dos presos políticos), Geisel foi evasivo: “Naquela situação, naquela emergência, foi a melhor escolha. Quem poderia ter sido se não fosse o Médici?” (Ernesto Geisel, Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 214).  Traduzindo novamente: em setembro-outubro, na caótica crise do regime, Médici era o menos pior dos generais de quatro estrelas disponíveis para assumir a chefia do Executivo ditatorial.

Quanto a sua própria designação, em 1974, para presidir a ditadura, Geisel se ateve a generalidades protocolares, insistindo em que não trabalhou para ser candidato. Queixou-se, porém, dos “descontentes” e “maledicentes” que espalharam que ele era o candidato mais forte porque tinha oito estrelas, quatro dele e quatro de seu irmão Orlando (p. 259). 

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Havia outros pressupostos, além do aniquilamento da luta armada, que ele não explicitou. O principal era que ele não pretendia renunciar aos poderes de exceção de que estava investido antes de consolidar sua autoridade. A perspectiva de uma vitória eleitoral da oposição legal nas eleições legislativas de novembro de 1974 reforçou essa decisão. Nas eleições anteriores, em 1970, no auge do terror da ditadura, mas também do eufórico nacionalismo fascistóide (“Brasil, ame-o ou deixe-o”) e das taxas de crescimento anual superiores a 10%, boa parte da oposição havia preconizado o voto nulo. A vitória dos candidatos do regime, reunidos na ARENA (Aliança Renovadora Nacional), sobre o MDB (Movimento Democrático Brasileiro, partido da “oposição consentida”), foi esmagadora: obtiveram dois terços da Câmara Federal e 59 das 66 cadeiras do Senado. Mas o efeito de legitimação do regime foi quase nulo. Dentro e fora do Brasil, ficou claro que se tratava de uma farsa eleitoral e que a ditadura era de fato um “regime de partido único”. 

Tendo em vista essa imagem pejorativa, Geisel afrouxou consideravelmente a censura e o controle policial no processo eleitoral de 1974. De seu ponto de vista, era o risco a correr para conferir credibilidade ao projeto de “abertura” do regime. O custo político, para ele, foi pesado. Nas eleições de 15 de novembro, em que o voto para senador assumiu caráter claramente plebiscitário, o MDB elegeu 16 senadores, das 22 cadeiras em disputa e 161 deputados, 44% do total de 364 cadeiras em disputa na Câmara Federal. Em São Paulo, na disputa pelo Senado, Orestes Quércia, do MDB, derrotou o ex-governador Carvalho Pinto, da ARENA, por 4,3 milhões de votos contra 1,5 milhões. 

Geisel reagiu com habilidade à fragorosa derrota, declarando em sua mensagem de fim de ano: “Ressentimentos – e não há razão para cultivá-los – não me tolhem, nem sinto simples constrangimento – que até seria compreensível – ao registrar que o MDB alcançou substancial avanço na autenticidade de sua crescida expressão política”. Reconheceu os resultados, mas obviamente não iria dizer que iniciativas tomaria para contrabalançar o avanço eleitoral da oposição. A objetividade histórica, de qualquer modo, obriga reconhecer que através das alternâncias de abertura e fechadura, aos trancos e barrancos como se dizia outrora, ele não perdeu o rumo de seu projeto institucional: usar o Ato 5 para revogar o Ato 5.

João Quartim de Moraes é professor universitário, formado em Filosofia e em Direito na Universidade de São Paulo. Em 1968-69 participou da resistência clandestina à ditadura militar. Passou os anos setenta exilado na França. Após a anistia, voltou ao Brasil. Professor de Filosofia na Unicamp Publicou vários livros e muitíssimos artigos no Brasil e na Europa. É pesquisador sênior do Centro Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Seus temas centrais: história do pensamento político, materialismo antigo e moderno, marxismo, instituições brasileiras.

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial dFMG.

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