Uma linha confusa e de direita
A discussão que iniciamos no Partido é um acontecimento dos mais importantes na vida política do país. Os comunistas são a força de vanguarda da sociedade brasileira e suas posições políticas não podem deixar de exercer séria influência sobre o conjunto da situação nacional. Esta discussão, ainda que se realize nos limites das fileiras partidárias, interessa a todos os trabalhadores, aos patriotas e democratas. Grande é, assim, a responsabilidade dos comunistas neste debate, do qual deve sair a orientação que presidirá toda a atividade do Partido nos próximos anos.
Considero de muita importância a luta ideológica que a discussão possibilitará. Temos pouca experiência em relação a esta luta. No passado, quando surgiam divergências, não as tratávamos, em geral, corretamente, pensando que a verdade se encontrava do nosso lado e que as discordâncias eram perigosas à unidade e à disciplina do Partido. Isto não era justo. O Partido não pode livrar-se das concepções estranhas, nem alcançar uma completa unidade sem discutir fraternal e amplamente todas as opiniões divergentes. Mas a luta ideológica é uma luta em busca da verdade, que deve realizar-se num plano de princípios e objetivando fortalecer o Partido. É possível que os inimigos do comunismo tentem explorar as divergências de opiniões, procurem apresenta-las como testemunho de divisão no Partido. Enganam-se. Para os comunistas as divergências são temporárias e subsistem enquanto não se chega ao conhecimento do que é correto. O Partido, porém, é permanente. Sua unidade está acima de tudo.
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A linha atual do Partido se expressa na Declaração de Março de 1958 e nas Teses. Se nos atermos aos elementos essenciais expostos naqueles documentos, podemos observar que, entre as premissas em que se baseiam, destacam-se as seguintes:
1º – No quadro da estrutura atrasada do Brasil “foi se processando nas últimas décadas, um desenvolvimento capitalista nacional, que constitui o elemento progressista por excelência da economia brasileira”. Em conseqüência, “surgiu e se fortaleceu cada vez mais uma burguesia interessada no desenvolvimento independente e progressista da economia nacional”.
2º – Este desenvolvimento capitalista “entra em conflito com a exploração imperialista e a estrutura tradicional, arcaica e em decomposição” e “exige cada vez mais, como seu instrumento, uma independência política completa, que se traduza numa política exterior independente e na proteção conseqüente do capital nacional contra o capital monopolista estrangeiro”.
3º – À medida que a burguesia vai participando do poder, modificações importantes vão se verificando no regime político. A burguesia, junto com o proletariado, vem lutando pela democratização da vida política brasileira e o Estado tende a democratizar-se. Isto se traduz “na extensão dos direitos políticos a camadas cada vez mais amplas”, chegando mesmo “às zonas rurais”. Isto se reflete também no Parlamento, indicando o “aumento da influência da burguesia nos partidos políticos e a utilização do voto por grandes setores das massas”. O Poder Judiciário e o Poder Executivo estão também se democratizando. Os atentados às liberdades democráticas já não são cometidos propriamente pelo Estado, mas “pelos elementos reacionários do aparelho do Estado” (Tese 18).
4º – Com a eleição de Vargas, em 1950, e, especialmente com a de Juscelino Kubitschek, em 1955, a burguesia nacional conseguiu, mais diretamente, sua participação no governo. Surgiu nele “um setor nacionalista burguês”. Este setor “tem influído para importantes decisões positivas” como a “defesa do monopólio estatal do petróleo e a manutenção de um clima de legalidade constitucional na vida política” e faz pressão “por importantes modificações, como a do estabelecimento de relações com a União Soviética e demais países socialistas”. O setor reacionário, todavia, ainda é forte no governo, impedindo que o setor nacionalista burguês consiga realizar suas pretensões ou pressionando para que este capitule.
Apoiadas nestas premissas – que, queiramos ou não, transformam a burguesia em força conseqüente – a Declaração e as Teses indicam o seguinte caminho: lutar pela ampla união de forças políticas e sociais, nestas incluindo latifundiários, para se opor ao imperialismo norte-americano e conquistar, dentro do regime atual, um governo nacionalista e democrático. “Este governo – dizem as Teses – poderá ser conseguido pela pressão pacífica das massas e das correntes antiimperialistas orientada no sentido de fortalecer e ampliar o setor nacionalista do atual governo (isto é, o setor burguês, J.A.), com o afastamento do poder de todos os entreguistas e sua substituição por elementos nacionalistas”. Sob a pressão das massas e dentro do regime atual, este governo começará a realizar reformas de caráter democrático e antiimperialista. À medida que se for acumulando reformas e que se conseguir obter modificações na composição e na política do governo, iremos nos aproximando das transformações radicais desta etapa da revolução. Isto pode exigir um ou sucessivos governos democráticos e nacionalistas.
Em essência, esta é a linha política do Partido.
Aonde poderá conduzir esta linha? Ela só pode conduzir o proletariado e as massas trabalhadoras a um beco sem saída; a depositar suas esperanças no desenvolvimento do capitalismo e na burguesia; a acreditar na possibilidade de reformas profundas e conseqüentes dentro do regime atual; a descrer na necessidade da revolução. É uma linha de apologia do capitalismo, de ilusões na burguesia e de subordinação do proletariado aos seus interesses. Seguindo por este caminho o povo brasileiro não conseguirá livrar o país da dependência ao imperialismo e das sobrevivências feudais, não limpará o terreno para o socialismo no Brasil.
A burguesia nacional é, sem dúvida, uma das forças interessadas na luta contra o imperialismo norte-americano e, em certa medida, contra as reminiscências feudais. Seria um erro subestimar tais posições. Está interessada no desenvolvimento capitalista e luta por ele. Mas a burguesia não é uma força conseqüente e tende à conciliação com o imperialismo, o que, aliás, em palavras, reconhecem as Teses. Por outra parte, a burguesia no Brasil está vinculada direta ou indiretamente ao latifúndio, sendo difícil encontrar o industrial “puro”, livre dos laços com a terra ou com os bancos ligados ao monopólio da terra.
O capitalismo vai se desenvolvendo, é inegável. A burguesia cresce e defende certas posições antiimperialistas. Mas, no fundamental, uma boa parte da burguesia, pelo menos a mais poderosa, vai se conciliando com o imperialismo, se unindo a ele, progredindo à custa da inflação que recai penosamente sobre o povo. As “importantes modificações” verificadas na economia do país não tocam nem de longe nos restos feudais e no domínio do capital monopolista norte-americano que, ao contrário, tem conseguido aumentar a exploração do povo brasileiro. É equívoco pensar que as contradições entre o desenvolvimento do capitalismo e o monopólio da terra são antagônicas, como afirmam as Teses. O capitalismo, seguindo o caminho prussiano, pode se desenvolver no campo, conservando o latifúndio. Pode também o capitalismo crescer, subsistindo a dependência do país ao imperialismo. Um exemplo significativo é o caso do Canadá, onde apesar da dominação imperialista, o capitalismo já atingiu um elevado grau de desenvolvimento. Não é o crescimento do capitalismo que leva à independência e às transformações democráticas, como se afirma implicitamente nas Teses (nº 25). Seria cair na denominada teoria das “forças produtivas”. Em nosso país, a necessidade de transformações radicais há muito já que amadureceu. Sua realização não depende propriamente do desenvolvimento do capitalismo. Depende fundamentalmente de fatores subjetivos, da criação da força social capaz de vencer a resistência dos reacionários, o que tem sido difícil conseguir devido, entre outros fatores, a falta de uma justa orientação política do Partido e sua insuficiente ligação com as massas.
O desenvolvimento do capitalismo e a participação da burguesia no poder não conduzem implicitamente à democratização do país. A liberdade não é inerente ao capitalismo. É indiscutível que uma sociedade capitalista necessita conceder certos direitos políticos à população. Isto surge objetivamente da própria exigência cultural determinada pelas necessidades da produção capitalista. Mas a concessão destes direitos pela burguesia é coisa muito relativa. Haja vista a posição de Nasser, no Egito, e a dos governos de outros países que conquistaram sua independência, onde a burguesia nacional se comporta, em grande parte, como inimiga das liberdades democráticas.
Neste sentido a experiência brasileira é significativa. De 1930 para cá, quando a burguesia conseguiu reforçar suas posições no Estado, são bem pequenos os períodos em que o povo gozou de relativa liberdade. Além disto, no período de 1937 a 1945, quando se verificou importante surto industrial no país, foram justamente anos de dura reação, os anos de Estado Novo. Que relação teria neste caso o desenvolvimento do capitalismo com a democracia? Observa-se no Brasil fenômeno diferente: todos os grandes ascensos do movimento de massas, por não terem tido força suficiente para se impor, foram reprimidos, seguindo-se períodos mais ou menos longos de reação interna. Assim aconteceu com o ascenso de 1934-35, assim ocorreu com o ascenso de 1945-47. Tanto num como noutro período as classes dominantes apelaram até mesmo para os métodos terroristas de governo. Não conheço qualquer atitude de luta pela democracia por parte da burguesia nacional durante os anos do Estado Novo. Bem ao contrário. A reação não impediu que o capitalismo se desenvolvesse e ajudou a burguesia a explorar mais duramente a classe operária.
O Estado brasileiro que representa, no fundamental, os interesses dos latifundiários e da grande burguesia (uma parte da qual está ligada ao imperialismo) é uma entidade reacionária. Certo que o papel do Estado não é usar sempre em quaisquer circunstâncias a violência ou os métodos antidemocráticos. Ele procura aparecer tanto quanto possível como órgão do “equilíbrio social”. Só mostra sua verdadeira fisionomia quando as classes oprimidas se levantam para lutar mais decididamente pelos seus interesses. A verdade é que todos os movimentos populares de certa envergadura no Brasil são reprimidos sem contemplações “democráticas”.
Ainda há pouco o movimento estudantil verificado no Rio de Janeiro contra o simples aumento do preço das passagens de bondes, foi respondido com uma verdadeira ocupação militar na cidade. Fato semelhante ocorreu em Curitiba, em Florianópolis, Fortaleza e Belo Horizonte. E que dizer da simples tentativa dos operários de São Paulo em promover uma greve pacífica de protesto contra a carestia da vida? Que dizer da mobilização policial e militar levada a efeito contra esses trabalhadores? Não se pode falar em democratização do poder judiciário pelo fato de que juízes absolveram dirigentes comunistas. Os tribunais de Hitler também absolveram Dimitrov. O que se observa, tomando por base o período compreendido pelas três últimas décadas, é que o judiciário tanto absolve como condena os patriotas e democratas, dependendo da conjuntura política.
Ao invés de cantar loas à democratização do Estado, deve-se é afirmar que as liberdades são produto da luta do povo e só podem existir à medida em que o povo se organiza e luta por elas e também à medida que o povo não alimente ilusões no caráter do Estado das atuais classes dominantes.
Aliás, não é demais dizer aqui, que as Teses e a Declaração esquecem quase inteiramente o papel das lutas do proletariado e do povo como o fator fundamental de certas conquistas obtidas. Não há nesses documentos nenhuma apreciação dessas lutas que são, no fim de contas, elementos importantíssimos para uma justa compreensão dos fenômenos políticos e mesmo econômicos em desenvolvimento. Chega-se ao ponto de apresentar as vacilações do governo na realização de uma política antipopular como decorrência da heterogeneidade de sua composição ou da dualidade da burguesia (Tese nº 18), quando, na realidade, o fator principal nas vacilações do governo são as lutas do povo e as manifestações crescentes de descontentamento generalizado em todas as camadas da população.
As lutas do povo, o crescimento da consciência democrática e a diminuição da tensão internacional são que obrigam as classes dominantes a mudar de tática, a fazer certas concessões. Ao mesmo tempo, as classes dominantes no Brasil vão utilizando outros recursos para garantir seu domínio, tais como o quase monopólio da imprensa, o monopólio do rádio e da televisão, o suborno nos meios sindicais, a corrupção nas campanhas eleitorais etc, o que torna, em muitos casos, formal a existência de certas liberdades.
No que tange às pretendidas mudanças no caráter do governo, é ilusão pensar que se pode, com substituição de alguns ministros ou de pessoas que se encontram em outros postos, mudar a natureza do governo e torná-lo capaz de “aplicar uma política externa de independência e defesa da paz, assegurar o desenvolvimento independente e progressista da economia nacional, dar início à reforma agrária, tomar medidas em favor do bem-estar das massas, garantir e ampliar as liberdades democráticas”. Este governo representa no fundamental os interesses das forças reacionárias.
Só mesmo o subjetivismo mais completo leva a dizer que ele pode se transformar no seu contrário, deixar de ser governo das forças retrógradas e passar a ser o governo das forças revolucionárias do país.
A linha atual do Partido é, assim, falsa. Baseia-se em premissas e conclusões idealistas, não expressa um ponto de vista de classe do proletariado no exame dos diversos problemas que se apresentam na situação brasileira. Indica um caminho enganoso que, quando muito, poderá levar à obtenção de algumas reformas. É uma linha que afasta o Partido e as massas do caminho revolucionário.
Esta linha cria no Partido a concepção de que, defender a necessidade da substituição do regime atual – é sectarismo; reivindicar a solução revolucionária, radical, dos problemas básicos do povo brasileiro – é também sectarismo; indicar às massas a necessidade da criação de um poder das forças antiimperialistas e antifeudais, dirigido pela classe operária, como o único capaz de libertar o Brasil do domínio imperialista e das sobrevivências feudais – é igualmente esquerdismo. Esta concepção é, porém, tipicamente oportunista.
Manifesto-me, pois, contra a linha da Declaração e das Teses. Ao fazê-lo não pretendo uma volta ao passado. Estou convencido de que não eram justas muitas posições políticas anteriores do Partido. Os métodos de trabalho com os aliados e com as massas apresentavam graves defeitos, a democracia interna e a direção coletiva não eram levadas à prática.
Reconheço minha grande responsabilidade nestes erros, que também o eram de toda a direção do Partido. Penso, no entanto, que os comunistas já acumularam suficiente experiência para, sem cair nos erros passados, traçarem um justo caminho para o partido e para as massas, tendo em conta a situação presente e os objetivos a alcançar da atual etapa da revolução no Brasil.
Vivemos num período de grande efervescência em todas as camadas do povo, uma época de enorme descontentamento popular. Agravou-se seriamente não só a situação dos operários e camponeses, mas também a situação da média e da pequena burguesia. Não se trata apenas dos estudantes e intelectuais, mas da oficialidade das forças armadas, do pequeno e médio industrial, do pequeno e médio comerciante, que constituem vastos setores da população. O sentimento democrático e patriótico do povo cresceu e cresce cada vez mais. Aprofundam-se também as divergências regionais que, no Brasil, jogam ainda importante papel. Nos Estados que vão se empobrecendo e que sofrem mais duramente a política do governo, vai se formando um clima coletivo de luta contra esta situação.
O Partido precisa elaborar uma nova linha política. Uma linha que, sendo ampla e flexível, guie o proletariado e o povo à sua libertação nacional e social. O Partido precisa sair das posições oportunistas em que se encontra, precisa romper com a linha de direita da Declaração e das Teses.