Empresas multinacionais assaltam a água da África

Cairo/Lusaka/Bamako – Nos últimos anos, particularmente após 2008, quando registrou-se alto recorde nos preços de alimentos básicos internacionalmente, foi iniciado e multiplicado o fenômeno de usurpação de gigantescas extensões de terras cultiváveis na África, em troca de um prato de lentilha, por países estrangeiros e empresas multinacionais com objetivo a produção de alimentos para serem consumidos nos denominados países ricos, ou para a produção de biocombustíveis.

Grande foi a repercussão naquela época pela ocupação de gigantescas extensões de terras cultiváveis (cerca de 45 milhões de hectares) em detrimento das comunidades locais, da produção agrícola doméstica e da economia de países africanos em desenvolvimento, como a Etiópia, Zâmbia, Sudão do Sul, Uganda e outros.

Contudo, constata-se agora uma igualmente séria consequência da usurpação de terra cultivável pelos empresas multinacionais, que representa o assalto dos recursos hídricos indispensáveis para a sobrevivência das populações dos países africanos.

Há algumas semanas, a organização não governamental Grain denunciou que “por trás da usurpação de terras agrícolas de países africanos, dissimulam-se interesses para algo muito mais valioso: a água de rios e lagos de regiões que já são propriedade de governos estrangeiros e de poderosas empresas multinacionais da Índia, Grã-Bretanha, Arábia Saudita, Dubai e outros países”.

Segundo, ainda a denúncia, “quem adquire gigantescas extensões de terras da África, independente se tem sede em Londres, Nova York ou Adis Abeba, não deseja apoderar-se somente de terra, mas também da água, buscando livremente e sem restrição alguma acesso aos recursos hídricos locais, considerando que não é possível produzir alimentos sem água”.

Isto explica porque inúmeras empresas da Arábia Saudita adquirem ou alugam por décadas (leasing) milhões de hectares de terra de países africanos em desenvolvimento não tanto para produção de alimentos destinados à Arábia Saudita, mas para exploração da água, que falta dramaticamente neste país.

Mas, ao que tudo indica, não são somente os empresas da Arábia Saudita que têm a brilhante idéia de usurpar terras africanas, mas também indianas, como a Karuturi Global, originária de Bangalor, considerando que a única forma para não faltarem alimentos à cada vez mais aumentada (com ritmo de pesadelo) população indiana é não só a garantia de terra cultivável, mas, também, de água potável.

“O verdadeiro tesouro não encontra-se na terra, mas na água”, reconheceu, caracteristicamente, Neal Krauder, executivo da financeira britânica Clayton Capital, que alugou com o método de leasing gigantescos latifúndios em Zâmbia.

Se alguém pensar que um em cada três africanos vive em ambiente onde a água potável é rara, então compreende as dramáticas consequências que terá para a sobrevivência dos povos africanos a usurpação de terras e recursos hídricos pelas multinacionais nas próximas décadas. Quanto mais, quando o mais valioso bem para a vida, a água, está ameaçado, entre outros, também, pelas mudanças climáticas.

Irrigação ao longo do Nilo

As mais carentes e sofridas pela falta de água regiões da África são aquelas que situam-se ao longo do maior rio do continente africano, o Nilo, não só desde a época de construção da grande barragem de Assuan (década de 1960), ou pelos acordos de “divisão” das águas que havia imposto o colonizador Império Britânico.

Na região de Gabela, de Etiópia, onde encontra-se o maior volume de água do Nilo, perto da fronteira com o Sudão do Sul, empresas como a Saudi Star, da Arábia Saudita e a indiana Karuturi construíram já gigantescos canais de irrigação, aumentando maciçamente o desvio de gigantescos volumes de águas para irrigação de seus latifúndios.

No Sudão do Sul, cerca de 5 milhões de hectares de terra foram transferidos por intermédio de leasing a multinacionais estrangeiras desde 2006, totalizando um espaço de terra equivalente à Holanda.

Também o rio Niger, que mata a sede de uma grande parcela da África Ocidental, está na alça de mira dos latifundiários estrangeiros. Calcula-se que este rio já perdeu cerca de 1/3 de seu volume de água por causa da construção de barragens, obras de irrigação, estiagem e contaminação, e prevê-se que perderá outro tanto nas próximas décadas, por causa das mudanças climáticas.

Em Mali, os governos dos últimos anos formalizaram acordos transferindo 470 mil hectares de terras a empresas multinacionais, vindas da Líbia, China, Grã-Bretanha e Arábia Saudita, terras estas que não poderão ser cultivadas sem novas obras de irrigação de água do rio Niger.

Na Etiópia (África Oriental) deu a volta do mundo, na primavera passada, o escândalo do governo de expulsar, com violência, milhares de pessoas da população de suas terras, a fim de construir uma gigantesca obra hidrelétrica e criar espaço para cultivo de cana de açúcar no vale do rio Omo, causando dramáticas consequências – entre outros – para a existência da lago Turcana, fonte do rio.

No Quênia, já eclodiu guerra entre a população e o governo por causa de sua decisão transferindo a empresas multinacionais grandes extensões de terras localizadas no delta do rio Tana.

A bacia e o delta do rio Senegal, na África Ocidental, já passaram ao controle de interesses estrangeiros, após a formalização de acordo com o governo que lhes transferiu milhares de hectares de terra, apesar das fortes reações dos moradores da região que sobrevivem de atividades agrícolas.

Tudo isso terá dramáticas consequências para a sobrevivência das populações africanas das regiões afetadas pelo apetite insaciável dos interesses estrangeiros e e pela corrupção desenfreada dos governos.

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Fonte: Africa News Agency, no Monitor Mercantil