Mas a desfaçatez econômica continua a mil por hora: existe ainda um amplo corredor para se apostar em mais “combate à inflação” e corte de gastos para (não) enfrentar este dragão. Até onde vamos?

Os números…

Muito revelador. O estudo encomendado pela Federação das Indústrias de São Paulo sob o título de “Uma análise das perdas comerciais brasileiras para a China (2009-2009)” e publicado no último número da revista Pontes sugerem análises muito mais de fundo. Os números desvelam verdades muitas vezes ainda incompreensíveis para grande parcela dos analistas, principalmente os “de mercado”. Além do mercado interno, o estudo restringe a análise da competição somente aos mercados norte-americano, argentino e europeu.

Vamos diretamente às citações:

“A competição entre Brasil e China foi amplamente desfavorável para a economia brasileira, que sofreu perda líquida em todos os mercados analisados. Em uma década, a perda que alcançou US$ 18,2 bilhões, foi distribuída entre EUA (US$ 9,3 bilhões); UE (US$ 7,3 bilhões); e Argentina (US$ 1,6 bilhão). No mercado interno, o estudo mensurou que a competição entre Brasil e China resultou em uma perda líquida de US$ 15,2 bilhões para os produtores nacionais.”

Tem mais, colocando a nu nossa tendência a exportador de commodities, consagradas por pensadores, quem diria, proscritos com a Revolução de 1930:

“Em linhas gerais, as maiores perdas do Brasil para a China nos mercados analisados ocorreram em setores [3] de maior valor agregado. Destes, três setores responderam por metade das perdas ao longo do período estudado. Por outro lado, os ganhos ocorreram essencialmente em setores de produtos intensivos em recursos naturais (peles, seda, fumo, óleos vegetais, etc) – exceção feita aos setores de aeronaves e químicos.”

A nossa pauta de exportações está transitando rapidamente de uma tendência à valoração industrial para outra primarizante, conforme indica as informações abaixo:

“No geral, foi no setor de máquinas, aparelhos e materiais elétricos que se observou o maior deslocamento de mercado para a China: US$ 4,7 bilhões. Em segundo lugar, o setor de máquinas e aparelhos mecânicos registrou US$ 2,4 bilhões em perdas; seguido do setor de ferro fundido, ferro e aço, que totalizou cerca de US$ 2 bilhões em perdas para os chineses.”

… e a tendência objetiva

Aos que desdenham daqueles que apontam a desindustrialização brasileira como tendência objetiva, pensemos nas passagens abaixo:

“A maior parcela das perdas brasileiras no mercado interno ocorreu na última comparação de biênios (2006-07 versus 2008-09). Tais perdas somaram US$ 11,1 bilhões, ou seja, 72% do total perdido no mercado interno na última década (US$ 15,2 bilhões).

Como no setor externo, os setores que mais perderam na competição com a China no mercado interno foram os intensivos em tecnologia. Cerca de 48% da responsabilidade pelo deslocamento total de mercado divide-se entre três setores. Coube ao setor de material eletrônico e aparelhos de comunicação 29% do total de perdas, para os chineses no mercado interno deste setor. O segundo setor com maior perda foi o de máquinas e equipamentos para escritório e informática, somando US$ 1,5 bilhão. Em terceiro, e com perdas localizadas exclusivamente na comparação 2006-07 versus 2008-09, o setor de máquinas e equipamentos teve um deslocamento de mercado de quase US$ 1,5 bilhão causado pela China.”

Olhando adiante, além do que nossos olhos (e às vezes, nossas convicções políticas) não permitem, as considerações finais do documento são desalentadoras:

“A variável cambial é, sem dúvida, uma das determinantes para a competitividade das exportações de um país. Se mantida em um patamar competitivo, ela também auxilia na proteção das cadeias produtivas industriais, podendo ser um importante motor de desenvolvimento.

A interação entre o câmbio brasileiro sobrevalorizado nos últimos anos com a subvalorização da taxa de câmbio chinesa implicou significativas perdas no exterior para o Brasil, mas demonstrou também que os danos agora se espalham por toda a economia e podem trazer uma desarticulação da indústria nacional brasileira. Atualmente, a China representa 8,1% do consumo de máquinas do Brasil – em contraste com 1,7% em 2001 – e 22,8% do consumo interno de equipamentos de informática – quando, nove anos antes, este valor era de 2%.”

Não é mentira: os chineses multiplicaram em oito vezes a participação no consumo de máquinas e equipamentos no mercado interno brasileiro. O que mais chama a atenção é que esses números não estão sendo apresentados nem pautados por nenhum “movimento social”. É a Federação das Indústrias de São Paulo que está colocando o dedo na ferida num interessante sinal dos tempos.

A demanda chinesa e o aumento dos aluguéis no Brasil

Às vezes existe a tendência de análise da crise financeira (ainda em andamento) a partir de seu aspecto puramente financeiro, ou seja, pela hipertrofia financeira do sistema. Esquece-se de enxergar o outro lado desta crise que é exatamente o de sobreinvestimento industrial concentrado na periferia do sistema, sobretudo na China e seu redor. A saída desta crise no Brasil demanda investigarmos profundamente a natureza deste sobreinvestimento asiático e buscar lições nela. Se o exercício da análise histórico não é capaz de trazer a discussão a patamares racionais, que o presente (muito bem demonstrado no estudo da FIESP) nos traga para a sã realidade: o processo de industrialização rápida, acelerada e (quase) monstruosa na Ásia não se deve apenas a questões de ganhos nas relações produtividade/câmbio e produtividade/salário, mas também por imensas desonerações fiscais e um sistema de crédito de longo prazo capaz de sustentar tanto os programas de investimentos estatais e privados quanto à viabilização de carreamento de centenas de bilhões de dólares a programas de expansão infraestrutural. Claro como água, esse sobreinvestimento industrial rebaixa o nível dos preços de máquinas, equipamentos e afins – demonstrando a irracionalidade de nossa taxa de câmbio (e juros, dada a “financeirização” de nossa banda cambial) em um mundo que mudou muito nas últimas décadas. A estratégia exportadora e sua base na política cambial é parte deste todo-complexo que explica o avanço chinês e, porque não, poderá explicar uma nova estratégia desenvolvimentista e vitoriosa em nosso país? Aqui temos que “combater a inflação” e cortar gastos…

Além da não-compreensão das transformações operadas no sistema capitalista nos últimos anos, a forma religiosa de se apresentar dos monetaristas (e seus papagaios, “analistas” convidados pela Globo News) incide no ridículo simplista de apresentar a receita chinesa com base numa ditadura que manipula os meios de comunicações, ferindo os preceitos da “liberdade de expressão”. Quando na verdade, pouco se comenta que o espaço público das comunicações no Brasil está à disposição de apenas algumas famílias ressoando não uma receita desenvolvimentista e inclusiva socialmente (como no caso dos chineses) e sim o pensamento programado pelo sistema financeiro. Daí se explica a febre pelo aumento dos juros na imprensa brasileira, como se fosse explicável (cientificamente) o fato de um problema de demanda na China ser capaz de alterar os preços dos aluguéis e das mensalidades escolares no Brasil.

Tudo como dantes?

Diante do choque externo provocado pela crise, a recomposição do crédito nacional foi uma grande jogada executada por nossa governança. Independente, evidente, da visão corroborada pela grande mídia nacional em favor de enfrentamento da crise com mais crise como em 1999. O ano de 2010 impulsionado por quedas nas taxas de juros interna e a participação acentuada do setor financeiro público trouxe alento e boas perspectivas, inclusive no combate político aos medievalistas da política monetária ortodoxa. Porém, o crescimento provocado pelas ações estatais teve reação proporcional e a taxa de juros voltou a subir, juntamente com a ladainha do corte de gastos. Tudo isso como parte de uma conjuntura, no plano internacional, ultraconservadora que ao que parece tomou de assalto o debate econômico nacional.

Ao que tudo indica a reação do governo à crise não passou de uma ação de “exceção em meio a um ambiente de exceção”. O crescimento de quase oito por cento em 2010 tornou-se uma anomalia que jamais deveria ser repetida, muito menos os instrumentos que trouxeram este resultado. O real continuaria em sua trajetória de alta, alentado seu caráter financeiro, pois parece blasfêmia indicar a necessidade de controle de capitais como parte de uma estratégia. Algo que até a Colômbia (sob a ocupação do imperialismo) e as Filipinas (ex-colônia norte-americana) já fazem com relativo sucesso. Isso sem falar da própria China e seus vizinhos!!!

Livre movimentação de capitais, crescimento dos gastos correntes do Estado menor que o PIB e maior superávit primário são demonstrações de poder do sistema financeiro sob a lógica da coordenação fiscal e financeira. Se de um lado esta combinação Impossibilita, no médio e longo prazo, a liberação de poupança exclusiva para o desenvolvimento do país, por outro serve de rock bottom para apostas e ganhos com a elevação da taxa de juros. No atual momento assistimos a um duro ajuste fiscal de quase R$ 60 bilhões e a previsão de crescimento de nosso PIB em 2011 para menos de 4,5%. Enquanto isso nosso concorrente estratégico asiático cresceu em 2010 mais de 11% e deve crescer 10% este ano.
O estudo da FIESP mais as opções brasileiras apenas escancaram um futuro sombrio para nossa nação. Não exagero, pois sem indústria não existe nação digna deste nome no século XXI. Enquanto isso, observem o semblante de Obama ao lado de seu homólogo chinês Hu Jintao.

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Doutor e Mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP, autor de “China: infra-estruturas e crescimento econômico” e pesquisador da Fundação Maurício Grabois.