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A violenta guerra Globo-Diários Associados na ditadura militar

Em 1965, o deputado federal João Calmon, do Partido Social Democrático (PSD) do estado do Espírito Santo, diretor do poderoso grupo de mídia Diários Associados, pertencente a Assis Chateaubriand, influente ator do cenário político brasileiro, ganhou destaque com uma campanha de difamação contra o ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, também deputado federal, que acabou em ameaça de assassinato. O deputado capixaba, veemente contestado pelo agredido, disse que aprendera a atirar de maneira a atingir zonas letais do corpo humano a distância ou a queima-roupa.

A contenda gerou um livro de bolso, escrito pelo jornalista David Nasser, da revista O Cruzeiro, pertencente ao Diários Associados, com o título “João sem medo — o homem que derrotou Brizola” e prefácio da famosa escritora Raquel de Queirós. A projeção de Calmon o levou à presidência da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert). Quando o presidente da República, o golpista Castelo Branco, exigiu que a mídia trabalhasse para “unir o povo em torno da revolução”, o deputado capixaba foi designado para liderar uma “campanha continental” com essa finalidade.

Falando na instalação da assembleia extraordinária da Associação Interamericana de Radiodifusão, no luxuoso hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, Calmon prometeu, olhando para Castelo, um combate sem trégua no rádio à televisão ao “comunismo” e em defesa da “livre iniciativa”.

— A estatização é o caminho mais rápido para o comunismo e a liquidação da propriedade privada – discursou.

— Unidos pelo ideal de democracia, enquanto numerosas áreas, comunistas ou não, promovem avassaladora estatização, vamos demonstrar que o controle do rádio e da televisão pela iniciativa particular pode transformá-los nas mais poderosas forças da civilização contemporânea – disse Calmon.

Duas propostas da Abert foram aprovadas na assembleia: uma constituiu a Comissão Internacional para executar as campanhas em defesa da “iniciativa privada” e combate ao “comunismo”, e outra criou a “central de produção” de notícias.

Calmon logo se notabilizaria também pelo combate à presença de grupos estrangeiros de mídia no Brasil, uma tendência que vinha desde antes do golpe. Ele denunciou, inicialmente, a Editora Abril, comandada pelo ítalo-americano Victor Civita, flagrantemente em desacordo com Constituição, que vedava o acesso de estrangeiros a ao controle de meios de comunicação. Civita seria um testa-de-ferro do grupo norte-americano Time-Life e intermediou o acordo firmado com o empresário Roberto Marinho para criar a TV Globo, inaugurada em 26 de abril de 1965.

A briga do representante do Diários Associados com Roberto Marinho expôs o primeiro racha na cúpula do golpe. O presidente Castelo Branco determinou que o ministro da Justiça, Mem de Sá, constituísse uma “comissão de investigação” para apurar as denúncias “com o maior rigor possível”. De acordo com o presidente, Calmon era “um homem merecedor de respeito e consideração”, não levantaria suspeitas infundadas.

A denúncia da negociata de Roberto Marinho ganhou a adesão de Carlos Lacerda, dono do jornal Tribuna da Imprensa e governador do estado da Guanabara, e motivou o Conselho Nacional de Telecomunicações (Contel) a abrir um processo para investigar o caso. A apuração concluiu que havia marmeladas, além da já revelada na Editora Abril — o maior conglomerado de mídia estrangeiro, com dezoito publicações e dois milhões de exemplares mensais —, envolvendo também o Grupo Folha, que estaria em negociação com o Grupo Rockfeller; e o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul.

Em entrevista à TV Rio, Calmon disse que Roberto Marinho havia encaminhado uma consulta de empréstimo à Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), aumentando ainda mais a suspeita do grupo do presidente da República Castelo Branco de conluio de setores do governo com o negócio ilegal, e motivou o deputado Eurico de Oliveira (PTB-Guanabara) a pedir a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados — depois de muita pressão contrária, a CPI foi constituída em 19 de outubro de 1965.

As revelações causaram um reboliço nos bastidores do governo e nos grupos de mídia, que deflagraram uma pesada troca de acusações. O Jornal do Brasil atacou o presidente da Abert em editorial intitulado “Jacobinismo provinciano”, acusando-o de xenofobismo e de agir para abolir a “competição democrática” entre os grupos midiáticos. O Grupo O Estado de S. Paulo, ao responder em tom agressivo a um leitor que questionou a presença de capitais estrangeiros na mídia em carta ao Jornal da Tarde — uma de suas publicações —, abriu fogo contra o Grupo Folha, que editava os jornais Folha de S. Paulo, Folha da Tarde, Última Hora e Notícias Populares. O leitor, que assinou como Newton Proença Cavalcanti, terminou a carta com uma pergunta incisiva.

 — É verdade que as seguintes empresas brasileiras estariam sob controle acionário dos seguintes grupos estrangeiros? Rockefeller: Folha, Última Hora, Notícias Populares, Diário Carioca, TV Excelsior, Correio da Manhã (arrendado por cinco anos); Time-Life: O Globo, TV Paulista, Editora Abril Limitada, NBC (Mórmons), Rádio Piratininga e rádio e TV Bandeirantes (em negociações).

A resposta do JT, como o jornal era conhecido, foi violenta. Disse que o leitor era “um desses “esquerdinhas que alimentam seus espíritos pouco cultivados com slogans enlatados”, que não liam e nem viam televisão, e que ele ganharia uma gorda recompensa se conseguisse demonstrar o que acusava.

— Se lesse jornais ou visse televisão saberia que o deputado João Calmon respondeu, há poucos dias, pela televisão, a todas essas perguntas, denunciando a existência de empresas jornalísticas financiadas por capital estrangeiro - atacou.

A resposta atingiu o fígado do Grupo Folha, que reagiu à altura. A Folha de S. Paulo, em editorial intitulado “Nossa moeda é o trabalho”, lembrou que o jornal havia publicado na primeira página um comunicado desfazendo “de maneira cabal” as “insinuações” de João Calmon na entrevista à TV Rio e afirmou que mesmo assim o Grupo O Estado de S. Paulo alimentou a mentira. A Folha questionou a autenticidade do leitor e acusou o concorrente de possuir “força econômica” de duvidosa procedência. A polêmica se desdobrou em novas acusações, mas o foco principal, para o governo, era o negócio do Grupo Time-Life com o Grupo Globo.

O tenente-coronel Rubens Mário Brum Negreiros, membro do Conselho Nacional de Segurança, foi indicado para a “comissão de investigação” por influência de aliados militares do presidente da Abert, sobretudo o chefe da Casa Militar da Presidência da República, general Ernesto Geisel — além dele, compunham a “comissão” Gildo Correia Ferraz (procurador da República) e Celso Luiz Silva (gerente de Fiscalização dos Créditos Estrangeiros do Banco Central).

Roberto Marinho convenceu uma ala do governo e da mídia a isolar, acatar e desmoralizar Calmon. A primeira ação foi uma visita ao ministro da Justiça, Mem de Sá, um lance ousado para mostrar que ele estava disposto a brigar por suas posições. O capo do Grupo Globo lamentou o momento da visita, logo após a instalação da “comissão de investigação”, pensando que isso poderia dar margem a interpretações dúbias, mas o próprio ministro esclareceu que não havia motivo para esse receio por se tratar de uma conversa “entre amigos”. A segunda foi uma série de visitas a veículos da mídia tidos como seus aliados.

Em declaração ao Jornal do Brasil, Roberto Marinho disse que Calmon estava interessado em deter apenas a entrada de dólares na imprensa brasileira, ignorando o ingresso de francos, pesestas ou rublos, referindo-se ao presidente da Abert ironicamente como “velho amigo”. Ele atacou o Diários Associados, sem citar o nome do conglomerado de mídia, dizendo que Calmon cometia injustiças ao “terçar armas” contra qualquer outro monopólio privado contrário ao monopólio “dos outros”.

— De qualquer modo, folgo em verificar que o meu amigo Calmon, mesmo cometendo algumas injustiças, está desencadeando forças que podem, afinal, contribuir poderosamente para a moralização da imprensa no país. Não seria crível que o governo revolucionário, tão atuante em outros setores, perdesse a oportunidade para acabar com as empresas jornalísticas que há muito sobrevivem graças apenas aos odiosos privilégios que lhes foram concedidos – agulhou.

Mais um vez ironizando Calmon, Roberto Marinho disse que o presidente da Abert não agia de má-fé mesmo sendo diretor de uma organização de jornais, de rádio, de revistas e de televisão com notórias dificuldades financeiras que procurava com seus ruidosos pronunciamentos uma maneira de eliminar ou criar embaraços para seus mais fortes concorrentes.

O passo seguinte seria o desligamento do Grupo Globo da Abert, anunciado em carta de Roberto Marinho endereçada à entidade, logo seguido pela Rádio Jornal do Brasil. Calmon reagiu com novas denúncias, dizendo que fora procurado pelo diretor no Brasil da petrolífera multinacional Esso, Paulo Carvalho Barbosa, que, em tom de ameaça, exigiu o fim da campanha contra o acordo do Grupo Globo com o Grupo Time-Life. O presidente da Abert mostrou um relatório dando conta da compra de ações do Grupo Globo pela Esso por meio de empresas intermediárias.

Calmon chegou a defender, na Câmara dos Deputados, a estatização da mídia para conter a investida estrangeira. A proposta contundente surgiu depois de informações na Justiça do Trabalho contidas na reclamação trabalhista do ex-diretor geral da TV Globo, Rubens Amaral, que demostravam a intervenção do Grupo Time-Life na emissora. O Grupo Globo respondeu com comunicados em vários jornais, lidos em suas emissoras de rádio e TV, dizendo que o Diários Associados, em tempos passados, fora beneficiado por acordos de Assis Chateaubriand com o magnata norte-americano David Rockfeller. A mídia ligada a Roberto Marinho também intensificou os ataques a Calmon — chegaram a dizer que ele deveria mudar o nome para João “Calmão”, mais adequado ao seu “nacionalismo”.

A tentativa de esvaziar a Abert atingiu também a “comissão de investigação”. Além do bombardeio de Roberto Marinho e seus aliados, acusando a iniciativa de “autoritária” e “invasiva”, não havia local para ela trabalhar. No dia da sua instalação, o ministro Mem de Sá disse que o Ministério da Justiça era pobre e sugeriu a sede do Conselho de Segurança Nacional para o seu funcionamento, onde existiam salas, “embora sem móveis”. Ele também comunicou a imprensa que a “comissão” não daria nenhuma notícia durante o andamento dos trabalhos.

Em agosto de 1966, a “comissão”, que nunca obteve um lugar definitivo para trabalhar — reunia-se esparsamente e ouviu poucas pessoas —, entregou seu relatório final ao novo ministro da Justiça, Carlos Medeiros da Silva, recheado de informações artificiais que em notas os grupos estrangeiros já haviam tornadas públicas. O documento foi para alguma gaveta do Ministério; as movimentações políticas para a substituição do presidente Castelo Branco estavam a todo vapor e havia interesses de todos num período de trégua. A paz temporária foi selada num almoço promovido por Castelo Branco no Palácio das Laranjeiras, a sede do governo do estado da Guanabara, em 22 de março de 1966, com as presenças de diretores de jornais, entre eles Roberto Marinho e João Calmon.

O general Costa e Silva, ministro da Guerra, como escolhido para substituir Castelo Branco, sugeriu o nome do presidente da Abert, agora um influente líder do partido político que dava sustentação à ditadura, a Aliança Nacional Renovadora (Arena), para a vice-Presidência da República. Na acirrada disputa que se estabeleceu, saiu vitorioso o grupo de defendia o ministro da Educação, Pedro Aleixo, e a guerra Roberto Marinho-Pedro Calmon voltou a pegar fogo. O Grupo Globo foi incitado por seus apoiadores do governo a atirar para matar.

Em nota publicada nos jornais, assinada pela TV Globo, Calmon foi acusado de pedir dinheiro à Embaixada norte-americana. Quem fez a denúncia, de acordo com o jornal O Globo, foi a correspondente do jornal Washington Post, Georgie Anne Geyer.

— Autorizadas fontes norte-americanas daqui salientam que Calmon, cujo império está mergulhado em dívidas, procurou a Embaixada americana, no outono passado, a fim de obter dinheiro para livrar os “Diários” das dificuldades. Ante a negativa do então embaixador Lincoln Gordon, ele, ao que informa, jurou vingar-se – teria escrito a jornalista.

Seguiu-se mais uma violenta troca de acusações, com Lincoln Gordon e Georgie Anne Geyer dando declarações desencontradas, um autêntico duelo nas páginas dos jornais O Globo e O Jornal — este, o líder do Diários Associados. Calmon também usou a tribuna da Câmara dos Deputados para desancar Roberto Marinho. E declarou-se vitorioso com o resultado da CPI, que encerrou seus trabalhos em 22 de agosto de 1966 concluindo pela inconstitucionalidade dos acordos do Grupo Globo com o Grupo Time-Life.

— Os contratos firmados entre a TV Globo e o Grupo Time-Life ferem o Artigo 160 da Constituição, porque uma empresa estrangeira não pode participar da orientação intelectual e administrativa de sociedade concessionária de canal de televisão; por isso, sugere-se ao Poder Executivo aplicar à empresa faltosa a punição legal pela infringência daquele dispositivo constitucional - defendeu o parecer do relator, deputado Djalma Marinho, que pertencia à Arena.

O relatório das investigações apontou que a TV Globo, inequivocamente, fora financiada pelo Grupo Time-Life sob a cobertura de um contrato regulamentando a prestação de assessoria técnica. Outro infração grave foi a compra de equipamentos a uma taxa de dólar um terço mais baixa do que o valor de mercado em vigor.

O contrato principal estabelecia que o grupo norte-americano obteria parte dos lucros líquidos da TV Globo, um ato ilegal, já que não podia haver participação estrangeira nos lucros de empresas brasileiras de comunicação. No contrato de assistência técnica constava que o Grupo Time-Life teria de “colaborar” na elaboração do conteúdo da programação e noticiários — mais uma prática proibida, uma violação do Código Brasileiro de Telecomunicações. O acordo sequer foi apreciado pelo Contel. Apenas dois anos após a assinatura dos contratos a TV Globo enviou um deles — o de assistência técnica — para a Sumoc, assim mesmo por ordem do Contel.

Em nova burla às leis, a TV Globo, atingida pela campanha do deputado João Calmon, trocou o contrato principal por um de arrendamento de um terreno onde se localizava a sede da televisão. No contrato constava que a TV Globo seria locatária de um prédio vendido ao Grupo Time-Life, feito antes da venda do local aos norte-americanos. O grupo de Roberto Marinho alugou um prédio que era seu. Em troca do uso, se comprometeu a pagar 45% do lucro líquido da empresa pelo aluguel. Somado aos 5% do lucro líquido, destinado à assessoria técnica, o grupo norte-americano detinha 50% da TV Globo. Para impedir qualquer tipo de fiscalização, alguns documentos da transação desapareceram.

Roberto Marinho, apesar de baleado naquela refrega, saíra fortalecido. Havia uma lógica na sua conduta, ditada pela tendência de moldar a mídia com o alinhamento incondicional do golpe ao ditame norte-americano no âmbito da Guerra Fria anticomunista. O decadente grupo de Assis Chateaubriand, o Diários Associados, estava tão avariado que não responderia aos estímulos do regime. A segunda opção, a Editora Abril — intermediária da negociata de Roberto Marinho com o Grupo Time-Life —, também estava descartada pela flagrante ilegalidade constitucional. A emergência de um novo grupo seria a saída óbvia.