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Falta de abraço, de espaço, de ar: os dias das crianças na ditadura eram assim

“Lembro do meu pai descendo no elevador e nós não podíamos dizer que estávamos juntos. A porta abriu, meu pai estava no elevador, mas eu não podia falar com ele. E lembro que a gente trocou uma piscada. Eu lembro que meu pai piscou pra mim quando aquele elevador abriu.”

A cineasta Marta Nehring tinha pouco mais de 5 anos e “tinha essa consciência de que estava vivendo uma situação muito especial”. Vivia com os pais, Norberto Nehring e Maria Lygia Quartim de Moraes, no hotel Havana Libre, em Cuba, com outros guerrilheiros e filhos de guerrilheiros. Pequena, já sabia que a reação normal de uma criança, de abrir os braços e correr para o pai, não cabia na sua existência.  

Em 1996, Marta resolveu revisitar sua história e de outros 14 amigos no filme 15 Filhos, com direção também de Maria Oliveira, filha de Eleonora Menicucci e de Ricardo Prata, ex-presos políticos, ambos torturados nos porões da ditadura.

O curta tem início com as lembranças de Ivan Seixas e a voz de Elis Regina cantando Aos Nossos Filhos. “É uma música que me marca pra cacete... ‘perdoem a cara amarrada, perdoem a falta de ar, os dias eram assim’.”

Aos nossos filhos
(música de Ivan Lins e Vitor Martins imortalizada na voz de Elis Regina)

Perdoem a cara amarrada
Perdoem a falta de abraço
Perdoem a falta de espaço
Os dias eram assim

Perdoem por tantos perigos
Perdoem a falta de abrigo
Perdoem a falta de amigos
Os dias eram assim

Perdoem a falta de folhas
Perdoem a falta de ar
Perdoem a falta de escolha
Os dias eram assim

E quando passarem a limpo
E quando cortarem os laços
E quando soltarem os cintos
Façam a festa por mim

E quando largarem a mágoa
E quando lavarem a alma
E quando lavarem a água
Lavem os olhos por mim

Quando brotarem as flores
Quando crescerem as matas
Quando colherem os frutos
Digam o gosto pra mim
Digam o gosto pra mim

Adolescente, Ivan já tinha atividade política e por isso foi escolhido como uma espécie de 16º filho no filme. Foi preso com seu pai, Joaquim de Alencar Seixas, aos 16 anos de idade, em abril de 1971. Também foram presas a mãe, Fanny, e suas duas irmãs, Iara e Ieda. Joaquim Seixas morreu sob a tortura muitas vezes aplicada na frente do filho.

A canção composta por Ivan Lins e Vitor Martins pede perdão também pela falta de abraço, de espaço, de abrigo, de amigos, a falta de ar. “De repente eu perdi um pouco da inocência aos 7 anos, é muito cedo isso!”, lamenta André Herzog, filho de Clarice e Vladimir Herzog.

“E aí que só vi esse rapaz que eu jamais vou esquecer o rosto: ele chegou perto do meu pai, pôs a arma na cabeça e atirou”, conta Telma Lucena. “E ele é morto ali e você fica assim: meu Deus, será que é isso mesmo que aconteceu, será que eu estou vivendo em outro planeta, ou será que estou imaginando tudo isso tudo que aconteceu. Porque foi assim um assassinato brutal, foi uma coisa assim que eles chegaram, foi muito rápido”, completa a irmã Denise. Antônio Lucena foi assassinado pela ditadura na porta de casa, na frente das filhas, da mulher Damaris e do filho Ailton, então com 3 anos de idade.

Os militares não gostavam da gente
“Nem o nome deles eu sabia o verdadeiro. Chamava de tio, mãe, tia, pai, tudo assim. Também demorei anos pra descobrir que eu não sabia o nome deles. E quando descobri que não sabia o nome verdadeiro, aliás, não sabia nome nenhum, achei um absurdo. Com que sou filha de alguém e não sei o nome dos pais?”

Janaina Teles é filha de Amélia e César Teles. Ela e o irmão Edson foram presos com os pais em 1972 e ameaçados da mesma tortura que eram forçados a ver os pais sofrerem. Lutaram durante toda a vida para que fosse reconhecida a responsabilidade do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-Codi/São Paulo de 1970 a 1974. “Ela (a mãe) contava que tinha os militares e que eles não gostavam da gente.”

O maior presente que os pais podiam dar às crianças era o silêncio. “A lembrança que tenho é de mistério”, conta Priscila Arantes, filha de Maria Auxiliadora e Aldo Arantes. Ela e o irmão André foram presos com a mãe, no interior de Alagoas, no dia 13 de dezembro de 1968 – uma hora após ser lido, na Voz do Brasil, o texto do Ato Institucional de número 5.

Além do mistério, nos relatos dos 15 filhos há muito medo. “Eu via que entravam na casa das pessoas e matavam. Era muito simples meu raciocínio. Era olhar e falar: os caras vão vir aqui se eu contar essa história ou ficarem sabendo, podem vir aqui e acabar com minha família. Já acabaram com metade, acabam com a outra metade”, lembra Joca Grabois.

Filho de André Grabois e Criméia de Almeida, o menino nasceu na prisão e não chegou a conhecer o pai, assassinado em outubro de 1973 na guerrilha do Araguaia. O Estado reconheceu sua morte, mas não informou à família o que foi feito do corpo. Mauricio Grabois, pai de André e avô de Joca, também foi morto no Araguaia em dezembro de 1973.

No artigo Dor e desamparo: filhos e pais, 40 anos depois, publicado em 2008 – e de onde foram retiradas as informações sobre as famílias dos 15 filhos –, a psicanalista Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes lembra que as falas e depoimentos (no filme) não pertencem somente ao esse tempo e nem apenas são referências a acontecimentos no Brasil. “Poderiam ser contadas em qualquer tempo e em qualquer país, e todos, com certeza, seriam afetados pelas lembranças reveladas.”

E destaca os anos todos que se passaram sem explicações sobre os casos de morte, de desaparecimentos: “Com o decorrer do tempo, essas explicações podem vir a ser consideradas desnecessárias. O tempo já apagou, poderá se supor, a necessidade de que ocorram. É exatamente este viés que este texto quer repudiar. O acostumar-se com um descaso pode fazer pensar que se tornou banal após tanto tempo decorrido, a ponto de ter amarelado uniformes verde-oliva e apequenado a imensidão do poder militar reinante no país, por quase 21 anos, após o golpe de 1964”.

O documentário 15 Filhos pode ser visto abaixo
(se o vídeo não rodar em seu navegador, assista por aqui)