Pelo menos 51 países estão discutindo desde 2013 um acordo global de comércio que, se entrar em vigor, pode mudar radicalmente a estrutura da economia do planeta. O Tisa (Trade in Services Agreement, na sigla em inglês), que é negociado em sigilo, tem como princípio direto provocar uma liberalização inédita dos agentes econômicos, com consequências financeiras e sociais enormes, sobretudo para os países do sul.

Estados Unidos, a União Europeia, e 22 outras nações, incluindo Canadá, México, Austrália, Israel, Coreia do Sul, Japão, Noruega, Suíça, Turquia, Chile, Colômbia, Costa Rica, México, Panamá e Peru e Uruguai estão nas negociações. Doze dos países do G20 – o grupo das vinte economias mais importantes do planeta – estão representadas, mas cabe ressaltar que nenhum dos BRICS – a sigla para Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – foi incorporado nas conversas.

Se for concluído, o acordo deve liberalizar o comércio global de serviços, numa definição bem ampla, que engloba o transporte aéreo e marítimo, e-commerce, telecomunicações, contabilidade, engenharia, consultoria, saúde, e educação privada. A ideia é acabar com toda a regulamentação, seja ao nível nacional, provincial ou local.

Concretamente, isso significa que os governos assinantes do acordo não poderiam mais optar, por exemplo, por mais controles de segurança em companhias aéreas, recusar a implantação de universidades estrangeiras ou decidir quantos médicos devem trabalhar nos hospitais em relação ao número de pacientes.

Com o Tisa, as empresas estrangeiras deverão receber o mesmo tratamento que as companhias nacionais. Segundo o texto que vazou no Wikileaks, as regulamentações admissíveis não poderiam “atrapalhar mais do que o necessário para garantir a qualidade do serviço”. Pelas mesmas razões os investimentos estrangeiros não poderiam sofrer de nenhum tipo de restrição, podendo até controlar setores inteiros.

Transporte aéreo
No caso do transporte aéreo, a proposta do Tisa faria com que suas regras prevalecessem sobre as da Organização Internacional da Aviação Civil Internacional (OACI). “No documento Tisa não há praticamente nenhuma discussão sobre normas de segurança”, declarou a Federação Internacional dos Trabalhadores dos Transportes após leitura do documento publicado pelo Wikileaks. “Ao longo da última década, a terceirização da manutenção de aeronaves aumentou constantemente, e há estudos científicos que apontam as possíveis implicações negativas deste fenômeno para a segurança da aviação atual e futura”, continua. 

Além disso, o acordo propôs uma chamada “transparência” dos governos em relação ao mundo corporativo que parece em realidade, uma submissão dos interesses públicos aos privados. Se o Tisa entrar em vigor, todas as regulamentações que possam limitar a atividade empresarial deverão ser anunciadas às empresas para que possam se adaptar e se preparar. Nos fatos, a informação prévia garante aos lobbies a possibilidade de reagir ao tempo para mudar, ou até impedir as decisões dos governos.

O Wikileaks ressalta que o Tisa é “uma manobra antitransparência significativa”. Apesar dos impactos importantes – as conversas condicionam mais de 68% do comércio mundial de serviços – o acordo comercial tem sido pouco discutido em público. Além de ser negociado de maneira secreta, o acordo deve continuar confidencial durante cinco anos após o fim das conversas, seja adotado ou abandonado.

“O sigilo acabou. Membros do Tisa tentando manter suas populações no escuro quanto às implicações negativas do acordo para a estabilidade financeira, a segurança pública, e as jurisdições reguladoras feitas por funcionários democraticamente eleitos foram expostos à luz do dia, no maior vazamento de negociações comerciais secretas da história”, diz Deborah James, da rede Owinfs, comemorando o vazamento de Wikileaks.

No setor financeiro, as consequências poderiam ser devastadoras, impedindo os governos de se protegerem contra uma reedição da crise de 2008. No rascunho vazado pelo Wikileaks, por exemplo, a Suíça pede que todos os países do acordo permitam que “qualquer novo serviço financeiro” possa entrar nos seus mercados. Em teoria, as chamadas “regras prudenciais” pensadas para proteger os depositantes ou investidores poderiam ainda existir, mas elas não deveriam atrapalhar as regras do Tisa, o que as torna irrelevantes.

Estados Unidos

Os primeiros beneficiários deste eventual acordo são os Estados Unidos, já que 80% da economia do país estão no setor de serviços. Comentando o avanço das negociações, a Câmara de Comércio dos Estados Unidos disse em abril passado que um acordo bem sucedido beneficiaria o setor de serviços do país, assim como seus 96 milhões de trabalhadores – 84% da mão de obra do setor privado.

“O Tisa deveria expandir o acesso aos mercados estrangeiros para as indústrias de serviços norte-americanos e garantir que eles recebam um tratamento como nação mais favorecida”, disse a Câmara. “Ele também deve levantar limites setoriais dos governos estrangeiros sobre o investimento em serviços”, acrescentou.

Entre os adversários mais ferrenhos dos acordos estão os sindicatos, nos próprios Estados Unidos. Eles lembram as perdas de emprego provocadas por acordos de livre comércio anteriores. “Mais uma vez, este texto favorece a privatização contra os serviços públicos, e limita a ação do governo em temas tão diversos como a segurança ou o meio-ambiente, usando o comercio como cortina de fumaça para limitar os direitos dos cidadãos”, denuncia Larry Cohen, o presidente do Communications Workers of America.

Para o presidente Barack Obama, os críticos dos acordos comerciais cuja aprovação ele está tentando acelerar no Congresso estão apenas “inventando coisas” sobre as potenciais implicações negativas. O presidente enfrenta, dentro do seu país, a reação de alguns políticos como a senadora democrata Elizabeth Warren, que denunciam os riscos destes acordos para a estabilidade financeira dos Estados Unidos.

“Discriminação”

Por sua vez, os membros do Tisa insistem que o acordo quer apenas acabar com a discriminação contra prestadores de serviços estrangeiros. Num comunicado conjunto, representantes dos Estados Unidos e da União Europeia asseguraram em março passado que os “acordos comerciais não impedem a ação dos governos em áreas como distribuição de água, educação, saúde ou serviços sociais”.

No entanto, os documentos vazados pelo Wikileaks sugerem que a adoção do Tisa deveria incentivar a criação de tribunais internacionais parecidos com o da Organização Mundial do Comércio (OMC) para resolver os litígios comerciais com um impacto nas leis locais. Por exemplo, a OMC obrigou no mês passado os Estados Unidos a revogar as leis que exigiam que as carnes vendidas fossem rotuladas com o seu país de origem. Se não acatar a decisão do tribunal, Washington deverá pagar multas.

Analisando os textos das negociações sobre os mercados de serviços financeiros globais, Wikileaks assegura que o Tisa “estabelece regras que facilitam a expansão das multinacionais financeiras – cujas sedes estão principalmente em Nova York, Londres, Paris e Frankfurt – em direção de outras nações, impedindo os entraves regulamentares”. Desta maneira, apesar dos grandes países do mundo emergente – como os dos Brics – estarem fora da negociação, eles não ficariam protegidos.

“Os documentos mostram que o Tisa terá impacto até sobre os países não participantes”, assegura o Owinfs. Para a organização, o acordo é elaborado como “a lista de desejos das empresas dos setores de serviços dos países desenvolvidos, com o objetivo de contornar a resistência do Sul dentro da OMC”. Com o Tisa, os países ricos poderiam conseguir penetrar nos mercados dos países em desenvolvimento “sem confrontar as contínuas desigualdades em matéria de agricultura, propriedade intelectual, e outros subsídios”, conclui o Owinfs.