Madri, 15 de maio de 2011. Centenas, depois milhares de manifestantes, logo rebatizados de “indignados” pela imprensa, se reuniam na Puerta del Sol, no coração da capital espanhola. Eles denunciavam a influência dos bancos na economia e uma democracia que não “os representava”. Febris, suas assembleias proibiam bandeiras, siglas políticas e tomadas de palavra em nome de organizações coletivas. Um slogan logo surgiu em suas fileiras: “O povo unido não precisa de partido”.

Três anos depois, a Praça da Puerta del Sol está vazia. A ambição de que as coisas mudem não desapareceu, ela se transformou. De forma inesperada, a esperança se cristalizou agora em uma nova forma política, “Podemos”. Enquanto na maioria dos países europeus os partidos se chocam com um descrédito crescente, ele encontra, ao contrário, um sucesso arrebatador.

“É difícil acreditar”, sorri o eurodeputado Pablo Echenique em um encontro organizado pelo “círculo” parisiense do Podemos, em novembro de 2014. “Nosso partido foi criado em janeiro de 2014. Cinco meses depois, tivemos 8% dos votos nas eleições europeias. Hoje, todas as pesquisas mostram nossa formação como a maior força política da Espanha!” Os dirigentes do Podemos sabem que pesquisa não é eleição. Em dezembro de 2014, inclusive, novas pesquisas relegaram o partido ao segundo lugar, atrás do Partido Socialista Espanhol (Psoe). É difícil, no entanto, excluir a possibilidade de uma vitória nas eleições gerais que devem acontecer no mais tardar em 20 de dezembro de 2015.

A criação do Podemos nasceu de uma constatação: “Em nossa opinião, o movimento de 15 de maio se fechou em uma concepção ‘movimentista’ da política”, explica o sociólogo Jorge Lago, membro do conselho cidadão do Podemos, sua direção ampliada. “A ideia de que uma acumulação progressiva de força ia necessariamente levar a uma tradução política em agrupamentos se revelou falsa.” Associações de luta contra os despejos foram criadas, redes de resistência contra a quebra da saúde apareceram, mas o movimento geral perdeu fôlego, antes de se desagregar.

No plano eleitoral, a mesma decepção, continua Lago: “80% da população se dizia de acordo com o movimento, mas as pessoas continuaram votando de maneira tradicional”. Em novembro de 2011, as eleições gerais terminaram numa maré de conservadorismo. Daí a dupla hipótese dos fundadores do Podemos: e se, entre as pessoas que simpatizavam com o movimento de 15 de maio, algumas ainda desejassem ser representadas, pelo menos por enquanto? E se a passagem pelo Estado representasse uma condição sine qua nonda transformação social?

Mesmo rompendo com os chamados à democracia direta da Puerta del Sol, o Podemos quer ser o herdeiro do “espírito de maio”, principalmente por meio de seus princípios de financiamento participativo, transparência e deliberações coletivas. No entanto, seus membros parecem ter feito um balanço crítico de algumas armadilhas das assembleias. Durante o primeiro congresso do partido, em outubro de 2014, a moção de Echenique defendia a ideia de aumentar a descentralização, a horizontalidade e a flexibilidade. A de Pablo Iglesias, que ganhou com vantagem e propulsou este mestre de conferências da universidade ao posto de secretário-geral do partido, sugeria, ao contrário, que atingir os objetivos do movimento implicava dotá-lo de uma organização menos disposta a diluir suas reivindicações em uma interminável reflexão sobre seu próprio funcionamento.

Os manifestantes de 2011 mais ligados à autonomia do movimento social estão longe de gritar traição. “O Podemos surgiu como meio de institucionalizar a energia social e o processo de experimentação maciça” dos últimos anos, estima Nuria Alabao, militante de um coletivo de Barcelona.1 O Podemos não “recupera” o movimento de 15 de maio, ele lhe propõe um novo eixo de luta, rebatem do lado da equipe de Iglesias. “Os movimentos sociais podem muito bem conservar sua autonomia ao mesmo tempo que apoiam, quando lhes parece justo, um governo que lhes é mais favorável do que aqueles que a Espanha conheceu nos últimos tempos”, observa Lago. A questão do apoio apresenta, no entanto, menos dificuldades do que a da crítica: o que acontece quando um governo que os movimentos sociais consideram tímido demais já se encontra atacado pelos conservadores? Deve-se aumentar o coro e fazer o jogo do adversário, ou calar suas reservas e assim trair seus próprios combates. Como em outros lugares do mundo, a pergunta persiste.

Ainda que não exista continuidade direta entre o movimento de 15 de maio e o surgimento do Podemos, o segundo não teria sido possível sem o primeiro, que, de acordo com os dirigentes do novo partido, lhe ofereceu um sujeito político raramente assim constituído na Europa: o povo. “Não foi ‘o povo’ que produziu o levante, foi o levante que produziu seu povo”, escreve o coletivo anônimo Comitê Invisível em seu último livro.2 Enquanto em outras latitudes “povo” ainda é um vocábulo vazio, uma potência política fantasiosa que ambiciona aglomerar em discursos encantatórios, na Espanha o termo teria tomado corpo durante as longas noites de ocupação das praças.

O surgimento deste “nós” coletivo se explica em grande parte pelas torpezas das elites do país, aqueles que o Podemos batizou de “a casta”. A começar por um nível de corrupção que dá à França a imagem de um templo de virtude. Cerca de 2 mil casos foram atualmente objeto de investigações da justiça. Eles dizem respeito ao menos a quinhentos altos funcionários, com um custo para o Estado estimado em 40 bilhões de euros por ano.3. Reação dos dois principais partidos, o Partido Popular (PP, direita, no poder) e o PSOE: entender-se para “limitar a responsabilidade penal às pessoas individuais que recebem doações ilegais”4 e manter fora do alcance da justiça as formações políticas que tiram proveito disso. Até mesmo a monarquia, reputada como intocável, não consegue fazer rebrilhar o brasão das elites, já que os escândalos enlameiam agora a infanta Cristina de Bourbon.

Quando a corrupção atingiu tal nível, explica Iglesias, ela se tornou “estrutural”.5 Era impossível distingui-la de uma concepção mais geral da política, ilustrada por um grito: o da deputada conservadora Andrea Fabra, em 11 de julho de 2012, em uma sessão plena do Congresso na qual Mariano Rajoy anunciou uma nova amputação dos seguros-desemprego. Fabra não pôde conter a alegria. Aplaudindo o chefe do governo, ela acrescentou esta mensagem aos desempregados: “Que se fodam!”.

Enquanto um em cada dois desempregados não recebe mais seguro, 33 das 35 maiores empresas espanholas fogem do imposto graças a filiais em paraísos fiscais.6 Meio milhão de crianças mergulharam na pobreza desde 2009, mas as grandes fortunas do país prosperam: seu patrimônio saltou 67% em média desde a chegada de Rajoy ao poder.7 E, para conter o perigo de se ver repreender por uma população desconfiada, desde dezembro de 2014 uma lei de “segurança cidadã” proíbe metodicamente tudo o que tinha tornado a mobilização de 2011 possível: reunião em locais públicos, distribuição de panfletos, ocupação de praças etc.

O Podemos estima que a explosão da bolha imobiliária espanhola tenha quebrado as bases materiais sobre as quais repousava o “consenso” inaugurado pela Constituição de 1978, com seu pacto de transição, sua monarquia – a tal ponto descreditada que Juan Carlos teve de ceder o trono a seu filho – e suas esperanças de ascensão social. “A crise econômica”, explica Lago, “provocou uma crise política, uma situação excepcional que constitui o preâmbulo de qualquer transformação social profunda.” Depois do processo de “destituição” de maio de 2011, chegava a hora de iniciar um de “constituição”: transformar o Estado a partir do Estado.

O período que a Espanha atravessa seria também o de todos os perigos, pois, ressalta Iglesias, a extrema direita “se acomoda ali como um peixe na água” (mar. 2013).8 Nessa área, no entanto, a esquerda espanhola tem uma vantagem em relação à sua homóloga francesa: uma ampla camada da extrema direita nacionalista se encontra formalmente integrada ao PP. Difícil, para ela, produzir um discurso antissistema semelhante ao do Front National, que nunca governou nada além de municípios.

No entanto, o contexto dramático da Espanha não basta, sem dúvida, para explicar o crescimento recente do Podemos. Há muito tempo, a formação Izquierda Unida (IU) defende um programa político similar, sem conseguir balançar a ordem política. Há então nisso tudo, também, uma questão de método.

Para os dirigentes do Podemos, a esquerda por muito tempo pecou por suas análises difíceis de entender, suas referências obscuras e seu vocabulário codificado. Iglesias estima que “as pessoas não votam em alguém porque se identificam com sua ideologia, com sua cultura ou com seus valores, e sim porque concordam com ele” (30 jul. 2012). E o fazem ainda mais quando a pessoa em questão sabe se mostrar normal, simpática e até mesmo… engraçada.

O primeiro trabalho do Podemos consiste então em “traduzir” o discurso tradicional da esquerda com base em eixos discursivos capazes de gerar uma maior adesão: as questões da democracia, da soberania e dos direitos sociais. “Concretamente”, precisa Lago, “não falamos de capitalismo. Defendemos a ideia de democracia econômica.” A dicotomia direita-esquerda é então esquecida nos discursos: “a linha de fratura”, explica Iglesias, “opõe agora aqueles que como nós defendem a democracia […] e aqueles que estão do lado das elites, dos bancos, dos mercados; há os de baixo e os de cima; […] uma elite e a maioria” (22 nov. 2014).

Os guardiães da ortodoxia marxista denunciam esse tipo de análise social indiferenciada. Em 24 de agosto de 2014, um militante interpelou Iglesias durante uma conferência. Por que nunca utilizar o termo “proletariado”? O jovem dirigente político respondeu: “Quando o movimento de 15 de maio começou, os estudantes da minha faculdade – muito politizados, que tinham lido Marx e Lenin – participaram pela primeira vez de assembleias com pessoas ‘normais’. E rapidamente estavam arrancando os cabelos: ‘Mas eles não entendem nada!’. Eles berravam: ‘Você é um operário, mesmo que não saiba disso!’. As pessoas olhavam para eles como para extraterrestres, e os estudantes voltavam para casa desanimados. […] Eis o que o inimigo espera de nós: que empreguemos palavras que ninguém entende, que continuemos sendo minoritários, rodeados por nossos símbolos tradicionais. Ele sabe bem que enquanto permanecermos ali não seremos uma ameaça”.

Fundado, pelo menos em parte, por militantes de extrema esquerda, alguns saídos da formação Izquierda Anticapitalista (IA), o Podemos comemora que 10% de seus eleitores durante as eleições europeias de maio de 2014 votaram antes na direita. O recrutamento social do partido também se ampliou pela criação de mais de mil “círculos” em todo o país. Aos jovens diplomados e urbanos do início se uniram operários, trabalhadores e moradores rurais.

A história mostra, no entanto, que tal aliança de classes tende a se quebrar assim que as aspirações dos mais favorecidos forem satisfeitas.9 Como garantir que o Podemos não vá se chocar com o mesmo obstáculo? “Não é possível garantir”, concede Lago, “mas é uma questão que não é levantada para aqueles que estão em condições de ganhar. Eu prefiro ter de enfrentar isso a ter de me proteger atrás da marginalidade tradicional da esquerda.”

Moldados por análises de Antonio Gramsci, os dirigentes do Podemos consideram que a batalha política não poderia se limitar à subversão das estruturas econômicas e sociais existentes; ela também teria de ocorrer no plano cultural, o da “hegemonia” que legitima a dominação das potências aos olhos dos dominados. Nessa área, o inimigo impõe seus códigos, seu vocabulário, sua dramaturgia. E existe um instrumento mais poderoso do que os outros para forjar o “senso comum”: a televisão.

Desde 2003, Iglesias e seus amigos (entre os quais o universitário Juan Carlos Monedero, que encontramos hoje na chefia do Podemos) criam seus próprios programas audiovisuais, como o La Tuerka. Programa de debate político difundido por diversos canais de televisão locais e pela internet, ele também tem o papel de ser um centro de reflexão “para, em uma perspectiva leninista, tentar compreender o mundo a fim de estar pronto, quando o momento vier” (Iglesias, mar. 2013). Convidando personalidades importantes de direita, os jovens companheiros adquirem uma notoriedade que lhes permite intervir durante debates políticos organizados pelos grandes canais: o segundo elemento de sua estratégia, consistindo em “não deixar o terreno vazio para o inimigo”.

Por enquanto, isso não significa uma docilidade desmedida… Em 6 de dezembro de 2014, o La noche en 24h, um dos principais programas políticos da TVE (o maior canal de televisão pública do país), recebeu Iglesias. Logo de início, este destacou que não considerava o convite um favor: “Foi preciso lutar para que eu estivesse aqui”, observou diante do jornalista e produtor do programa Sergio Martín, encabulado. “Por favor, deixe-me agradecer aos trabalhadores deste canal, pois, como se sabe, sem a pressão que eles fizeram, o senhor nunca teria me recebido neste palco.”

A classe dirigente espanhola dispõe de um sistema eleitoral favorável às duas formações dominantes e aos partidos que recrutam em um território restrito, como os nacionalistas. “A aritmética é simples”, explicava o sociólogo Laurent Bonelli em novembro de 2011. “São precisos 42.411 votos para os nacionalistas de Navarra de Geroa Bai para obter uma cadeira, 60 mil para o PP, 64 mil para o Psoe e 155 mil para a IU…”10 Sem contar que a estratégia do Podemos, visando recusar toda frente comum – uma “sopa de siglas” que arriscaria reinscrever a formação na tradicional divisão direita-esquerda –, poderia privar o partido de votos dos nacionalistas de esquerda ou dos militantes da IU, que denunciam a “irresponsabilidade histórica”11 do Podemos. A elite ibérica parece, no entanto, preocupada: em 1o de dezembro de 2014, o patrão dos patrões espanhóis, Juan Rosell, chamava uma grande coalizão “à alemã” entre o PP e o PSOE.

“O programa do Podemos não tem nada de maximalista”,12 lembra Iglesias. Assembleia Constituinte desde a chegada ao poder, reforma fiscal, reestruturação da dívida, diminuição da idade de aposentadoria para 65 anos, passagem para 35 horas semanais de trabalho, plebiscito sobre a monarquia, retomada industrial, recuperação das prerrogativas soberanas do Estado concedidas em Bruxelas, autodeterminação das regiões espanholas… Ele ameaça, no entanto, os poderes financeiros, aquilo que o Podemos chama de “Europa alemã” e “a casta”.

Estes, aliás, já começam a mostrar os dentes. Uma coluna do jornalista Salvador Sostres publicada no jornal El Mundo em 2 de dezembro de 2014 compara Iglesias a um antigo dirigente romeno, Nicolae Ceausescu, insinuando que ele só tem uma ideia na cabeça: “Fazer correr o sangue dos mais pobres, até a última gota”.13 Algumas semanas antes, um político do PP era ainda mais direto: “Que alguém meta uma bala na sua nuca!”.14

Renaud Lambert é jornalista.

1  Nuria Alabao, “Podemos y los movimentos” [Podemos e os movimentos], 7 nov. 2014. Disponível em: www.diagonalperiodico.net

2  Comitê Invisível, À nos amis [A nossos amigos], La Fabrique, Paris, 2014.

3  “Investigadores de la ULPGC analizan como estimar el coste social de la corrupción en España” [Investigadores da ULPGC analisam como estimar o custo social da corrupção na Espanha], comunicado da Universidade de Las Palmas de Gran Canaria, 29 jul. 2013.

4  Europapress, Madri, 28 nov. 2014.

5  Pablo Iglesias, Disputar la democracia. Política para tiempo de crisis [Disputar a democracia. Política para tempo de crise], Akal, Madri, 2014.

6  “La responsabilidad social corporativa en las memorias anuales del IBEX 35” [A responsabilidade social corporativa nas memórias anuais do Ibex 35], 10. ed., Observatorio de Responsabilidad Social Corporativa, Madri, 2011.

7  Vicente Clavero, “Los dueños del Ibex son un 67% más ricos desde que gobierna Rajoy” [Os donos do Ibex são 67% mais ricos desde que Rajoy governa], 7 maio 2014. Disponível em: www.publico.es.

8  Salvo menção contrária, as citações de Iglesias provêm de conferências públicas consultáveis na internet. As datas se referem ao momento em que os vídeos foram disponibilizados on-line.

9  Ler Dominique Pinsolle, “Entre soumission et rébellion” [Entre submissão e rebelião], Le Monde Diplomatique, maio 2012.

10            Ler Laurent Bonelli, “Bourrasque conservatrice en Espagne” [Vendaval conservador na Espanha], La Valise Diplomatique, nov. 2011.

11            Europapress, 12 dez. 2014.

12            Iglesias, Disputar la democracia, op. cit.

Publicado em Le Monde Diplomatique Brasil.