No mais das vezes citada como sendo alguma coisa ruim, perversa, a expressão “bolivarianismo” vem ganhando relevância em alguns feudos da direita brasileira, introduzida que foi pela portas dos fundos de redações, parlamentos e tribunais. Sem contar a idiotia generalizada das chamadas redes sociais.

Usada nesse sentido, a expressão demonstra o grau de ignorância e atraso mental de seus disseminadores, cuja imagem mais candente se materializou com a foto de um dos diretores do jornal O Estado de São Paulo em passeata golpista pró intervenção militar em que segurava um cartaz com os dizeres “foda-se a Venezuela”.

Dou aqui, modestamente, um pequeno contributo a tamanha ignorância, sem esquecer um pequenino e relevante fato: o de lembrar que um dos primeiros atos de Hugo Chávez como presidente eleito democraticamente na Venezuela em 1998 foi uma profilaxia de natureza ética no Poder Judiciário do país.

Para compreender, pois, essa Venezuela que entrou no século 21 eliminando o analfabetismo de suas fronteiras1, entre outras importantes conquistas sociais, será necessária uma exegese e o estudo para o conhecimento mínimo daquilo que ouso denominar de tripé histórico, político e econômico, cuja base é hoje formada por uma população de 25 milhões de habitantes.

Dois nutrientes desse tripé se identificam com duas personalidades, dois homens de inegável poder carismático e que estão separados por 124 anos de história do país, Simón Bolívar e Hugo Chávez.

O terceiro suporte do tripé é o petróleo, riqueza natural que vai ajudando a construir a riqueza da nova Venezuela, embora não seja inesgotável, e que com a chegada de Chávez ao poder deixou de ser monopólio da burguesia local e internacional. Em todas as análises, ensaios, revistas, vídeos e livros a que já tive acesso, dos mais superficiais aos mais verticalizados, o denominador comum subjacente a cada um deles passa necessariamente pela citação de um desses três vetores ou quase sempre dos três. Não fujo à regra.

O presidente Hugo Chávez tinha por costume dizer que a seiva de que se nutria ideologicamente a Revolução Bolivariana era proveniente de três raízes de pensamento e ação: Simón Rodríguez, Ezequiel Zamora e Simón Bolívar. Dos três, o mais reverenciado ainda nos dias atuais, não só na Venezuela, é Simón Bolívar.

É quase impossível para um turista que vá hoje à Venezuela ficar indiferente à presença constante, em pinturas, gravuras, estátuas, nomes de ruas e praças, impressão em cédulas e moedas, camisetas, cartazes, publicações das mais variadas, museus, desenhos animados, da figura de Simón Bolívar, o Libertador, como é carinhosamente chamado.

E não é um fenômeno atual, que diga respeito somente à Revolução Bolivariana. Trata-se de uma tradição histórica cultivada praticamente desde a sua morte em 1830. Governantes, os mais diversos no século 20, sempre reverenciaram a memória do Libertador.

Tal reconhecimento e respeito pela figura do herói da independência conquistada ao colonizador espanhol têm sua maior expressão, a meu ver, no fato de haver a Constituição da V República, elaborada por uma Assembléia Nacional Constituinte em 1999, se consagrado como Constituição da República Bolivariana da Venezuela e dizer em seu artigo 1º:

“A República Bolivariana da Venezuela é irrevogavelmente livre e independente e fundamenta seu patrimônio moral e seus valores de liberdade, igualdade, justiça e paz internacional na doutrina de Simón Bolívar, o Libertador.” 2

Lamento não existir sentimento semelhante no Brasil, até porque muitos dos que entre nós lutaram pela independência em relação a Portugal nem sequer são estudados com o devido apreço por suas ações. O mais famoso deles, Tiradentes, durante muitos anos foi ironicamente o nome de um não menos famoso presídio na cidade de São Paulo.

Ainda carecemos de patriotismo, infelizmente. Ou, pelo menos, ele fica mais evidente de quatro em quatro anos, quando o país se ufana nas copas mundiais de futebol. O grito do Ipiranga está condenado a ser um grito de gol ou um quadro famoso na parede e o seu protagonista, para aqueles que não se dedicam ao estudo da história pátria, alguém que apenas consumou uma situação de fato ao bradar “Independência ou Morte!”

Dom Pedro I está longe de se tornar um mito, um personagem em que o cidadão mais humilde se reconheça em sonhos de igualdade, liberdade e fraternidade. Talvez até nem tivesse estatura para tanto, concordo, mas outros tiveram e nem por isso são reverenciados.

Não tivemos nem grandeza e nem heroicidade na nossa independência e por isso, talvez, é que carreguemos ainda nos dias de hoje, amortecidos dentro de cada um, a esperança e o desejo de uma verdadeira libertação. Ou de um sadio orgulho patriótico. Tentativas nessa direção invariavelmente são abafadas pelo aculturamento de nossas “elites”, sempre prontas a tirar os sapatos (e se preciso for até as calças) em alfândegas no exterior.

Algum orgulho patriótico, contudo, permeia boa parte da história da América espanhola com os feitos e as lutas de Bolívar e não só contra os espanhóis, ao tentar criar a sua Grande Colômbia.

Entretanto, o que chama a atenção em Bolívar, quando se começa a ler um pouco da sua história, não é o aspecto factual ou a descrição das batalhas e conflitos políticos em que se envolveu, mas é – sobretudo – a sua visão de estadista, escrita em muitos documentos e cartas, adquirida, sobretudo, em meio aos inúmeros combates que travou. Muitos deles na companhia de um digno militar de origem brasileira, José Inácio de Abreu e Lima.3

Suas reflexões, em particular, sobre o então incipiente conflito com os Estados Unidos da América, já no decorrer do século XIX nos dão a dimensão de sua ação política libertadora e visionária. Em muitos dos seus discursos e cartas, ele costumava chamar a atenção para esse fato, sendo já famosa uma frase sua: “Os Estados Unidos parecem destinados pela providência para encher de fome e miséria a América em nome da Liberdade”.

Tão logo saíram os espanhóis de cena, na primeira metade do século XIX, o espaço político e mesmo geográfico da América espanhola, confirmando a previsão de Bolívar, foi sendo aos poucos ocupado pelos norte-americanos, cuja política expansionista avançou pela América Central e Caribe, desde a anexação de Estados como a Califórnia e o Texas, tomados em tratados de “mão grande” aos mexicanos.

Conhecer os conceitos e a prática dessa política expansionista desde os seus primórdios me parece um cuidado que se deveria tomar para o embasamento de propostas políticas alternativas dentro do panorama geopolítico contemporâneo, onde nenhum povo ou país deve se submeter à supremacia de quem quer que seja.

Nesse aspecto, a bibliografia citada pelo escritor venezuelano Carlos Méndez Tovar em seu livro Conoce Usted a su Enemigo? nos remete a um conjunto de obras sobre o tema.4

A história de Simón Bolívar, apesar de seu nascimento em família abastada, foi entremeada de pequenas e grandes tragédias pessoais, como a morte dos pais ainda cedo e uma viuvez aos 20 anos de idade.

Bolívar, que esteve casado por oito meses com Maria Tereza Rodríguez Del Toro, nasceu em 1783, na cidade de Caracas, e morreu em 1830, na Colômbia, pobre e solitário.

Ao lado de sua vida de lutas e batalhas para se libertar do jugo espanhol, há que se mencionar a intensidade de uma vida amorosa cheia de grandes paixões, na qual se destacará a figura de Manuela Saens (Manuelita), com quem viveu e combateu nos últimos oito anos de sua vida. Vale a pena reproduzir a carta póstuma de Manuelita a Bolívar escrita da sua fazenda em Paita, já ela também doente:

Simón: Meu amor, meu Simón triste e amargurado. Meus dias também estão aprisionados por uma insociável solidão, cheia da agradável nostalgia de seu nome. Também olho e retoco a cor dos seus retratos que são o testemunho de um momento aparentemente fugaz. As horas passam afoitas diante da inquietude ausente de seus olhos que já não estão comigo, mas que de algum modo seguem abertos, observando minha figura. Conheço o vento, conheço os caminhos para chegar ao meu Simón, porém sei que ainda assim não posso responder a essa dúvida de tristeza que derrama luz em seu rosto e, sua voz que já não é minha, já não me diz nada. — Manuela5

A dor pelo amante já ausente revela o profundo elo amoroso entre dois seres que se dispuseram a lutar pela liberdade de suas pátrias, tornando o mito mais próximo à realidade do sangue e do suor das batalhas, aos constantes ciúmes e brigas de amor, ao dia-a-dia dos conflitos humanos.

Na ficção literária, Bolívar imortalizou-se no romance de Gabriel García Márquez O General em seu Labirinto. Segundo o jornalista e escritor inglês Richard Gott, “o romance deu dimensão humana à convencional estátua de bronze”.6

Quando, na introdução do artigo fiz referências a preconceitos que os diferentes períodos históricos acabam, pelas circunstâncias em que se dão, engendrando diferentes pontos de vista e avaliações susceptíveis de novas interpretações, não me dava conta de que um caso que se tornou emblemático de tal situação encontra eco nos próprios escritos de Karl Marx sobre Bolívar e que aguçou a minha curiosidade.

Richard Gott, já citado, afirma que, “partindo dos escritos do próprio Marx, a maioria dos escritores marxistas via o Libertador como uma figura típica burguesa, cuja ação servia tão-somente aos interesses imperiais emergentes na época”.7

Em 1858, Marx, entre outras atividades, era colaborador do New York Daily Tribune. Um de seus textos para esse jornal, escrito a pedido do editor Charles Dana, tratava de Simón Bolívar como um homem a serviço dos interesses ingleses contra os espanhóis.8

Além disso, em carta ao seu parceiro Engels, nessa mesma época, faz referências nada elogiosas a Bolívar. A polêmica entre marxistas e não marxistas permanece, mas o fato é que as opiniões de Marx sobre Bolívar em nada alteram o significado do esforço deste em favor da libertação dos povos da Venezuela, Colômbia, Panamá, Equador e Peru, onde ganha ressonância, entre outras, a sua luta pela libertação dos escravos negros naquela região e no Caribe, em especial no Haiti.

E muito menos, no meu entender, dão guarida a dúvidas sobre o patriotismo de Bolívar e seu sincero amor pelos povos sul-americanos. A querela apenas comprova a importância de Bolívar para a América espanhola e sua mitificação encontra acolhida entre aqueles que, inspirados em sua ação, bem como na ação de Francisco de Miranda e Antonio Jose de Sucre, entre outros, se dispõem nos dias de hoje a lutar pela libertação de seus povos contra o imperialismo norte-americano.

O fato é que Bolívar, como outros libertadores da sua época, homem de muitas leituras e conhecimentos, agiu também sob o impulso e as ideias então recentes difundidas pela independência dos Estados Unidos da América em relação à Inglaterra (1776) e, principalmente, pela aceitação dos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, originários das teses dos filósofos iluministas e praticados nas ruas e esgotos de Paris (1789).

Fato semelhante de tal comportamento e dessa influência, aliás, vem a ocorrer no Brasil entre os sediciosos mineiros, nos meses que antecederam a Inconfidência. O estudante Álvares Maciel ofereceu a Tiradentes um exemplar da Constituição dos Estados Unidos da América, conseguido em Nîmes, cidade francesa, das mãos do então embaixador norte-americano naquele país, Thomas Jefferson, quando ali se reúne com estudantes brasileiros de Coimbra.

Acompanhado de seu mestre Simón Rodríguez e do amigo Fernando Toro, ainda com 22 anos de idade, Simón Bolívar profere em Roma o juramento que a história consagra, o juramento do Monte Sacro, na cidade de Roma, em 1805:

“Juro pelo Deus de meus pais e por eles; juro por minha honra e juro pela Pátria, que não darei descanso a meu braço nem repouso à minha alma, até que não se rompam as cadeias que nos oprimem, por vontade, o poder espanhol!”

Foram 25 anos de lutas e batalhas em mares e terra firme, com o uso da espada e da diplomacia. Quando em 9 de dezembro de 1824 o general Sucre vencia a batalha de Ayacucho, que na prática determinava a independência da América do Sul do domínio espanhol, era difícil prever que nos próximos seis anos Bolívar não conseguisse realizar o seu sonho de uma América livre e unida.

Em 1830, já após a separação de Peru e Equador, oficialmente também se separam Colômbia e Venezuela. Dois trágicos acontecimentos nesse mesmo ano enlutam a epopéia libertária: o assassinato, em 4 de junho, de Antonio Jose de Sucre, na selva de Berruecos, e a morte, aos 47 anos de idade, de Simón Bolívar.

Mas o Libertador de ontem viria ressuscitar com a nova leitura de suas ações e pensamentos na conspiração de Chávez e seus companheiros militares. Destituída de seu caráter de independência nacional apenas frente aos espanhóis, como foi consagrada nos compêndios oficiais da história da nova elite venezuelana do século 20, a luta de Bolívar é adaptada e ampliada para as necessidades libertárias do século 21, integrando-se ao ideário de uma revolução que junta o povo venezuelano às suas Forças Armadas e propõe para a América Latina a discussão de um novo projeto socialista para o futuro do continente e de toda a humanidade.

NOTAS

1 No dia 28 de outubro de 2005, a Venezuela foi reconhecida e declarada oficialmente pela UNESCO como tendo erradicado o analfabetismo de seu território. Para isso, muito contribuiu o governo cubano.

2. Constitución de La República Bolivariana de Venezuela, artigo 1, Principios Fundamentales.

3. CHACON, Vamireh, ABREU E LIMA, General de Bolívar, Editora Paz e Terra, 1983 – Coleção ESTUDOS BRASILEIROS.

4. TOVAR, Carlos Méndez, Conoce Usted a su Enemigo? Pablo de La Torriente Editorial, Cuba. 2001.

5. ANDRADE, Arturo, Cartas de Amor entre Bolívar y Manuelita. Editora Intermedio.

6. GOTT, Richard, À Sombra do Libertador. Editora Expressão Popular, São Paulo, 2004, pág. 136..

7. GOTT, Richard, obra citada, pág. 138.

8. “Simón Bolívar y Ponte”, Marx-Engels Internet Archive (domínio público).

Publicado em Blog da Boitempo