No casebre de paredes maltratadas havia uma única porta, a que se abriu para a inesperada visita de uma assistente social. Nos demais cômodos, a privacidade só era assegurada por cortinas improvisadas. Foi de pés descalços sobre o chão rústico, em meio à inquietude dos dois filhos no colo, que Bárbara da Silva, de 22 anos, descobriu ter direito ao Bolsa Família para superar a extrema pobreza. “Fiquei surpresa. Nunca fui atrás, porque não tinha todos os documentos. Não faz nem um mês, consegui tirar o Título Eleitoral e o CPF”, conta a nova beneficiária, incluída no Cadastro Único para Programas Sociais do governo federal naquela abafada tarde do fim de maio.

Para viver na modestíssima casa em Formosa, interior de Goiás, Bárbara paga 150 reais de aluguel. É o valor que o antigo companheiro costuma enviar à mãe solteira para contribuir com a criação do filho Kauã Lukas, de 1 ano e 8 meses. Todas as demais despesas são custeadas com os 300 reais ganhos com o emprego de babá. O trabalho não lhe garante, porém, segurança alimentar. “Nem sempre dá para comprar o leite dos meus filhos. Não posso contar com o pai de Ana Beatriz, de 2 anos e 5 meses, que sumiu no mundo. Agora, com o Bolsa Família, espero que não falte nada em casa.”

A babá e seus filhos representam uma do mais de 1,1 milhão de famílias incluídas no programa pela busca ativa do governo federal nos últimos três anos. Desde o lançamento do Plano Brasil sem Miséria, em junho de 2011, quando Dilma Rousseff assumiu o compromisso de erradicar a extrema pobreza no País, as ações na área sofreram profundas mudanças. Em vez de esperar a iniciativa dos mais pobres, o Estado decidiu ir até eles.

Além disso, o desenho do Bolsa Família foi aperfeiçoado. Se antes os valores transferidos dependiam essencialmente do número de crianças e adolescentes, com o lançamento da Ação Brasil Carinhoso, em 2012, o cálculo passou a considerar a intensidade da miséria em cada família. E o governo se dispôs a complementar a renda doméstica de forma que cada integrante disponha de, no mínimo, 70 reais mensais, renda per capita usada pelo Ministério do Desenvolvimento Social para definir quem está abaixo ou acima da linha da extrema pobreza.

Mesmo antes das mudanças, o Brasil havia conquistado um feito inimaginável duas décadas atrás. Em 1990, a população com renda inferior a 70 reais mensais somava 13,4%. Segundo os organismos internacionais, que usam como parâmetro a renda per capita de 1,25 dólar por dia, 25,5% dos brasileiros eram extremamente pobres. Em 2012, o cenário captado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, era diferente: 3,5% dos habitantes viviam com menos de 70 reais mensais, ou 3,6% com renda de 1,25 dólar ao dia.

O Brasil estaria muito próximo, portanto, de erradicar a miséria, uma vez que o Banco Mundial considera residual uma taxa de 3%. A Pnad de 2013, a ser divulgada em setembro, espera o governo, deve confirmar a superação dessa barreira.

“Essa meta de 3% leva em conta o fato de a pobreza não ser um fenômeno estático. Muitos fatores podem levar famílias à miséria, choques conjunturais como a perda do emprego ou questões mais perenes como doenças incapacitantes”, explica a economista norte-americana Deborah Wetzel, diretora do Banco Mundial para o Brasil. “Na maioria dos contextos não é possível chegar a um nível zero de extrema pobreza. A preocupação principal é eliminar as formas crônicas desse fenômeno.”

De acordo com a ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello, o Brasil erradicou a extrema pobreza, se levar em conta apenas o critério da renda. “Não há mais beneficiários do Bolsa Família na miséria. Mais de 22 milhões de brasileiros abandonaram essa condição somente com as mudanças feitas no desenho do programa no governo Dilma.” Em junho deste ano, emenda a ministra, o valor das transferências foi reajustado de forma a garantir que todas as famílias tenham renda per capita superior a 77 reais. “Hoje, só permanece na miséria quem está fora do Bolsa Família. Por isso iniciamos a busca ativa.”

Pelas estimativas da pasta, falta incluir cerca de 300 mil famílias extremamente pobres. Ninguém sabe o número exato, até pela dificuldade em encontrar os indivíduos. “Há casos de famílias com quatro gerações sem documentos”, explica Campello. “Mas todas as projeções indicam que, hoje, estamos com um índice abaixo de 2%.”

A última Pnad, sustenta a ministra, não captou os efeitos das recentes mudanças no programa, mas uma simulação do Ipea revela um promissor potencial de redução da miséria. O instituto traçou três cenários distintos. O primeiro indica uma prevalência de 10% da extrema pobreza entre crianças e adolescentes, e cerca de 5% entre os adultos, caso o programa não existisse. No segundo cenário, com o formato do Bolsa Família de 2011, o porcentual cai para menos de 6% na infância e gira em torno de 3% na idade adulta. Com o novo desenho dos benefícios a partir de 2013, todas as faixas etárias se aproximam de 1%.

“Tudo indica que, em 2013, houve drástica redução da extrema pobreza. Não sabemos se a próxima Pnad vai captar isso, mas a expectativa é de que a média fique abaixo dos 3%”, diz Rafael Osório, diretor do Departamento de Políticas Sociais do Ipea.

A expectativa é compartilhada pelo representante do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) no Brasil, Jorge Chediek. “Esperamos que as pesquisas confirmem a superação dessa marca de 3%. O Brasil teve um avanço extraordinário e é uma das nações que mais contribuíram para a diminuição da miséria no mundo.”

A China, aponta o Pnud, teve uma queda mais expressiva: 60,2% de sua população era extremamente pobre em 1990, porcentual reduzido a 13,1% em 2008. No início dos anos 1980, metade da população da Índia era miserável. Em 2010, passou a 32,7%. “Em números absolutos, eles tiveram uma evolução maior, mas só o Brasil está próximo da erradicação”, compara Chediek. “Este é o novo milagre do País. Nos anos 1970, a economia cresceu de forma notável, mas a concentração de renda aumentou. O milagre de hoje é do ponto de vista social.”

Quem vive com pouco mais de 1,25 dólar por dia continua, obviamente, em situação bastante precária. Tal linha, explica Wetzel, do Banco Mundial, representa “uma severa privação no atendimento das necessidades humanas básicas, inclusive comida, água potável, educação, saúde e moradia”. Os especialistas consultados por CartaCapital destacam que a renda é apenas um dos critérios usados na medição da pobreza. E o estabelecimento de uma única linha, para o mundo ou para o Brasil, pode encobrir distorções.

Por essa razão, o Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets) lida em diferentes linhas de pobreza extrema, baseadas em especificidades regionais. A linha da indigência na região metropolitana de São Paulo, a maior do País, foi estimada em 108,6 reais em 2012, bem acima dos 70 reais estabelecidos pelo governo. Na zona rural da Região Nordeste, só quem ganha menos de 59,3 reais é considerado miserável.

“O custo de vida varia muito de um lugar para outro. Isso indica que o governo subestima a miséria na periferia das metrópoles e a superestima no campo”, afirma a economista Sônia Rocha, pesquisadora do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade. “De toda forma, é inegável o êxito do Bolsa Família. Muitos exigem que o programa apresente portas de saída, mas é besteira. Seu objetivo é distribuir renda e ponto. A saída está na educação, na geração de empregos.”

Transferir renda é só o primeiro passo, reconhece Campello. “O desafio agora é universalizar o acesso aos serviços públicos e, na medida do possível, fazer com que eles cheguem primeiro aos setores mais vulneráveis da sociedade.” Para ampliar o acesso das crianças mais pobres em creches, o governo federal oferece um repasse adicional às prefeituras para cada vaga destinada aos beneficiários. Também busca convencer os estados e municípios a priorizá-los nas escolas de tempo integral. Hoje, dos 48,5 mil colégios públicos com jornada ampliada de estudo, 31,7 mil têm mais de 50% dos alunos inscritos no programa. “Com as crianças na creche ou na escola em período integral, elas têm a garantia de cinco refeições diárias. E a mãe tem ao menos um turno livre para trabalhar.” Mais de 1,2 milhão de brasileiros de baixa renda, destaca a ministra, estão matriculados em cursos do Pronatec e 405,9 mil beneficiários do Bolsa Família se tornaram microempreendedores.

Inscrita no programa há sete anos, a cabeleireira Vivian de Souza Cruz improvisou um salão de beleza em um cômodo de sua casa. Fez um curso de inglês pelo Pronatec e pretende se inscrever em outro, de design de sobrancelhas. Seu marido também passou por qualificação e hoje é operador de máquinas agrícolas. A renda é modesta, mas assegura uma vida digna às duas filhas, de 11 e 14 anos. “Agora, ele ganha dois salários mínimos e eu consigo mais uns trocados no salão. Cobro 10 reais pelo corte de cabelo. Só em mulher, senão perco o marido”, brinca.

A família quer trocar a velha moto de 100 cilindradas por um carro usado. Vivian Cruz tem confiança na capacidade de realizar o sonho em breve. Só muda a feição otimista ao lembrar-se das privações do passado. “Meu marido vivia de bicos de pedreiro nem sempre tinha trabalho. Por falta de pagamento, ficamos sem água, luz e gás várias vezes. Tive até de cozinhar com cavacos de madeira”, conta. “O benefício ajudou a manter as contas em dia e não faltar nada para as meninas. Aos poucos, nos reerguermos.”

*Publicado originalmente na edição 803 de CartaCapital sob o título “Miséria residual”