“Início dos anos 60, o país em situação alarmante, exército nas ruas, muita tensão, mas Pestana não se intimida, nasce assim mesmo. Três meses depois, ao perceberem que a criança sobreviveria, os milicos não titubearam e tomaram uma decisão drástica – veio o golpe de 1964”. Esse primeiro parágrafo em tom de humor foi a apresentação dos editores para meu primeiro livro de cartuns: “A Transação de Transição”, publicado em 1984, pela Editora Maciota.

Além de algumas charges sobre a ditadura militar, a publicação trazia também temas como as Diretas Já, a eleição de Tancredo Neves e a posse de Sarney na presidência da república. Para aqueles que dividem o aniversário com esse obscuro período da nossa história, as lembranças da hiperinflação, do desemprego, do autoritarismo e do desrespeito aos diretos humanos são muito presentes, em especial para mim, nascido e criado na cidade de Santo André, região metropolitana da Grande São Paulo, berço das montadoras automobilísticas e também do novo e combativo sindicalismo brasileiro, onde mais tarde surgiria Luiz Inácio Lula da Silva.

Como a maioria dos filhos de metalúrgicos daquela região, frequentei a escola pública na infância, onde éramos obrigados a cantar o hino nacional, afinal, o país era dirigido por generais. A quebra de rotina só se dava quando, a caminho da escola, nos deparávamos com algum cadáver vitima do esquadrão da morte (leia-se Polícia), que usava a região para “desovar” cadáveres dos desafetos do regime, principalmente sindicalistas ligados a partidos políticos ainda clandestinos. Desse período, além do trauma de não conseguir até hoje olhar para um defunto, carrego a indignação que os anos de chumbo causaram em alguns jovens de minha geração.

E a questão racial? Cresci denunciando os aparelhos de repressão, fiz parte do grupo que lutava pela anistia ampla, geral e irrestrita e também pelo fim da repressão, da tortura e desaparecimento de presos detidos pelo regime. Com o fim da ditadura, pude perceber que vários companheiros das denúncias dessa repressão se mobilizavam em outras frentes, como a Constituinte, reforma partidária e em um projeto de tomada de poder da direita, que havia se incrustado no estado brasileiro.

As denúncias sistemáticas a órgãos que perceptivelmente continuavam suas ações de tortura, abuso de poder, sequestro e morte e que tinham um foco mais preciso no povo preto e pobre da periferia, em especial a juventude negra, pareciam naquele momento demandas exclusivas do Movimento Negro. Foram anos até conseguirmos chamar a atenção para a situação.

Somente décadas mais tarde, com pressões de órgãos como a Anistia Internacional, o governo e outros setores da sociedade começaram a se mobilizar e compreender o tamanho da tragédia gestada nos anos de autoritarismo. Após o fim do governo militar, morreram mais jovens negros nas periferias das grandes capitais brasileiras do que em 20 anos de ditadura. A verdade é uma só: pessoas continuaram desaparecendo, sendo torturadas e mortas no Brasil.

No aniversário de 50 anos do golpe de 1964, muito mais que uma reflexão sobre esses 20 anos nefastos na trajetória do país, se faz urgente uma discussão acerca dos reflexos e o preço que a população negra ainda paga por ter que conviver com forças militares doutrinadas e gestadas nesse abominável período da vida brasileira.

Mauricio Pestana é diretor Executivo da Revista Raça Brasil

Publicado como editorial da revista Raça