Depois de oito anos de acusações hoje sabemos que o escândalo do mensalão foi tão somente a forma que a oposição encontrou para ocultar sua luta contra um governo contra o qual não tinha argumentos eleitoralmente viáveis. A oposição não podia ser contra o Prouni, as cotas, bolsa família, aumento do salário mínimo e outros programas sociais que garantiram a popularidade do Governo Lula. O discurso racista e elitista ficava para seus apoiadores mais exaltados nas redes sociais.

Em 2005, Dirceu foi achincalhado pelos filhos da classe média ressentida com os pobres que apareceram nos restaurantes e aeroportos. Não por acaso foi nesses ambientes em que ele foi mais agredido

Isso teve um reflexo nas manifestações de junho. A esquerda autonomista levou às ruas com todo direito suas táticas contra os partidos. Mas, ao mesmo tempo, a massa órfã da direita viu naquilo a oportunidade para trazer a sua própria crítica aos políticos e aos partidos.

Esta crítica nada tem a ver com aquela outra dos autonomistas. É uma conjunção de dois fenômenos. Um é histórico: como mostrou Sergio Buarque de Holanda há uma desconfiança em nossa cultura aos contratos, à formalidade e às mediações políticas (partidos, sindicatos e organizações em geral); outro é conjuntural: as bases do PSDB, PPS e do DEM não se viram mais representadas por estes partidos, porque eles não podem dizer o que elas pensam. O racismo de alguns médicos cearenses, por exemplo, é indefensável e nenhum Aécio Neves, Roberto Freire ou José Serra diriam aquilo em público, só às portas fechadas.

É exatamente nessa conjuntura que a ação penal volta a ser julgada. Os motivos indevassáveis que levaram alguns ministros a votar contra a sua consciência ou ao menos contra os fatos não merecem mais discussão. O que importa é que a conjuntura se desfez, o sete de setembro da direita fracassou e o manifesto de 130 generais de pijama não foi lido pela presidenta, já que ela quase não usa internet. A direita continuará à espreita, tentando superpor seu arcaísmo à crítica moderna dos partidos que ela mesma acalentou outrora. Mas nós sabemos a quem a direita quis e quer atingir de fato.

Não sabemos se José Dirceu sofrerá a condenação por todos os crimes a ele imputados. Mas sabemos duas coisas. A primeira é que não há nos autos nenhuma prova contra ele; a segunda é que mesmo assim alguma condenação ele já sofreu e sofrerá.

Mas há algo por trás de sua condenação. Não se trata mais de José Dirceu. Surgiram nas ruas de junho movimentos confusos em que jovens mascarados não confiam mais na justiça, na representação política e na própria democracia. Segundo Sergio Domingues em seu blog “pílulas diárias”, nos últimos dez anos a polícia matou dez mil pessoas como o pedreiro Amarildo de Souza. Aliás, onde está Amarildo? No dia da pátria, polícia prendeu 160 manifestantes. Leis contra o “terror” e proibições inconstitucionais contra máscaras são propostas sem nenhum pejo. Não tenham dúvidas, elas não visam alguns mascarados.

Não há nenhuma relação direta entre a ação penal 470 e este fenômeno que pode caminhar para a direita ou para a esquerda. O que há é a certeza de que se o líder de um partido trabalhista pode ser retirado com tanta facilidade da vida pública há algo de muito errado em nossa “democracia”.

Como diria Gramsci, o velho já morreu, mas o novo ainda não nasceu. E entre eles surgem formas monstruosas que não sabemos decifrar.

José Dirceu teve seu papel na história do Brasil. Enfrentou a Ditadura Militar, ajudou a fundar o PT e, mesmo que eu discorde de sua visão política, não há como negar que foi ele quem conduziu o aggiornamento do partido rumo à vitória de 2002.

Em 2005 ele foi achincalhado pelos filhos da classe média ressentida com os pobres que apareceram nos restaurantes e aeroportos. Não por acaso foi nesses ambientes em que ele foi mais agredido. Naquele ano certamente encontraria muitos defensores no extremo leste de São Paulo (e eu vi muitos deles), mas não nos bairros ricos da cidade.

Escrever palavras justas sobre Dirceu pode não ser fácil (e já foi pior uns anos atrás). Mas é muito mais difícil ser José Dirceu. Nos seus anos primaveris, ele demonstrou a coragem física e intelectual que caracterizou muitos outros de sua geração. Hoje, abandonado por alguns “republicanos” de esquerda e de direita, seu direito clama no deserto. Mas Dirceu deve saber que ali não se colhem rosas, somente cardos.

Lincoln Secco é professor de História Contemporânea da Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras da USP.

Publicado no Viomundo