A derrubada de Mohamed Morsi, anunciada na quarta-feira 3 pelo Conselho Supremo das Forças Armadas do Egito, terá repercussões não apenas no Egito, mas também no resto do Oriente Médio. O golpe derrubou a Irmandade Muçulmana, grupo ao qual Morsi pertence, mas também atingiu em cheio o islã político, movimento presente em diversos países e cuja inserção no diálogo democrático é fundamental para a estabilidade regional.Em 2011, no despontar da chamada Primavera Árabe, a expectativa era de que a derrubada de ditadores abrisse espaço para transições democráticas, nas quais teriam espaço todas as forças políticas existentes. Esta abertura tinha um grande desafio intrínseco a ela – inserir no processo democrático os grupos do islã político, duramente reprimidos pelos governos derrubados e também naqueles que persistem até hoje.

No caso do Egito, o grupo fundamentalista mais proeminente é a Irmandade Muçulmana, que passou a maior parte de seus 85 anos de história na ilegalidade. Neste período, enquanto enfrentava perseguições e torturas, o grupo recorreu à violência e deu guarida a alguns dos pensadores mais radicais do islã, como Sayyid Qutb, o responsável pela ideologia de grupos como a Al-Qaeda. Ao longo dos anos, entretanto, a Irmandade Muçulmana moderou suas posições. Abandonou a violência, se distanciou da ideologia de Qutb e passou a disputar eleições legislativas de forma consecutiva desde 1984, sempre apresentando candidatos “independentes” no pleito.

Com a queda de Mubarak, a Irmandade vislumbrou a primeira chance não apenas de disputar o poder, mas de, legitimamente, conquistá-lo. O grupo, extremamente organizado, obteve 50% das cadeiras no Parlamento egípcio (posteriormente dissolvido pela Justiça) e elegeu Morsi presidente do país. De fato, uma vez no poder, a Irmandade Muçulmana foi uma grande decepção. O grupo não conseguiu resolver os graves problemas econômicos do Egito e, na política, se mostrou pouco inclusivo, uma sede de poder que ajudou a radicalizar a oposição.

Mais perseguição?

Nas primeiras horas após o golpe, os sinais emitidos pelo novo regime foram altamente preocupantes. Eles indicam, apesar do discurso de moderação, que os militares estão dispostos a realizar uma nova perseguição contra os irmãos muçulmanos e, eventualmente, até colocar o grupo novamente na ilegalidade.

Segundo o jornal Al-Ahram, cerca de 300 líderes da Irmandade Muçulmana foram presos. Ao menos três canais ligados ao islã político foram tirados do ar e seus jornalistas, presos. O mesmo ocorreu com a Al-Jazeera Mubasher, versão egípcia da emissora do Catar, vista como pró-Irmandade Muçulmana.

Não há muitas dúvidas de que a derrubada de Morsi e a perseguição aos irmãos muçulmanos entrarão para o ideário dos islamistas, não apenas dos egípcios, como prova de que não há espaço para eles nos processos de democratização do Oriente Médio. Um possível reflexo desta impressão não é mais democracia, mas sim mais violência e instabilidade.

Em entrevista ao jornal Financial Times, Alaa Aboul Nasr, líder do Grupo Islâmico, ex-facção terrorista que abandonou a violência e entrou na política, afirmou que o golpe leva o Egito “a uma situação perigosa”. “Os partidos islâmicos têm a mesma ideologia, mas não a mesma forma de reagir”, disse. “Alguns deles podem retomar a violência em caso de um golpe”.

O radicalismo pode ganhar espaço porque, como mostra reportagem do jornal The Guardian, a queda de Morsi pode ser vista como um ataque à religião muçulmana da forma como é percebida pelos islamitas. Em um comício em apoio a Morsi registrado pelo jornal, houve promessas de derrubar seu substituto e até chamados para o “martírio” caso o governo caia nas mãos de um líder secular.

O grau da violência vai depender de como a liderança da Irmandade Muçulmana e de outros grupos islamitas (egípcios e de outros países) vão reagir a todos esses fatos. Em 1996, após um golpe contra o então premier turco Necmettin Erbakan, um jovem líder de seu partido alterou o discurso radical da sigla, também islamita, tornando-o mais palatável para o Ocidente e os setores seculares da Turquia. O jovem líder era Recep Tayyip Erdogan, atual primeiro-ministro turco, que, apesar da recente onda de violência na Turquia, lidera um país visto como exemplo na tentativa de conciliar o islã político com a democracia.

No caso do Egito, como na Turquia, está em curso uma batalha pela identidade do país: ele é secular ou islâmico? Com as posições que os dois lados têm hoje, a diferença entre elas é irreconciliável. Uma mudança de postura por parte dos islamitas se faz muito necessária, mas é difícil crer que ela se dará com seus líderes na cadeia. Se os militares egípcios e os setores seculares da sociedade local também não moderarem suas posições e mostrarem alguma tolerância, o Egito pode embarcar na repetição de um ciclo de repressão e violência capaz de contaminar todo o Oriente Médio.

Publicado em Carta Capital