“Desculpe os transtornos: estamos mudando o Brasil” (Faixa de manifestantes surgidas em várias capitais entre 17-19 de junho 2013).
1. O reexame entre a relação do espontâneo e o consciente é uma imperiosa exigência de novas contradições surgidas em qualquer estágio do desenvolvimento societário; é um dever da leitura dos comunistas em capturar o desenvolvimento sempre paradoxal da sociabilidade; capturar para enriquecer a inteligibilidade, bem como o seu múltiplo arsenal de intervenção nos combates anticapitalistas. Tais contradições foram compelidas no movimento das manifestações e lutas das massas, na já batizada “Jornadas de Junho” e sobre as quais comentaremos no final do artigo. Mas não é segredo que ao redor dos últimos 20 anos no Brasil emergiram mobilizações de massas submersas na rotulação de “movimentos sociais” (sem qualquer dúvida também motivadora do reacionarismo antipartido). Inclusive imersas na barafunda da desidentidade de suas particularidades socioculturais, as partes são impelidas à convergência duma legitimação de variantes do “multiculturalismo” entre nós. Legitimação que não é aleatória, diga-se logo.

2. Como bem interpreta o filósofo J. Barata-Moura, independentemente de sua captação gnosiológica, isto é, objetivamente, a origem do movimento e dos fenômenos em geral “reside, precisamente, nas contradições que internamente os constituem”. [1] Noutras palavras: não há movimento sem contradição, porque o movimento é ele próprio a vida da contradição. Mais ainda: o caráter ôntico da contradição é condição mesma em que ela se plasma e se desenvolve, ou seja, é de sua natureza o processo de irrupção afirmativa para o seu devir (tornar-se). Assim é que a historicidade da dialética e suas partes constitutivas (realidade+conhecimento+transformação) têm sempre como motor a miríade de contradições a projetar o movimento. Por conseguinte é correto dissertar: o que se esconde por trás duma “estabilidade” (ou aparente) momentânea nos processos sociais são contradições surdas a escavar aquela história – como a velha toupeira. Ouçamos um alerta do filósofo português:
“Compreender o nexo existente entre o sistema das contradições em devir e o momento de permanência (relativa) detectável nos seus afloramentos à superfície constitui uma tarefa fundamental da teoria, bem como um suposto indispensável da prática social consciente que aspire a eficácia fundada na intervenção transformadora no corpo das realidades” (idem, p. 309; grifos nossos).

3. Para o magistral Lênin, no espontâneo da rebelião de massas há presença do embrião do consciente. Porém, adesão espontânea não é “espontaneísmo” na medida em que “há espontaneidade e espontaneidade”, afirma Lênin em sua clássica polêmica com os “economicistas” russos no estrangeiro. Por que razões? No capítulo do célebre Que fazer? (1902) “A espontaneidade das massas e o espírito da consciência da social-democracia”, Lênin compara “o entusiasmo generalizado da juventude russa” pela teoria marxista, nos idos de 1895, e as greves operárias do ano seguinte que se alastraram por todo o país, vis-à-vis ao caráter do movimento das décadas de 1870 e 1880. Diz então que a destruição “espontânea” de máquinas [aspas de Lênin] ocorrida naqueles anos contrastaria com o sentido “consciente” [aspas de Lênin] das greves de meados dos 1890: houve “progresso do movimento operário nesse intervalo”, sublinha [2]. Segundo o teórico revolucionário russo, ao invés de manifestação de “desespero”, agora apareciam “lampejos de consciência”; “formulam-se reivindicações precisas”; “procuram-se prever o momento favorável” das ações etc. No entanto – e como se sabe bem -, acrescentava Lênin que todos os avanços existentes naquele período “não podiam” mesmo gestar a consciência socialdemocrata (socialista), pois esta só seria alcançada através da adesão à política posta em prática pelo (ideário do) partido comunista. Ao tempo em que – destaca Luciano Gruppi – Lênin convictamente entendia que a opressão capitalista determina uma série de rebeliões, de ações e de oposições nem todas na mesma direção – sendo “algumas reacionárias e corporativistas”; mas reivindicações “anticapitalistas… ainda que seus promotores não tenham consciência de tal caráter”. [3]

4. Não à toa, em Gramsci é perfeitamente compreensível o assentimento dum suposto teórico em Lênin, no que respeita relação entre consciência política e conquista da hegemonia (capacidade de direção; conquistar alianças revolucionárias estratégicas etc.), em termos da proeminência valorativa, do binômio cultura e moral trespassando as lutas de classes. Quer dizer, a “inovação leninista” – diz acertadamente Werneck Vianna [4] – sublinha a superação de concepções fragmentárias do sistema de valores e das instituições burguesas ou modernas, para uma outra, sistêmica, produzida por uma hegemonia intelectual e moral como parte constitutiva da conquista do poder no Estado. Por isso também Gramsci aclara a famosa afirmação de Marx (“Prefácio à Contribuição à crítica da economia política”, 1859) de que a tomada de consciência pelos homens dos conflitos estruturais se dá no âmbito das ideologias: ela é gnosiológica – enfoca Gramsci -, ou seja, designa o processo do qual se formam as ideias e as concepções de mundo (Gruppi, op. cit, p. 3-4). Ora, note-se que, segundo pressupõe o revolucionário italiano,

“(…) não existe na história a ‘pura’ espontaneidade: coincidiria com a ‘pura’ mecanicidade. (…) Pode-se dizer que o elemento da espontaneidade é por isso característico da ‘história das classes subalternas’, e ainda dos elementos mais marginais e periféricos destas classes, que não atingiram a consciência de ‘classe por si’…”. [5]

Prossegue na sequência Gramsci:
“Descuidar e, pior ainda, desprezar os chamados movimentos ‘espontâneos’, isto é, renunciar a dar-lhes uma direção consciente, a elevá-los a um plano superior inserindo-os na política, pode ter muitas vezes consequências muito sérias e graves” (idem, p. 271).
E, atenção, mais adiante: “Acontece quase sempre que um movimento ‘espontâneo’ das classes subalternas é acompanhado por um movimento reacionário de direita da classe dominante, por motivos concomitantes: uma crise econômica… determina conjuras de grupos reacionários que se aproveitam o enfraquecimento objetivo do governo para tentar golpes de Estado” (idem, pp. 271-272).

5. Numa direção similar a essas teorizações de Gramsci, conforme assinalou Eric Hobsbawm em “Notas sobre a consciência de classe” (1980), a ausência mesma de consciência de classe, em termos modernos, não implica a ausência de classe e nem de conflitos de classe; sendo que na vigência da economia mercantil capitalista houve uma modificação fundamental: elevou-se a escala desta consciência, em termos nacionais. Marx e Engels – sublinha ele -, seja em estudos históricos ou trabalhos políticos, “jamais negligenciaram as complexidades sociais, as estratificações”, que são intrínsecas as classes. [6] Neste sentido, uma das importantes conclusões do historiador marxista britânico noutro seu clássico estudo (“Flutuações econômicas e alguns movimentos sociais desde 1800”) [7] é a de que, ao invés de se encontrar sistematicamente “explosões”, “saltos” ou irrupções sociais a partir do agravamento das condições de vida e trabalho das massas populares nos desdobramentos das depressões ou recessões econômicas, a regularidade do fenômeno explosivo se encontraria mais na correlação com as fases expansivas do crescimento capitalista. De fato, em relação às grandes revoltas dos trabalhadores continuaria a ser verdade – diz ele – que “saltos” surpreendentes tendiam a ocorrer, menos no fundo dos colapsos, e mais nas épocas das oscilações para cima, de emprego crescente ou, num caso especial de grande importância no século vinte, de guerra [baseado numa pesquisa de 50 anos na Inglaterra da passagem do século XIX-XX e expandida para a Europa]. De outra parte, sobre as particularidades encontradas na gestação dessas irrupções sociais trabalhistas, conclui:
“Só a análise individual pode revelar a combinação específica das tensões que compõem qualquer ‘explosão’ determinada, e as tentativas de descobrir exatamente mesma combinação (em contraposição a uma semelhança familiar geral dos padrões) tem a probabilidade de ser malsucedidas” (idem, p. 156).

6. Podemos então supor que, do ponto de vista epistemológico: as linhas que separam as ações espontâneas das conscientes se inserem no entrelace dos contornos duma materialidade em movimento. Portanto, no terreno das lutas de classes – e essa é uma síntese de Lênin –, não se pode entender uma separação entre o espontâneo e o consciente: devemos compreender as duas categorias em seus nexos dialéticos concretos. Porque as ações dos movimentos de massas se assentam sobre variados níveis de consciência. E as condicionalidades formativas de suas “consciências” via de regra limitam (ou não) a articulação dos planos reivindicatórios (o específico e o geral). O que é compreensível ser muito mais difuso quando as demandas e protestos são apinhados num conjunto vastamente heterogêneo e surpreendente – difuso e confuso. Daí que as novas mediações dos movimentos tem que ser apreendidas à luz dos processos de desenvolvimento e experiência das lutas de classes: novos movimentos, novas mediações. O tênue entre o espontâneo e o consciente, no que respeita as manifestações não formalmente dirigidas e “não orgânicas” expressam particularidades “invisíveis”; pois construções e desconstruções sociopolíticas as tornam mais e mais complexas. Daí a differentia specifica dos estágios da espontaneidade e da consciência social. Noutras palavras: o desenvolvimento dos estágios da consciência sociopolítica emana do prolongado processo histórico que deita raízes em cada nacionalidade, no solo de cada país. Por conseguinte, é equívoco compreender hoje como “consciente” a ação se massas unicamente pelo ângulo de sua adesão ao partido mais avançado das classes trabalhadoras, o partido comunista; ou mesmo esterilizar o “espontâneo”. Outra coisa é o distanciamento da percepção da realidade em movimento.

7. Num famoso livro publicado 1994, o mesmo Hobsbawm (“A era dos extremos”) nos chamava a atenção do quadro mundial de incerteza, violência e instabilidade criadas pela a ascensão da globalização neoliberal e as derrotas socialistas. Depois, em “Globalização, democracia e terrorismo” (2007), ele disserta sobre o avanço acentuado das desigualdades econômicas e sociais, impostas pela adoção dos “mercados livres”, no interior das nações e entre elas, já então na base de “importantes tensões sociais e políticas do novo século”. [8] Sob esse largo ângulo, o exame das lutas sociais em curso no Brasil – mobilizações populares extensas, vigorosas e acentuadamente marcadas pela presença nuclear da juventude – nos remete necessariamente, e em primeiro lugar, ao pano de fundo do Brasil da época neoliberal que atravessamos recentemente. Porque encerra avanços e recuos nos estágios da consciência social, decerto nada se explicará, hoje e amanhã, se as entranhas históricas desse período não forem literalmente revolvidas; e removidas. Muito especialmente não se desvendará como o povo brasileiro vem perquirindo sobre a sua condição de cidadania desde então. Por quê mesmo? Ainda em 1998 os economistas J. M. Cardoso de Mello e F. Novais escreveram um importantíssimo ensaio desvelando o processo acidentado das conquistas da modernização brasileira, em contraposição às implicações econômico-sociais do desastre de governos neoliberais de FHC. Em “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna” (1998) Cardoso de Melo e Novais mais que alertavam, com inteiriça razão, acerca da súbita regressão que ameaçava uma desestruturação nacional. Severa regressão societária, pois, desde o advento da globalização, entronizou-se por aqui a competição selvagem, transformando a violência num recurso cotidiano de sobrevivência; manifestada também no trânsito infernal nas nossas grandes cidades poluídas, servas do automóvel, atravessando as relações de trabalho, deformando a vida familiar, chegando “até ao assassinato”. Assim – continuam os autores a captar um ambiente catastrófico -, “uma sociedade que não dá valor à vida não pode pretender que os excluídos, do emprego, da escola, da vida familiar, considerem a vida uma valor” (Cap. “A que ponto chegamos?”, 1998). [9] No ano seguinte (1999) e dando sequência às indagações dos economistas citados, em “O capitalismo selvagem. Um estudo sobre a desigualdade no Brasil”, a economista Wilnês Henrique assim concluía sua fundamentada pesquisa de doutorado, em verdade um retorno ao longo processo de configuração e os resultados então examinados do capitalismo tardio brasileiro:

“De outro lado, vimos que as relações entre dependência e desigualdade ficaram expostas a olho nu nestes últimos 20 anos. Na época do capital financeiro e da ciência e tecnologia como base ampliada de valorização do capital, a dependência reaparece como dependência financeira e tecnológica. Porque não dispúnhamos e nem criamos um mínimo de capacidade autônoma de inovação e investimento, fomos obrigados a fazer o “ajuste exportador”‘, que culminou no neoliberalismo. Ele terminou impondo restrições drásticas ao crescimento e imobilizou a política econômica e social. À regressão econômica correspondeu a regressão social, que se manifesta no desemprego estrutural, na cristalização dos baixos salários, no emprego de terceira categoria, na multiplicação de serviçais, na flexibilização e extinção de direitos”. [10]

8. Ora, essas duas análises, relativamente pioneiras (e certeiras), ajudam-nos a refletir sobre uma sentença: os dez anos que vivenciamos de assunção do novo ciclo político no Brasil (governos Lula e Dilma) apenas começaram a reverter outros dez anos d’ “A construção interrompida”, usando aqui os termos visionários do livro de mestre Celso Furtado (1992). Desse modo, às conquistas recentes se assentaram em novas exigências duma truncada expansão capitalista que, numa síntese (precária) poderia ser assim formulada: ampliam-se os direitos das camadas populares, enquanto se reproduz um padrão capitalista nos marcos da hegemonia financeira neoliberal (global). Ademais, acumularam-se graves sequelas e velhas doenças da referida selvageria capitalista, tornando as batalhas pelo novo desenvolvimento uma verdadeira guerra nacional de classes e frações de classe, incluídos o duro enfrentamento contra a burguesia bancária/financeira e os interesses do capital internacional. Ou não?

Daí manifestações de massas onde se expressou até elevada criatividade, como no caso do cartaz da epígrafe deste artigo – que informa desconhecer o ocorrido entre nós nos últimos 10 anos! Esse tipo de atitude espalhou-se por todo o país, inclusive em nossos profundos rincões. Não existiu na história brasileira, notabilizando-se a inédita experiência democrática atual, “tomadas de posição” tão abertas como desta feita, nas manifestações de massas.
No caso de São Paulo, berço da eclosão, colecionaram-se cartazes e faixas oriundas de distintos manifestantes, onde se pôde ler: “Não são por centavos que estamos aqui”; “Querermos escola e hospitais em Guarulhos do padrão da FIFA”; “O jovem no Brasil não é levado a sério”; “IPTU aumento de 300% Partido do Povo?”; “Quando o povo levantar o governo vai se reverenciar”; note-se em Cacoal (RO): “Tem tanta coisa errada no município e no Brasil que não cabe em um cartaz”; ou em Timóteo (MG) “Por favor não nos machuque nós não temos # hospitais”; no Recife: “Basta de corruptos! Basta de comparsas! Voto aberto parlamentar! Para essa zona acabar!”; ou no cartaz revelador exibido por uma adolescente: “Enfia os 0,20 no SUS”.

Portanto, caso das grandes manifestações de massas, iniciadas – sim e sem dúvida, pela direção de um grupo de jovens da pequena burguesia paulista radicalizada e em contestação aos governos de Dilma e Lula – e que ainda estão a ocorrer no Brasil é mais que evidente a explosão de diversos níveis de consciência e interesses. É bastante provável que haja razão nos que afirmam a distância entre 1992-2013 como causadora de uma explosão social sem precedentes: haveria novas aspirações numa gigantesca massa (principalmente) de jovens, alheios (adversos?) às conquistas do último decênio sendo a grande maioria ausente de vínculos a organizações de massas. Mas é falsa a propalada vulgata da “ausência de lideranças”: logo, logo apareceram os “cabeças” do (recorrente) movimento pela redução das tarifas, em entrevistas à mídia nacional e internacional! E trata-se da mais pura ingenuidade não denunciar a descarada manipulação midiática das manifestações, no início condenando a todos como “baderneiros”, logo depois as insuflando abertamente contra o governo Dilma, em transmissões televisivas 24 horas por dia.

9. Ainda acerca da natureza das mobilizações, também risíveis (para além de conservadora) são as opiniões do Lindbergh Farias, Senador do PT e nosso companheiro: partido político “virou coisa de eleição” e “deixou de ser instrumento de mobilização das ruas”; acusando ele seu próprio partido e outras siglas de esquerda de “afastamento da juventude”; fazendo apologia da “horizontalidade” e das “redes” nas manifestações etc. [11] Sejamos diretos: a condição de “especialista” em partidos (ex-PCdoB, ex-trotskista e petista) não retira do Senador a condição do eleitoralismo interesseiro – flerte com a direita? – que o contamina. Quem são as forças-chaves do combate crucial à avalanche e os efeitos da crise capitalista dos nossos dias, sobre os trabalhadores e a juventude? Quem são as correntes políticas ou lideranças avançadas e revolucionárias (e orgânicas) que construíram governos progressistas na América Latina atual? Respostas: são os comunistas do PCP (Portugal), do PCG (Grécia), especialmente, as centrais sindicais de Portugal, da Grécia, da Itália, da França, os comunistas e a juventude organizada do Chile, sindicalistas e comunistas da Frente Ampla do Uruguai, do PSUV na Venezuela de Hugo Chávez, do MAS boliviano de Evo Morales, os sandinistas de Daniel Ortega, a esquerda católica em torno de Rafael Corrêa. São o PT de Lula, o PCdoB, o PSB, o PDT, principalmente, que estão na vanguarda dos acontecimentos raros que mudaram o Brasil, desde os idos de 1989! Até os cegos – porque também escutam – Sabem disso!
Noutra toada, e analisando as manifestações, o cientista político André Singer pensa que, agora, “caberá à esquerda, que teve o mérito de começar a luta, ter a coragem de mostrar a cara e propor um programa”. Num ar solene e conclusivo diz o escritor e ex-porta-voz do ex-presidente Lula: “em que pese os inúmeros e graves percalços pelos quais passa — a democracia é a maior conquista da humanidade no campo da política”. [12]

10. Em termos de considerações finais – e de volta para o futuro. Não, não foi a “espontaneidade” crua que conduziu a rebelião social que vivenciamos. A adesão de dezenas e centenas de milhares de jovens, populares, trabalhadores, aposentados, pais com suas crianças, por si só, é uma óbvia atitude de tomada de posição contestatória às referidas doenças e sequelas sociais acumuladas dum capitalismo tardio brasileiro, dilacerado havia muito pouco pela tragédia neoliberal; ao que se acrescente com ênfase o repúdio à corrupção em geral, seja ela mistificada ou não pela sistemática campanha midiática nacional. E leve-se em conta, de alguma maneira, a influência entre nós dos grandes protestos ocorridos em Wall Stret (“occupy”), na Espanha (“los indignados”), ou os do Egito, sem dúvida auxiliados pelas “redes” de internet. Por outro lado, é imperioso preparar-se para um longo combate à instrumentalização desses movimentos, a contrapropaganda preconceituosa contra a organização partidária e das massas, que visam, como no passado, absorver e diluir o descontentamento popular buscando estimular (remotos) movimentos “inorgânicos”. Relembrando Gramsci, a direita reacionária utiliza esses movimentos e “quase sempre… aproveitam o enfraquecimento objetivo do governo para tentar golpes de Estado”.

Essencialmente, as Jornadas de Junho refletem os espaços das conquistas democráticas indiscutivelmente acentuadas pelos governos de Lula e Dilma: o pleno exercício duma “democracia das ruas” veio se efetivar em massivos protestos convergentes contra as mazelas deste tipo de capitalismo brasileiro! Por isso também trata-se de um (perigoso) engodo a ideia de que nos encontramos na “primeira década de governos pós-neoliberais no Brasil” [13]; bem como superlativizar as políticas sociais como sendo “o coração dos governos Lula e Dilma”.

Três exemplos insofismáveis: a) na política econômica, a permanência e a defesa oficial do “câmbio flutuante”, da política fiscal semi-ortodoxa, bem como a recidiva duma política monetária de juros elevados, atestando a vigência de orientações ainda da órbita neoliberal (e nos últimos três anos não conseguimos nos livrar da volta ao baixo crescimento econômico); b) entre abril de 2002 e janeiro de 2013 o valor do salário mínimo passou de R$ 200 para R$ 622, o que representa ganho real de 70,49% – o maior desde a sua criação; entretanto, assegura o Dieese: dos cerca de 3,5 milhões de trabalhadores do estado do Pará, quase 1,4 milhão (cerca de 40%) recebe hoje um salário mínimo; c) a renda per capita do Brasil está em torno de US$ 10 mil ou cerca de três vezes inferior a da Coréia do Sul, país que teve sua industrialização ainda mais tardia que a nossa.

De outra parte, diferentemente do que imaginam o Senador Lindbergh e o professor Singer, o PCdoB – inobstante suas insuficiências e limitações – continua empenhando todas as suas energias na organização, na elevação da consciência política e programática das massas no país, nomeadamente dos trabalhadores (as) e da juventude. Aliás, o PCdoB procura não esquecer as lições de Marx sobre o significado abrangente do impacto das transformações nos meios de comunicação: “A burguesia, pelo rápido aperfeiçoamento de todos os instrumentos de produção, e tornando as comunicações infinitamente mais fáceis, arrasta todas as nações, mesmo as mais bárbaras, para a civilização”. [14] Por isso o PCdoB não só sabe a importância relativa das “redes sociais”, tendo seu Portal Vermelho na internet, premiado como o mais importante da esquerda brasileira; como também não se deixa abater com as grandes dificuldades do desestímulo à participação política: no caso das eleições da UNE (União nacional dos Estudantes), há anos hegemonizada por jovens do PCdoB, desconhece-se no país qualquer outra experiência de tal envergadura duma democracia “horizontalizada” para escolha de seus representantes.

É o PCdoB quem recusa o falso diagnóstico de já vivermos um decênio de “pós-neoliberalismo”; é ele quem critica, desde o início do novo ciclo político, a orientação macroeconômica do governo; é ele quem afirma vivermos ainda “uma grande transição” a um novo estágio de desenvolvimento no país; é ele a única corrente política no Brasil quem tem um renovado e nítido Programa estratégico, nele pontificando a passagem pelo desenvolvimento e o progresso sociais, com a indispensável ampliação da democracia para a garantia de luta pelos direitos do povo brasileiro. Mas o Programa do PCdoB é socialista e não tergiversa: considera que é o Socialismo a maior conquista da humanidade no “campo da política” e, mais ainda, que só ele é capaz de levar adiante a consecução dos grandes ideais da Revolução Francesa – Liberdade, Fraternidade, Igualdade -, definitivamente abandonados pela democracia burguesa.

Notas:
[1] Em: “Totalidade e contradição. Acerca da dialéctica”, J. Barata-Moura, Lisboa, 2012, pp. 302-306, 2ª edição.
[2] Em: “Que fazer? As questões palpitantes do nosso movimento”, V. Lênin, São Paulo, Hucitec, 1978, pp.23.25.
[3] Ver: “O conceito de hegemonia em Gramsci”, L. Gruppi, Rio de Janeiro , Graal, 2000, pp. 3-4 e 43, 4ª edição.
[4] Ver: Prefácio de L.W. Vianna a L. Gruppi, op. cit., p. XV.
[5] Ver: “Espontaneidade e direção consciente”, in: Antonio Gramsci – Obras Escolhidas, São Paulo, Martins Fontes, 1978, p. 269.
[6] Em: “Mundos do Trabalho”, de Hobsbawm, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980, pp. 36-38.
[7] Em: “Os Trabalhadores. Estudos sobre a história do operariado”. De Hobsbawm, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981, pp. 135-147 e 156.
[8] São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p.11.
[9] Ver: “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”, Campinas, FACAMP/UNESP, 2009.
[10] Campinas, Unicamp/IE, tese de doutorado, 1999, p.185.
[11] Ver: Entrevista à Folha de S. Paulo, “Partido deixou de ser instrumento de mobilização, diz Lindbergh Farias”, 23/06/2013.
[12] Ver: “Esquerda ou direita?”, de A. Singer, Folha de S. Paulo, 22/06/2013.
[13] As precipitadas opiniões são de Emir Sader (org.) em: “10 anos de governos pós-neliberais no Brasil: Lula e Dilma”, Apresentação, São Paulo, Boitempo/FLACSO, 2013.
[14] Em: “Manifesto do Partido Comunista”. Lisboa, Edições Avante!, 1975, p. 64, 2ª edição.

*Médico, doutorando em Economia Social e do Trabalho (Unicamp), membro do Comitê Central do PCdoB