Em 1982, muito antes de a maioria dos norte-americanos sequer ter começado a pensar sobre escutas clandestinas, o jornalista James Bamford publicou The Puzzle Palace: A Report on N.S.A., America’s Most Secret Agency [O palácio-quebra-cabeças: reportagem sobre a Agência de Segurança Nacional, a mais secreta das agências secretas dos EUA], o primeiro livro publicado sobre a National Security Agency (NSA), iniciada em 1952 pelo presidente Harry Truman para recolher inteligência sobre entidades estrangeiras, e a qual, como ficamos sabendo semana passada, recolhe hoje registros de chamadas telefônicas e de mensagens de e-mail de cidadãos norte-americanos e outros. No livro, Bamford descreve a agência como “livre de qualquer limitação legal” e com “capacidades tecnológicas além da imaginação para escutas clandestinas”. E conlui com um alerta assustador: “Como um poço eternamente sem fundo, a tecnologia de vigilância continuará a expandir-se, silenciosamente alcançando mais e mais sistemas de comunicação e eliminando gradualmente cada vez mais direitos de privacidade.” Três décadas depois, o alerta soa desconfortavelmente certeiro: todos fomos avisados.

Bamford, que prestou serviço militar na Marinha e estudou Direito antes de tornar-se jornalista, publicou outros três livros depois de The Puzzle Palace, que formam uma tetralogia sobre a Agência de Segurança Nacional: Body of Secrets: Anatomy of the Ultra-Secret National Security Agency [Corpo de segredos: anatomia da ultrassecreta Agência de Segurança Nacional] (2001); A Pretext for War: 9/11, Iraq, and the Abuse of America’s Intelligence Agencies [Um pretexto para a guerra: 11/9, Iraque e o abuso das agências de inteligência dos EUA] (2004); e The Shadow Factory: The Ultra-Secret N.S.A. from 9/11 to the Eavesdropping on America [A fábrica de sombras: a ultrassecreta NSA, do 11/9 às escutas clandestinas nos EUA] (2008).

Como se vê na progressão dos subtítulos, Bamford desencantou-se com a agência que ele, provavelmente, conhecia melhor que qualquer outro ‘observador externo’. Outros jornalistas investigativos consideram Bamford com o que, em termos amplos, pode-se descrever como admiração, embora, como Scott Shane, repórter do Times, escreveu em 2008, “Seu relacionamento com a Agência Nacional de Segurança pode ser comparado a um longo e atormentado affair no qual a fascinação pelo gigantismo e pelas capacidades alternava-se com o horror pelo poder para invadir qualquer privacidade.”

Bamford riu da imagem de romance turbulento. “Eu tinha uma relação de amor e ódio com a NSA”, Bamford riu, quando falei com ele semana passada, logo depois da revelação de que a Agência está reunindo metadados de telecomunicações e das empresas de internet: “Eu os amo e eles me odeiam.” E têm boas razões. Bamford, que hoje divide seu tempo entre Washington, D.C., e Londres, é personagem levemente perverso, sempre ajudado por curiosidade e persistência óbvias. Fala com o à vontade de criança que entrou em sala proibida e sabe que voltará a entrar. Resolveu escrever novamente sobre a Agência, que se crê que receba 10 bilhões de dólares anuais do Estado e emprega cerca de 40 mil pessoas, porque ninguém jamais escreveu sobre ela  – e porque se diverte muito mais escrevendo que lendo processos judiciais e depoimentos.

Quando pesquisava no Instituto Militar da Virginia, descobriu grande quantidade de documentos relacionados à NSA, dos arquivos de um mestre criptógrafo da Moldávia, William Friedman, aos de Marshall Carter, que dirigiu a Agência de 1965 a 1969. E, por incrível que pareça, o Departamento de Justiça de Jimmy Carter, acedeu ao pedido de Bamford, fundamentado na Lei da Liberdade de Informação, e entregou-lhe documentos secretos  relacionados à Comissão Church, comissão do Senado que, em 1975, investigou as agências de inteligência dos EUA acusadas de possíveis transgressão e abuso das respectivas autorizações para investigar.

O fato de o governo entregar informação sensível a Bamford, como se pode adivinhar, enfureceu a Agência de Segurança Nacional. Advogados do governo Reagan tentaram coagir Bamford a devolver os documentos, ameaçando-o com a Lei de Espionagem, enquanto a própria Agência tentava sequestrar os documentos que ele revelara. Mas, porque era, ele próprio, advogado, Bamford sabia que nada fizera de ilegal.

Diferente da ordem judicial secreta sobre escuta clandestina que ordenou que a empresa Verizon entregasse à Agência os registros telefônicos de seus clientes, a qual foi clandestinamente repassada a Glenn Greenwald do Guardian, a informação que Bamford recebeu foi-lhe entregue por via legal, por canais legais.

Tive muito trabalho para encontrar um exemplar de The Puzzle Palace. Procurei também em livrarias online, mas o único exemplar impresso que consegui encontrar estava na Queens Central Library [Biblioteca Central do Queens]. O livro estava arquivado, me disseram, e demoraria para ser encontrado. De fato, The Puzzle Palace parece objeto místico, do tipo mais obscuramente revelador. Embora publicado nos anos Reagan, é fortemente subversivo e poderosamente clarividente e presciente. Seus vários alertas contra a “tecnotirania” e a ideia de que “a mesma tecnologia usada contra a livre manifestação do pensamento pode ser usada para protegê-la” soam como algo que facilmente se ouviria de um executivo da Google em conferência pública. Bamford escreve com descrença e ceticismo sobre os procedimentos legais criados em 1978 nos termos da Lei para Vigilância de Inteligência Estrangeira [orig. Foreign Intelligence Surveillance Act] para legitimar a espionagem – as mesmas leis que, desde 11/9, permitem escutas clandestinas dentro dos EUA –, chamando-as de “corte super precária e insuficiente, virtualmente impotente.”

O livro de Bamford, em 1982, lembra a todos que suponham que as escutas clandestinas sejam parte necessária de um mundo pós 11/9, que a Agência Nacional de Segurança já forçara, bem antes, os limites da 4ª Emenda. O Projeto Shamrock, implantado depois da 2ª Guerra Mundial, obrigava empresas como a Western Union a entregar, em lotes diários, todos os telegramas que entrassem e saíssem dos EUA. Irmão mais novo, o Projeto Minaret, nascido em 1969, coletava informação sobre “indivíduos ou organizações envolvidas em agitações civis, movimentos/manifestações antiguerra e desertores do serviço militar envolvidos no movimento antiguerra.”

Minha passagem favorita é de um tipo mais leve. Descreve o quartel-general da Agência Nacional de Segurança, perto de Washington – às vezes chamado “Crypto City” – que Bamford visitou, em troca de algumas poucas concessões, aceitando não divulgar informação que muito interessava à Agência que não fosse divulgada. Ele escreve: “Embora a segurança no Puzzle Palace pareça quase hermética, grande parte de tudo não passa de fantasia. Apesar do triplo revestimento e da eletricidade [a verificar: orig. Triple-wrapping in chain link and electricity notwithstanding], o acesso ao lobby do prédio e à área acarpetada da recepção é tão fácil quanto entrar num terminal de ônibus da empresa Greyhound.” Não há dúvidas de que isso, hoje, mudou.

Se The Puzzle Palace é hoje tão difícil de encontrar, é porque o volume seguinte, Body of Secrets, eclipsou quase completamente o primeiro. Publicado meses antes do 11/9, é a história de uma agência sem rumo, a ameaça soviética já evanescida no horizonte e a nova ameaça que viria logo depois, do Oriente Médio, ainda não configurada nem em foco. O livro é denso de história da própria agência, em parte porque, para esse trabalho, Bamford receberia a mais completa e intensiva cooperação da própria Agência. O então diretor Michael Hayden, que assumira a direção da Agência em 1999, até convidou Bamford para jantar em sua casa. (“Ele tinha uma banda, um trio” – Bamford contou-me. – “Generais gostam dessas coisas.”)

A narrativa nem sempre é gentil: Body of Secrets começa com uma descrição do que eram os agentes de inteligência dos EUA ao final da 2ª Guerra Mundial, desesperados para pôr as mãos em decodificadores nazistas que os pudessem ajudar contra a crescente ameaça soviética. A crise de Suez de 1956, na qual Israel, Grã-Bretanha e França atacaram o Egito, “marcou uma triste entrada no mundo da inteligência de crises” – escreve Bamford, com a análise produzida pela agência reduzida a nada mais útil ou específico que “comunicações entre Paris e Telavive.” Oito anos depois, a Agência de Segurança Nacional cometeria “grande estupidez”, nas palavras de Bamford, ao inflar a ameaça de um segundo ataque no Golfo de Tonkin nos primeiros dias de agosto de 1964, que o presidente Lyndon B. Johnson usaria como pretexto para arrastar os EUA para o que viria a ser a Guerra do Vietnã.

Adiante, Bamford diz que a Agência de Segurança Nacional perdeu equipamento de criptografia para os norte-coreanos, que passaram o equipamento para os soviéticos, os quais, por sua vez, entregaram-no aos seus aliados norte-vietnamitas (a Agência desmentiu essa informação). A Agência cercou a União Soviètica com um “cordão eletrônico”, embora, como Bamford disse-me depois, “porque a Guerra Fria manteve-se fria, a Agência de fato nunca foi testada contra esse seu máximo desafio.”

Lenta no processo de mudança ao longo dos anos 1990s, a Agência começou a adaptar-se para o mundo digital quando Hayden assumiu a direção. Seus decifradores de códigos eram matemáticos brilhantíssimos e cientistas de computação, mas não estavam sempre perfeitamente atualizados. Bamford escreve que “com a Guerra Fria virando passado, foram-se também os anos de apogeu da Agência de Segurança Nacional dos EUA.” E observa que, em 1997, “a comunidade de inteligência encolhera de volta às dimensões que tivera em 1980.” Para a NSA, significou que, nos primeiros sete anos dos anos 1990s, houve cortes; o pessoal foi reduzido em 17,5%. 

Dado que a Agência de Segurança Nacional parece ter tratado Bamford quase como um ombudsman civil naquele momento, o livro é cheio de pequenos detalhes curiosos: a agência de Correios da “Crypto Cit”y, já em 2000, distribuía 70 mil itens de correspondência diariamente; e “a Agência de Segurança Nacional dos EUA era o maior fornecedor de sangue para o programa de doação de sangue de Maryland”. Há até um “festival anual de cinema, patrocinado pela Associação de Cripto-Linguística [orig. Crypto-Linguistic Association] e um Battlegaming Club, além de lojas Taco Bell e Pizza Hut.” Os datalhes visam a criar, com uma aura de normalidade, o que Bamford descreve como “um avatar da “Biblioteca de Babel” de Jorge Luis Borges, um local onde a coleção de informações é ao mesmo tempo infinita e monstruosa, onde está armazenado todo o conhecimento do mundo, mas cada palavra aparece enlouquecidamente cifrada, escrita num código indecifrável.”

A grande ironia é que a agência encarregada da oniciência deixou passar sem ver nem registrar o fato de que vários dos sequestradores de aviões do 11/9 viviam ali bem perto, em Laurel, Maryland, cidade-dormitório da comunidade de inteligência dos EUA. Bamford especula que os cinco ainda-não-terroristas, mas a poucos dias de se converterem nos maiores terroristas de todos os tempos, provavelmente se exercitavam, para manter a forma física, na mesma academia, Gold’s Gym, que vários funcionários da NSA.

Em termos gerais, Bamford é gentil com Michael Hayden. Mas, depois do 11/9, acontecido apenas alguns meses depois da publicação do livro na primavera de 2001, a Agênia de Segurança Nacional passou a ser, simultaneamente, o bode expiatório e uma das organizações encarregadas de impedir futuros ataques. Parte de sua missão envolveu disseminar, com a ajuda da CIA, a ideia da Casa Branca de que o Iraque possuía armas de destruição em massa – noção que em seguida se verificou ser absolutamente falsa. Mas serviu bem, como Pretexto para a Guerra – terceiro volume da tetralogia – amplamente demonstra. Nesse livro, Bamford também relata que a Agência de Segurança Nacional recebeu ordens, do governo Bush, “para espionar os inspetores de armamentos da ONU e para pressionar membros indecisos do Conselho de Segurança da ONU para que votassem a favor de ‘guerra-já’.”

Mas nem Bamford sabia do pior disso tudo. Outra vez, seu livro foi lançado no auge de um cataclismo. Dia 16/12/2005, o Times publicou artigo intitulado “Bush Lets U.S. Spy on Callers Without Courts” [Bush autorizou EUA a espionarem cidadãos norte-americanos sem autorização judicial]. A matéria dizia que o presidente “autorizou secretamente a Agência de Segurança Nacional a manter escutas clandestinas sobre cidadãos norte-americanos e outros dentro dos EUA, à procura de sinais de atividade terrorista, sem a autorização judicial que normalmente se exige para escutas clandestinas e espionagem doméstica, segundo disseram funcionários do governo” – movimento predecessor do programa PRISM hoje revelado. Bamford sentiu-se traído. Embora tivesse noticiado os excessos dos projetos Shamrock e Minaret, acreditava que a Agência de Segurança Nacional, sob a direção de Hayden, fosse organização mais escrupulosa do que antes. Hoje, Bamford diz que considera o livro generoso demais no retrato que pintou de Hayden.

The Shadow Factory [Fábrica de sombras], o furioso livro que Bamford publicou em 2008, sobre os atuais problemas que a Agência de Segurança Nacional enfrenta, é, provavelmente, o mais importante de todos, hoje. Nesse livro, ele mostra uma Agência que se vai tornando cada dia mais autônoma sobre quais dados coleta, e de quem. Como um funcionário disse a Bamford, “É o que a Agência de Segurança Nacional faz desde 9/11. Hoje, só fazem mais, do mesmo.” Hayden, naquele momento, foi convertido em “sicofanta de três estrelas, que só pensava em proteger a Agência contra as forças destrutivas de Cheney e [David] Addington [chefe de gabinete de Cheney]. Body of Secrets faz referência a Borges. The Shadow Factory cita Orwell.

Particularmente forte é a suspeita de que, dentre todas as agências norte-americanas de espionagem, a Agência de Segurança Nacional não é, de fato, muito boa. Bamford disse que a Agência “falhou feio” na prevenção de ataques, desde a Guerra Fria. Não viu coisa alguma, desde o primeiro ataque ao World Trade Center em 1993, até o recente atentado na Maratona de Boston. Isso, em parte, porque a Agência está afogada em tal quantidade de dados que, ao que parece, já perdeu a capacidade para avaliar a informação em tempo razoável. É preciso ter gente capaz de definir padrões, de dizer o que é importante e o que não tem importância alguma. Ou, como Bamford diz em A Pretext for War, a Agência de Segurança Nacional carece de fontes de inteligência humana para ajudá-la a ver onde e quem espionar.” No passado, uma rivalidade com a CIA – responsável, sobretudo, pela inteligência humana, em contraste com a Agência de Segurança Nacional, focada só em recolher dados – impediu que se construísse essa simbiose.

Na raiz da fixação de Bamford com a Agência de Segurança Nacional está uma fascinação com a facilidade com que os americanos “compram a ideia de empresa” de espionagem e espiões, e que é o que nos garantiria que a lei estaria sendo cumprida, que as liberdades civis estariam sendo respeitadas, por mais que se acumulem provas de que nada é bem assim, que a verdade é o contrário disso. É como se os norte-americanos quisessem acreditar que os encarregados de nos proteger poderiam, vez ou outra, desobedecer a lei, mas só para nos manter em segurança, mais ou menos como faz a patriota-bandida Carrie Mathison, personagem de Claire Danes, no seriado Homeland.

Tudo isso tem enfurecido Bamford, cada dia mais. Embora não se tenha vangloriado durante nossa conversa, é visível que se sente vingado pelos muitos anos de feroz perseguição que sofreu. E continua furioso, tão furioso quanto em 1982, quando só bem poucos norte-americanos haviam algum dia ouvido falar de “Crypto City”. Surpreendentemente apolítico, Bamford quer, simplesmente, que os espiões respondam pelo que fazem, antes de fazer: “Querem espionar? Acham que espionar é vitalmente importante?” – pergunta, falando do programa PRISM da Agência de Segurança Nacional. – “Pois apresentem um projeto de lei, consigam que o Congresso aprove. Abram um debate nacional, público.”

Publicado em 10/6/2013, Alexander Nazaryan, The New Yorker
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Traduzido pelo coletivo Vila Vudu