O regime democrático da Turquia foi submetido a um teste importante neste fim de semana. E o resultado não foi nada bom para o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdoğan, em seu terceiro mandato, e o AKP, partido islamista que governa a Turquia desde 2001. A atuação da polícia nas ruas de Istambul e a de Erdogan como chefe de governo fizeram os turcos, e o mundo, questionar as credenciais democráticas do país que almeja ser exemplo de conciliação entre a democracia e o islã.

A brutalidade da polícia foi exposta na sexta-feira 31. Nos quatro dias anteriores, manifestantes ocupavam o parque Gezi, ponto simbólico de Istambul, com demandas basicamente locais. Pediam a manutenção do parque, uma das poucas áreas verdes restantes na maior cidade turca, e rejeitavam a transformação de um antigo quartel otomano em um shopping center com apartamentos de alto de padrão. Na sexta-feira, a polícia decidiu a acabar com a ocupação. O parque, e a praça Taksim, adjacente a ele, foram invadidos pela tropa de choque que usou grandes quantidades de gás lacrimogêneo, canhões de água e força bruta contra os manifestantes. Pelo menos 138 pessoas foram presas na cidade e centenas ficaram feridas, algumas gravemente.

O governo que deseja ser exemplo ao resto do Oriente Médio, diante do mundo, tomava atitudes como as de seus vizinhos antidemocráticos.

A ação policial levou o protesto a um novo patamar. Os manifestantes passaram a pedir a renúncia de Erdogan e chamar o governo do AKP de fascista, uma alusão ao crescente autoritarismo que vem mostrando desde que foi eleito pela terceira vez, em 2011. Em pouco tempo, manifestações de solidariedade surgiram em outras cidades turcas, como a capital, Ancara. A repressão se repetiu, e quase mil pessoas foram detidas.

A indignação dos manifestantes cresceu pois as principais emissoras de televisão turcas não fizeram uma grande cobertura dos eventos, enquanto canais internacionais, como a CNN e a Al-Jazeera mostravam a brutalidade policial. Os jornais, ao menos, fizeram duras críticas ao governo, mesmo aqueles mais alinhados a suas políticas.

A arrogância de Erdogan e alguns de seus aliados chamou a atenção e forma bastante negativa. “Não disputem conosco”, disse Erdogan em discurso no sábado. “Se vocês juntam 200 mil pessoas, eu posso juntar 1 milhão”, afirmou. “A cada quatro anos, fazemos eleições e a nação faz sua escolha (…). Aqueles que têm um problema com as políticas do governo podem expressar suas opiniões dentro da lei e da democracia”.  Ibrahim Melih Gokcek, prefeito de Ancara e também membro do AKP, foi mais incisivo. “Eu juro por Deus que poderíamos afogar vocês em uma colher com água, mas agradeçam a Deus porque acreditamos na democracia”.

O tom sectário do discurso de ambos não é uma coincidência. Quase que 100% dos manifestantes em Istambul, Ancara e outras cidades turcas eram seculares. Foi uma mostra da dicotomia da Turquia, marcada pelas diferenças entre o governo islamista do AKP e a resistência secular, encabeçada hoje pelo CHP, o principal partido da oposição. Em 2001, após décadas de instabilidade e golpes militares, o AKP surgiu com uma proposta moderada de fusão entre democracia e islamismo. Obteve sucesso nas urnas e passou a governar o país, permitindo que muitos turcos passassem a ter liberdade de se mostrarem publicamente muçulmanos – o que era, de várias formas, proibido pelos governos anteriores, conhecidos por suprimir o lado religioso da população e, principalmente, do Estado.

Desde a terceira reeleição de Erdogan, em 2011, as coisas mudaram. A islamização oficial da Turquia, que era reduzida, cresceu. Neste ano, causou indignação dos setores mais seculares e liberais a aprovação de uma lei com diversas restrições à venda e ao uso do álcool. Ao mesmo tempo, Erdogan, provavelmente inebriado pela força das urnas, começou a se mostrar mais autoritário.

A crise desta semana só foi encerrada porque ainda há vozes moderadas no AKP. O presidente da Turquia, Abdullah Gul, conversou no sábado por telefone com o governador de Istambul, com o ministro do Interior turco, Muammer Güler, e com Erdogan. Conseguiu pedir bom senso e fazer a polícia recuar, deixando a praça Taksim para os manifestantes. Güler, por sua vez, anunciou uma investigação sobre os abusos policiais. Erdogan reconheceu o uso excessivo de força pela polícia, mas seguiu neste domingo fazendo declarações sectárias e com sua postura arrogante.

A Turquia é um país muito importante para a estabilidade do Oriente Médio. Pode, realmente, ser exemplo para seus vizinhos da região. Antes de ensinar a democracia, entretanto, o Erdogan e o AKP precisam entender que a democracia não é um favor do governo para a oposição e nem ocorre apenas a cada quatro anos.