Ao esculachar pela enésima vez o Congresso e os partidos, Joaquim Barbosa garantiu sessões de aplauso em saguões de aeroporto, no metrô de Ipanema e nos shows da Marisa Monte, além, é claro, de uma notinha entusiástica no Ancelmo Gois:

“Já se disse que alguns ministros do STF estão com a matraca solta e falam além da conta. Já se disse que Joaquim Barbosa fala sempre a coisa certa na hora errada. Mas, neste caso, o presidente do Supremo tem razão. Um sistema partidário com dezenas de partidos, quase todos inodoros, insípidos, assexuados, sem ideias ou ideologia, é ou não é de mentirinha? Cartas para a Redação.”

Após as críticas óbvias que suas declarações despertaram, seu gabinete tentou um remendo que não ajudou em nada: para estupefação de professores universitários, Barbosa explicou que falava enquanto acadêmico. Com isso, ele esculhamba também a Academia.

Só que não existe isso de opinião acadêmica. Barbosa é  presidente do STF, e não um Homer Simpson resmungando na frente da televisão.

De qualquer forma, a pergunta que se deve fazer é a seguinte: Barbosa está certo quando afirma que os partidos no Brasil não tem base programática e ideológica, e que “nós não nos identificamos” com eles?

A afirmação de Barbosa, na íntegra é a seguinte:

“Nós temos partidos de mentirinha. Nós não nos identificamos com os partidos que nos representam no Congresso, a não ser em casos excepcionais. Eu diria que o grosso dos brasileiros não vê consistência ideológica e programática em nenhum dos partidos. E nem pouco seus partidos e os seus líderes partidários têm interesse em ter consistência programática ou ideológica. Querem o poder pelo poder.”

No jantar com o professor Wanderley Guiherme em que acertamos os últimos detalhes de sua coluna, conversamos um pouco sobre o assunto, e ele nos lembrou que essa “consistência ideológica e programática” que Barbosa não vê nos partidos brasileiros não existe em nenhuma democracia do mundo. Numa democracia moderna, os partidos têm ideias meio parecidas (investimentos em infra-estrutura, em educação, programas sociais, etc) sendo às vezes difícil distinguir um do outro quando se atém apenas ao papel. O eleitor, quando vota no partido, julga-o não por suas promessas ou programas, e sim por sua prática no poder. A relação entre eleitor e partido numa democracia é de compromisso político. Se entendo que o partido vai trabalhar em prol dos interesses da minha classe, eu voto nele.

Quanto à identificação, Barbosa externou outra falácia. O eleitor brasileiro se identifica sim com os partidos, tanto que vota seguidamente numa legenda quando é de seu agrado.

O que não tem consistência, portanto, são os pensamentos de Barbosa, presos aos mais rasteiros clichês da antipolítica. Por outro lado, não devemos nos enganar quanto ao efeito multiplicador de suas palavras. Barbosa produziu um factóide, tanto é que estamos aqui discutindo sua fala. No Congresso, no Senado, na mídia, as atenções se voltaram novamente para o presidente do Supremo.

Barbosa não apenas fez política, o que é terminantemente proibido aos juízes; ele pôs mais um tijolo no muro de preconceito que a imprensa constrói diariamente entre a sociedade e as instituições.

Para cúmulo da falta de noção, Barbosa foi mais longe e defendeu o voto distrital, a única bandeira permanente da revista Veja, por causa do golpe mortal que isso poderia causar à representação sindical. Os trabalhadores ligados a um sindicato não moram no mesmo “distrito”, portanto o voto distrital é uma artimanha conservadora para afundar a única plataforma que a classe trabalhadora possui para eleger seus representantes e fazer frente ao poder do grande capital.

É triste constatar isso, mas Barbosa se tornou um representante do mais baixo conservadorismo político. Não importa se ele votou no Lula, se foi indicado por Lula, temos que julgá-lo por suas ações. A nomeação de Barbosa é resultado da inexperiência do PT, o que nos leva a concluir que a ideia de que Lula é muito esperto, etc, é falsa. Se Lula fosse esperto mesmo, e digo na acepção positiva da palavra, astuto, ele não indicaria tucanos para chefiar a Procuradoria Geral da República nem escolheria ministros do Supremo com tanta leviandade. No caso dos ministros, a imprudência deve ser partilhada com a atual presidente Dilma Rousseff.

O problema do PT não é o aparelhamento, e sim a falta de aparelhamento. Num processo democrático, votamos para que o grupo vencedor ocupe efetivamente o Estado. É assim que acontece em todas as democracias do mundo. No caso da Procuradoria da República, então, é preciso tomar muito cuidado porque o Ministério Público brasileiro, pese a sua imensa importância no combate à corrupção e às mazelas administrativas, tornou-se uma instância politicamente mal resolvida. O MP é o quê: é um outro tipo de Judiciário? Pertence ao Executivo (como de fato é)? É uma polícia à parte de todas as outras instituições?

Então voltamos à frase de Barbosa, sobre o “Executivo dominar o Legislativo”. Além do tom partidário da frase, já que essa interpretação interessa à oposição, é outra confusão típica de quem não dispõe de sensibilidade para entender a democracia. O povo tende a eleger um Executivo e um Legislativo afinados programaticamente. É assim que funciona. O Executivo não “domina” o Legislativo: ambos estão interligados por acordos partidários e políticos. Ambos formam um único ser entendido como a soberania popular.

O jornalista Miguel do Rosário é autor do blog www.ocafezinho.com

Artigo publicado originalmente no blog O Cafezinho, via Revista Forum.