Para aqueles que lutam por memória, verdade e justiça, a última sexta-feira poderia ter sido uma data marcada apenas pelo cinismo e pela mentira, com o depoimento à Comissão Nacional da Verdade do ex-comandante do DOI-Codi Carlos Alberto Brilhante Ustra, declarado torturador pela Justiça de São Paulo. Só não o foi porque nesse mesmo dia houve o encerramento da emocionante semana do seminário “Verdade e Infância Roubada”, organizado pela Comissão da Verdade de São Paulo “Rubens Paiva”, quando filhos de ex-presos, mortos, torturados e desaparecidos políticos testemunharam sobre os impactos, traumas e sequelas que a ditadura civil-militar deixou em suas vidas.

Enquanto em Brasília Ustra gritava e dava socos na mesa ao negar ter cometido crimes durante a ditadura, dizendo que “cumpria ordens” e que lutou para que o Brasil não virasse um “Cubão”, em São Paulo os irmãos André e Priscila da Cunha Arantes, filhos do casal de militantes Maria Auxiliadora da Cunha Arantes e Aldo Arantes, ex-deputado federal (PCdoB), falavam sobre a experiência de sua prisão, em 1968, quando tinham somente três e dois anos, respectivamente.
Foi em 13 de dezembro de 1968, dia da promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), que as crianças foram presas com Maria Auxiliadora em Paracoinha, interior de Alagoas. Passaram pelo Dops de Maceió, pela Cadeia Pública, pela Escola de Aprendizes de Marinheiros e pelo Hospital da Polícia Militar. No pátio do hospital, junto com o lixo hospitalar, havia ratos, que corriam para lá e para cá. “Era um lugar horrível, mas eu me sentia seguro, pois estava com minha mãe”, disse André, para uma plateia emocionada, onde estavam, além de seus pais e familiares, ex-presos políticos e seus filhos. Para amenizar a situação em que Priscila e André estavam, a mãe de ambos “apelidou um dos ratos de Jerry [personagem de animação da série estadunidense Tom & Jerry]”, recordou André.
Enquanto estavam presos, um oficial da Marinha sugeriu à Maria Auxiliadora que entregasse o filho para que ele criasse, alegando que teria mais condições de proporcionar um futuro para a criança. André, que hoje trabalha no Ministério dos Esportes, disse à mãe: ‘“Eu sei que hoje você queria encontrar com aquele oficial que quis me levar e dizer a ele: ‘o futuro do meu filho seria melhor comigo’”.
Ao longo da semana de 6 a 10 de maio, foram ouvidos cerca de 30 filhos e filhas, hoje adultos na faixa de 40, 50 anos, cujas histórias até agora não haviam sido reunidas. O que existia de registro, até o momento, era o importante documentário “15 filhos”, de 1996, dirigido por Marta Nehring e Maria de Oliveira e que retrata as memórias de 15 filhos de militantes políticos.
Os depoimentos foram marcados por lembranças da prisão, de questionamentos em relação às suas identidades, de medo, insegurança, isolamento, solidão e vazio que, em muitos casos, são traumas não superados. Entre as histórias, casos de crianças que foram sequestradas, levadas aos órgãos clandestinos de repressão, vítimas de violência física e psicológica, exiladas, banidas. Casos de filhos obrigados a viver longe de seus pais, com nomes falsos, parentes distantes. Viram seus pais serem torturados, humilhados.
Passados quase 30 anos do fim da ditadura, num país onde a transição para a democracia segue inconclusa, onde há  corpos insepultos, arquivos não abertos, histórias não contadas e uma Comissão da Verdade tardia, dedicar uma semana para testemunhos de filhos de ex-presos políticos é fundamental para se ter um panorama da perversidade do aparato implantado pelo Estado de exceção.
Por conta desse atraso em trazer a verdade à tona, em punir os torturadores, reinterpretar a Lei de Anistia – que não anistiou os torturadores –, fica difícil mensurar a extensão dos impactos da ditadura. Eu, por exemplo, sobrinha de Luiz Eduardo Merlino, jornalista assassinado na Operação Bandeirantes (Oban) em 1971, sob o comando de Ustra, só consegui dar conta da dimensão dos efeitos da ditadura sobre mim ao longo dessa semana. Eu não apenas sou familiar de uma vítima do regime militar. Não apenas testemunhei o sofrimento causado em minha avó e testemunho ainda hoje a dor provocada em minha mãe. Eu vivi e vivo essa dor, além de ter sido privada da convivência com meu tio.
Na manhã de sexta, logo depois de Ustra negar o inegável, chamar o vereador Gilberto Natalini (PV) de terrorista e defender a detestável “teoria dos dois demônios” na audiência à CNV, o coordenador da assessoria da Comissão da Verdade de São Paulo, Ivan Seixas, lembrou que Ustra torturou pessoalmente o deputado estadual Adriano Diogo (PT), presidente da comissão estadual, e foi o responsável pelo assassinato de seu pai, Joaquim de Alencar Seixas. “Aqui temos eu, o Adriano, a Amelinha e a Crimeia, entre os muitos que foram torturados pessoalmente por Ustra”, lembrou Seixas.
Condenado no ano passado como torturador em ação movida por Maria Amélia de Almeida Teles, César Augusto Teles e Crimeia Alice Schmidt de Almeida, pelas violências cometidas contra os três entre 1972 e 1973, Ustra teve a audácia de dizer que os filhos de Amelinha e Teles, Janaína e Edson (de 5 e 4 anos na época), que foram sequestrados e levados ao DOI, estavam sendo muito bem tratados. “Ele defende isso como um ato de benevolência”, lembrou Edson Teles.
Colocados num camburão cheio de armas, Edson e Janaína foram levados ao DOI-Codi e confrontados com seus pais recém-saídos da tortura, sujos e machucados. “Vi corpos marcados, roxos. Vi um rosto desfigurado, falando comigo e me perguntei: ‘Quem é essa pessoa que tem a voz e o jeito da minha mãe?’.” Edson não sabe precisar por quantos dias ele e Janaína ficaram no centro de repressão, mas recorda-se de muitas cenas do local. “Éramos usados para fazer nossos pais falarem.” Depois de alguns dias, os irmãos foram levados para morar na casa de um parente, delegado de polícia.
“Era uma espécie de cárcere privado”, lembra. Lá, moravam no quarto dos fundos, acordavam cedo e tinham tratamento diferente dos filhos da família, que saíam aos domingos para passear e ganhavam presentes. Um dia, o tal delegado disse: “vou te levar ao zoológico”. O zoológico era a delegacia na qual ele era titular. Chegando lá, levou Edson à área da carceragem e, apontando para os presos, dizia: “Esse é o veado… essa é a cobra”. “Era uma perversão comigo e com eles. O que me marcou nessa experiência foram os olhares dos presos”, disse Edson, hoje com 45 anos e professor da Unifesp.
Anos depois, já morando com sua família, Edson ia visitar o pai, César Teles, condenado a anos de prisão por sua militância no PCdoB, no Presídio Romão Gomes. Edson ia vestido como uma espécie de “agente secreto da resistência”, usando roupas que acreditava que o disfarçaria: jaqueta, chapéu e óculos. Para ver os parentes presos, precisavam passar por uma revista.
Foi então que ele resolveu cometer um “ato de resistência”: fez um buraco no casaco com a ajuda de sua tia Crimeia e lá escondeu um potinho de tinta guache. A ideia era passar despercebido pela revista. Quando chegou ao presídio, a policial percebeu que ali havia um volume, mas não conseguia ter acesso à tinta, porque havia uma abertura falsa. “Ela me perguntava como chegar ao objeto, mas eu, que já havia aprendido na escola a ser cínico e mentir, não respondia. Ela pediu autorização para liberar a minha entrada e assim aprendi que conseguia burlar a ditadura”, contou Edson.
Quem também foi levada quando bebê à  Operação Bandeirantes foi Carmen Nakasu, filha de Elzira Vilela e Licurgo Nakasu. Era setembro de 1973 quando seus pais e ela foram presos na Estação da Luz, em São Paulo, quando tentavam viajar para o Rio de Janeiro. “Entrega a menina!”, disseram à Elzira, antes de encapuzá-la.
A menina de um ano ficou cerca de cinco dias nas mãos dos policiais. “Antes do sequestro eu era uma criança alegre, extrovertida, que gostava muito de tomar banho. Quando voltei para meus familiares, tinha pavor de banho e do som de água.” Até não muito tempo atrás, ela ainda se apavorava com o som de uma descarga de vaso sanitário. “Fui uma criança muito tímida e insegura, não me relacionava com colegas. Eu tinha uma angústia tremenda, falta de ar, e fiz terapia desde muito cedo”, relatou.
Um dos sentimentos mais fortes presentes nos depoimentos dos filhos de presos foi o de ter os corpos de seus pais insepultos, como Tessa Lacerda, filha de Gildo Macedo Lacerda e Mariluce Moura, presos em outubro de 1973. A mãe, grávida, foi libertada dias depois. Já o pai morreu sob torturas. O corpo nunca foi entregue à família. “Aos nove anos eu alimentava o sonho solitário de que ele voltaria. Isso se deve à ausência do corpo, ao fato de não haver um túmulo. Isso me impede de fazer o rito, aceitar que ele está morto”, disse, sob lágrimas.
“Isso não é justo com ele, com os pais dele, com minha mãe e com meus filhos. Não adianta me explicarem cientificamente que não é possível. É a criança falando ‘eu quero enterrar meu pai’”. Para ela, “mais doloroso do que saber que minha mãe foi torturada comigo na barriga é não poder enterrar meu pai”. Tessa, assim como outros filhos que testemunharam durante a semana “Verdade e Infância Roubada”, relataram que em seus documentos de identidade e certidões de nascimento não tinham o nome de seus pais até a adolescência ou até a idade adulta. “Não havia nome nenhum de pai na minha certidão. Passei por situações constrangedoras por conta disso”, contou.
A Comissão ouviu ainda dois casos de filhos que nasceram nos cárceres da ditadura: Paulo Fonteles Filho e João Carlos Schmidt de Almeida Gabrois, o Joca. O primeiro veio ao mundo em 1972, no Pelotão de Investigações Criminais (PIC) em Brasília, em fevereiro de 1972. O parto foi feito sem anestesia, mas a mãe, Hecilda Veiga, manteve-se firme, sem chorar. Diante da bravura, um agente da ditadura disse: “Filho desta raça não deve nascer”.
Joca nasceu no hospital do Exército de Brasília, em fevereiro de 1973, onde ficou por três meses. Sua mãe, Crimeia Alice Schmidt de Almeida, guerrilheira do Araguaia, foi torturada mesmo estando grávida. “Quando saí da cadeia, com três meses de idade, minha mãe colocou nas fraldas um diário contando sua história e a da guerrilha, pois acreditava que não sairia viva da prisão”, disse Joca, que não conheceu o pai, André Grabois, assassinado em 1973.
Um dos casos mais terríveis da ditadura militar – e um dos que mais me impressiona – é o de Nasaindy Barret de Araújo, filha de José Maria Ferreira Araújo e da militante paraguaia Soledad Barret Viedma, assassinada no chamado Massacre da Chácara São Bento, ocorrido em 1973 em Paulista, na Grande Recife. Araújo e Soledad se conheceram em Cuba, durante treinamento militar. O pai de Nasaindy, militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), desapareceu em 23 de setembro de 1970, quando foi levado ao DOI-Codi – testemunhas relatam que ele morreu em decorrência das torturas e maus-tratos a que foi submetido.
Nascida em Cuba, Nasaindy foi adotada pela família de Damaris Lucena, quando seus pais voltaram ao Brasil para seguir a militância política. “Com 10 anos, tomei consciência da perda de meus pais e comecei a sofrer muito”. Ela voltou ao país em 1980, com 11 anos de idade, e apenas em 1997, 16 anos depois de retornar, conseguiu se naturalizar brasileira e assumir o nome verdadeiro dos seus pais, já que havia sido registrada com documentos falsos para despistar os militares. “No Brasil, fiquei 16 anos como clandestina. Tive um problema grave de identidade e de adaptação. Foi um choque muito grande voltar para cá, as coisas foram bem complicadas. Eu me sentia distanciada, solitária, como um ET, vinda de outro mundo.”
Nasaindy disse que não tem lembranças de seus pais, mas afirma ter localizado, na terapia, o momento de despedida com a mãe. “É uma questão muito difícil de se lidar, a forma como ela foi assassinada”. Soledad foi morta após traição do agente infiltrado Cabo Anselmo, que à época era seu companheiro, e de quem estava grávida.
Um filho que não pôde contar sua história foi Carlos Alexandre Azevedo, que com 1 ano e 8 meses apanhou na própria casa, para depois ser levado ao Dops. Anos depois, em fevereiro de 2013, aos 39 anos, não aguentou mais resistir aos traumas e se suicidou. “Sinto que ele poderia estar aqui hoje, falando”, disse sua mãe, Darcy Andozia. Presa em 15 de janeiro de 1974, encontrou seu filho e a babá no Dops. “Ele estava com o lábio cortado.” Ela lembrou que o menino teve uma infância muito difícil.
“Na escola, era chamado de terrorista, apanhava dos colegas… ele foi se fechando cada vez mais. Os médicos diziam que o trauma que ele sofrera foi muito grande.” A mãe de Carlinhos, como era conhecido, disse que o filho lutou muito para se reinserir na sociedade, “mas não conseguiu”. Darcy contou ainda que numa noite poucos dias antes de morrer, estava na casa de uma amiga e ligou para o filho, que morava com ela. “Minha amiga perguntou a ele se eu podia ficar mais lá, e ele respondeu que não: ‘Quero que minha mãe venha para casa’. Três ou quatro dias depois, de madrugada, ele se suicidou”, recordou.
No encerramento da semana de audiências sobre as crianças afetadas pela ditadura, Maria Amélia de Almeida Teles lembrou que a ação violenta dos militares “tentou destruir a infância de nossas crianças, que tiveram sim a infância roubada. Em todas as histórias, vemos a ausência e a violência. Ainda hoje há muita gente com feridas abertas, que sangram o tempo todo”.
*Tatiana Merlino é repórter e sobrinha de Luiz Eduardo Merlino, assassinado sob tortura em São Paulo. A reportagem só foi possível graças ao financiamento dos leitores do Viomundo para a produção de conteúdo próprio.