Muito se tem falado sobre os resultados do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) divulgado recentemente pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, (Pnud). Todos os artigos e análises publicados sobre o assunto parecem incorrer numa mesma falha de atenção: não são os dados do Brasil que o governo questiona, mas exatamente a falta de isonomia entre os países na seleção de dados feita pela Organização das Nações Unidas (ONU). O discurso de isonomia não pode servir como desculpa para usarem os dados brasileiros de 2005. Assim seria se todos os países tivessem dados de 2005. Conforme o anexo estatístico do Relatório de Desenvolvimento Humano 2013, não foi o que aconteceu quando muitos países tiveram por base dados atualizados para 2011 e 2012 (como Canadá, EUA, e Nova Zelândia).

O Brasil é referência na produção de estatísticas, registros e dados em todo o mundo. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) participa de diversos acordos de cooperação internacional. As próprias agências oficiais da ONU reconhecem nossa competência não apenas pelo alcance e pelos resultados das políticas sociais, mas também pela forma de acompanhamento, controle e análise dos resultados.

Estranho, dada essa reconhecida competência, que esses mesmos organismos sigam sem utilizar devidamente a informação que produzimos. Ressalte-se: não se trata de requisitar tratamento privilegiado para o Brasil em relação aos demais países. O que se quer é a isonomia na análise.

As razões históricas das desigualdades são conhecidas; sua aparição avaliza o acerto das decisões do governo

É importante frisar que as críticas à não utilização de dados recentes não é nova. Os problemas permanecem apesar das inúmeras reuniões realizadas entre diversos ministérios e variadas instâncias do Pnud e da Unesco. A responsabilidade mundial por organizar as informações de 187 países pode justificar alguns equívocos. Mas é importante que eles sejam corrigidos, menos por uma questão numérica e mais pelo interesse em utilizar essas medidas da melhor maneira possível. Infelizmente, qualquer pesquisa hoje que seja produzida com base nos dados calculados pelo IDH é frágil a priori.

Por fim, para além de esclarecer o equívoco que tem sido amplamente reproduzido, acreditamos ser importante ampliar a divulgação de outras divergências. O IDH cumpriu um papel muito importante na década de 1990 ao questionar a posição central de indicadores estritamente econômicos na avaliação de países. A sua força para demonstrar a importância de que variáveis sociais eram tão ou mais fundamentais que o Produto Interno Bruto (PIB) para analisar a trajetória das nações foi estratégica. No entanto, passados 20 anos, são muitos os avanços que tivemos com a telemática, e a produção de dados e informações foi multiplicada exponencialmente. A justificativa de falta de dados comparativos para a composição do indicador sintético passou a ser apenas parcialmente verdadeira. Se novos dados forem demandados para a composição de indicadores mais precisos, os países podem refazer seus esforços e compor as séries de informações necessárias para essa nova informação. O que foi feito a muito custo no passado, será hoje menos custoso e demandará menos esforços.

A incorporação de variáveis que se relacionem com fluxos, por exemplo, seria estratégica para captar não apenas saldos históricos, mas também realidades instantâneas e permitir aos países realizarem ações necessárias. Dizemos isso olhando os indicadores do IDH e a triste realidade da Europa de hoje. Dos países mais atingidos pela crise, apenas a França tem uma leve queda em seu indicador. O desemprego espanhol ou a instabilidade grega passam longe de sua captação. Pode-se argumentar que ao trabalhar com estoques, fica demonstrada a solidez da base social desses países que não é abalada com fatos recentes.

O receio é que uma crise econômica de muitos anos, que já mostra seus efeitos no dia a dia, venha somente a ser captada em décadas, quando medidas para reduzir os seus impactos já terão passado há muito tempo. O IDH fica como um retrovisor focado numa longa distância.

Além disso, são muitas as variáveis sociais hoje mensuráveis que também podem fazer parte da multidimensionalidade do desenvolvimento dos países. A restrição dada aos temas de educação e saúde é reconhecida e criticada até no relatório do próprio PNUD. Exemplo disso é a tentativa de incorporar desigualdades ou outras dimensões de direitos (como gênero) nos cálculos de novas modalidades do indicador. Ressalte-se que mesmo nesse esforço, os dados brasileiros estão novamente desatualizados como o nosso indicador de desigualdade Gini (está em 0,5 e é registrado como 0,547).

A quase totalidade dos artigos publicados desde o lançamento do relatório segue referenciada apenas no ranking principal. Acusam a falta de progresso do Brasil e descrevem o governo como contestando os resultados por interesses próprios. Não se trata disso. As razões históricas das desigualdades brasileiras são conhecidas e sua aparição nos indicadores é muito positiva para o governo, pois avalizam o acerto das decisões tomadas nos últimos anos. Reforçam que a agenda social deva seguir em primeiro lugar.

O que se percebe é que resultados recentes dessas decisões desaparecem das análises por equívocos da própria medida, que ofuscam o debate e induzem ao erro – como a discussão da validade ou não do recálculo do indicador com dados mais atuais. É no mínimo incômodo observar o trabalho de consolidação dos dados internacionais e os recursos gastos pela ONU em sua tabulação, e constatar que aquilo que revelam não é o que está ocorrendo no país. E provavelmente também não seja o que ocorre no mundo.

Fernando Kleiman é especialista em políticas públicas e gestão governamental e assessor especial do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome

Publicado no Valor Econômico – 04/04/2013