Os defensores da energia cara

No debate feito em torno da MP 579, que pretende baixar o preço da energia elétrica, tem se sobressaído a tendência de se associar a medida a um padrão de governança da atual Presidência. Explicitamente, o padrão de confiar ao setor estatal um protagonismo asfixiante sobre a iniciativa privada. A proposta tem sido relacionada a um tipo autoritário de governança, assemelhado ao dos governos de Getúlio Vargas e Ernesto Geisel.

Ocorre que ainda está para aparecer no Brasil um governo que não oriente suas decisões atendendo a alguma parcela do setor privado.

Para ser posto no lugar, o debate deveria se debruçar sobre quem ganha e quem perde, entre os agentes econômicos privados, com a MP 579.

Os principais entusiastas da mudança propugnada pela MP são a indústria, o comércio e os consumidores individuais. O setor público perde. Suas empresas vão ter que diminuir seus lucros e reorientar seus gastos e planos para atender ao objetivo de baixar a conta de energia.

O problema está localizado -e não pode ser minimizado- em algumas importantes empresas de produção de energia, principalmente as de alguns dos grandes Estados produtores. Seus representantes têm agora a difícil tarefa de defender a energia cara e de fazer acreditar que isso se traduz em mais investimentos no setor. Com décadas de energia cara, a conclusão dessas premissas seria a de que o setor vai muito bem e que não se mexe em time que está ganhando.

Como tal linha de argumentação é muito pouco convincente, o debate tem deixado de lado a economia na ponta do lápis para adquirir feições de embate ideológico dos mais empedernidos. Para tanto, invocaram as almas ditatoriais de Getúlio Vargas e de Ernesto Geisel para assombrar os vivos.

O uso da história do Brasil pelo método confuso, gênero que tem ganhado adeptos, foi usado para dizer que a concepção por trás da MP 579 é a mesma do Código de Águas de 1934. Um arcaísmo, portanto.

O código de 1934 já foi exorcizado como o grande vilão do baixo investimento privado durante todo o período Vargas, como se a crise de 1929, que atravessou toda a década de 1930, e a Segunda Guerra fossem só dois “detalhes” do problema.

O código de 1934 trazia, das pátrias do liberalismo (Estados Unidos e Reino Unido), uma inovação que se afirmaria desde o século passado em todo e qualquer país decente: estabelecer marcos legais e agentes reguladores sobre cada setor produtivo.

O fato é que mesmo com crise e com guerra, a capacidade instalada de produção de energia elétrica do Brasil cresceu, de 1930 para 1940, em 60%. Entre 1940 e 1950, cresceu 34%.

A batalha que se enfrenta hoje tem mais a ver com a travada por Juscelino Kubitschek. Foi JK o grande responsável por desarmar o lobby que se formou fortemente nos Estados que controlavam a maior parte da produção de energia do país. Vargas encerrou sua presidência tragicamente, em 1954, sem ver aprovada sua proposta de criação da Eletrobras. Foi Juscelino quem a fez tramitar até sua aprovação, depois sancionada por Jânio Quadros, em 1961, e implementada por João Goulart.

A real discussão por trás da MP e de seus fantasmas dos anos 1930 a 1970 é a do poder de regulação pública sobre o setor privado.

Em países democráticos, após o vendaval da última crise, o papel das agências reguladoras tem se fortalecido na função de “watchdogs” (cães de guarda). Aliás, é assim que muitas delas popularmente se apresentam. Sua função é, quando se percebe algo de errado, latir; morder, se preciso for.

No Brasil, o setor privado trata como se fossem espantalhos as agências reguladoras que ameaçam cumprir o seu papel. Preferem cães de guarda que miem. Chamam a isso “segurança jurídica”. E preferem energia cara. Chamam a isso “investimento”.

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Cientista político, é pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)

Fonte: Folha de S. Paulo