O dia amanhecera com uma energia poderosa, a da torcida corinthiana indo em busca do seu primeiro título na Taça Libertadores. A São Paulo da avenida Ipiranga com São João, esquina eternizada pelo olhar poético de Caetano Veloso, logo se tornaria outra esquina para mim.

Padroeiros e gaviões

Antes o lançamento do livro. A disputa da festa literária com a do futebol era nenhuma, porque arte não concorre, enseja espetáculos. O do Corinthians teria como palco o Estádio do Pacaembu e os bares e casas iluminados de norte a sul no país. Ninguém dormiu antes do apito final do segundo tempo, que deu vitória ao time brasileiro contra o argentino Boca Juniors. A capital paulistana não adormeceria antes do sol nascer.

Se Deus criou a religião conforme os livros sagrados das diversas fés que existem no mundo, o homem criou a religião do futebol. Ou foi um brasileiro que criou essa religião de São Jorge?

A Mazé já começou a noite vitoriosa, com uma obra pronta e acabada, meticulosa, poética e ao mesmo tempo esclarecedora, imprescindível não só para professores, como também para leigos e diletantes na arte. O público era o da torcida desuniformizada, ainda que seu coração batesse por algum time de futebol. Entre os presentes mais afinados com a profissão da autora estava João Cândido Portinari, o filho do nosso famoso pintor comunista. Mas deixa o título, comunista, corinthiano ou qualquer outro, o que vale é o ponto de intersecção entre todos na livraria: paixão!

Despotismo liberado

Uma freira e artista plástica de sólida vocação e alta produtividade confessou a mim, em vez de aos padres, certa vez: “A arte e Deus são dois senhores impositivos, já me debati entre as exigências de ambos”.

Pode-se incluir aqui o futebol como outro senhor impositivo, pelo menos depois de ontem virou um deus. Quem torceu “contra” não ficou de fora, não poderia, era ajoelhar e rezar.

Quem foi ao lançamento do livro da Mazé, como João Carlos Amazonas, filho do grande João Amazonas, os jornalistas Joana Rozowykwiat, Claudio Gonzalez e José Carlos Ruy, que jogam no time do Vermelho cinco dias por semana, e outras tantas personalidades de destaque na cultura ou na área das humanidades, também co-participou da noite que o Corinthians reivindicou para si.

De volta à livraria Conversa boa, reflexões modestas, riso compartilhado. A noite iria longe. Saí antes do jogo acabar porque moro perto do estádio, saí com uma “bola no pé”, o livro, ensaiando um jogo rápido com aquelas páginas que me encantaram apenas ao folheá-las. Conheço há tempos tanto as pinceladas como as letras sutis e precisas de Mazé Leite. Não batem na trave, fazem gol.

Despedi-me contrariada, peguei o carro e o caminho de volta para casa. No trajeto uma cena desconcertante, aqui relatada sem nenhum julgamento. Na esquina da avenida Dr Arnaldo com a Dr Paulo Passaláqua – esta interditada pela CET e lotada de viaturas policiais – visualizei os hospitais do Câncer e Emílio Ribas com luzes resplandecentes, mais à frente o velório e o cemitério do Araçá. À minha direita na Dr Arnaldo, em frente aos hospitais, o boteco com telão e torcedores tomando a rua, gritos, bandeiras, suores.

Certamente havia pelo menos um morto sendo velado, alguns doentes mais graves nos leitos dos hospitais. Fiquei confusa, aprendi na auto-escola que se faz silêncio em frente ao hospital. Não se buzina, mas não há placas que digam algo a respeito de soltar fogos. Nessa noite, São Paulo, a cidade onde tudo se proíbe, permitiu uma comemoração inédita, geral e irrestrita. E na companhia da lua, que não posso apagar da cena noturna de São Paulo, surgiu de novo no meu campo de visão.

Passei por todos e tudo, o livro silencioso no banco do carona, a mente fervendo com ideias disparatadas, uma crônica germinando, uma certeza cristalizada: alegria não faz mal para doentes e a religião futebol pode consolar os enlutados. Imaginei que até mesmo a famosa festa da independência dos Estados Unidos deve ter sido obscurecida pelo fenômeno Corínthians.

E vamos em frente porque quem entende de arte sabe que todo o resto são detalhes! Mais tarde, enquanto os fogos e carros tomavam as ruas, li o primeiro capítulo do livro da Mazé. Dormi sabendo uma ou duas coisas a mais sobre a vida.

* Christiane Marcondes é jornalista e membro da equipe do Vermelho