É fácil pensar como seria diferente a História (e a vida de hoje) se Beethoven tivesse nascido já surdo, se Picasso tivesse vivido não os seus prolixos mais de 90 anos mas uma qualquer doença infantil o tivesse ceifado, se Einstein se tivesse deixado ficar por Munique sem ter ido juntar-se à família em Itália, se Lénine tivesse sido assassinado como o irmão foi, se Hitler tivesse continuado a pintar anódinas tabuletas, se Salazar tivesse batido as botas durante a pneumónica, se Cunhal tivesse tido o mesmo criminoso fim de Militão Ribeiro, que com ele fora preso e, como ele, torturado.

Todos os exemplos que se possa arrolar, e seriam infindáveis, não anulam duas verificações para nós essenciais.

Uma, a de que todos e cada um dos seres humanos têm um contributo para a História, seu e insubstituível, e que não só alguns estão predestinados a serem influentes, por mais determinante e marcante que a sua dedada seja, por mais forte que seja a sua impressão digital.

Outra, a de que não há ser humano isolado, sozinho no espaço e no tempo em que vive, a de que cada um e todosos seres humanos são um elo, são parte de uma massa humana que lhe é contemporânea, são como que um tijolo de um muro que vinha sendo construído e quecontinuará em construção, integrando esse tijolo, minúsculo ou enorme, que cada um/todos os seres humanos é/somos.

O contributo de Marx

Qual o contributo essencial, imprescindível, (ou os contributos) de Marx para o marxismo, e para que este de Marx continue a merecer a raiz do nome e a matriz?

O próprio Marx responde, e deve ser tarefa nossa procurar onde o diz e, com base nesse contributo essencial, tentar entender a realidade, tão diferente da de século e meio atrás, e tão igual no que é essencial e definidor das relações de produção.

Marx , em carta a Engels de 27 de Abril de 1867, escreveu que «o que há de melhor no meu livro (O Capital) e aí repousa toda a compreensão» foi ter encontrado, notrabalho, o seu carácter duplo, o dualismo que se exprime em valor de uso e em valor de troca, e ter tratado a mais-valia independentemente das formas particulares (lucro, rendas, juros, despesas) que viesse a tomar nas metamorfoses do capital que, como relação social, nelas se materializa; e acrescentava que «o estudo dessas formas particulares da mais-valia, quando confundido com o estudo da forma geral à maneira dos economistas clássicos, dá uma misturada informe», uma verdadeira salada como é possível traduzir…

E Marx confessou «ter suado as estopinhas para chegar àspróprias coisas, quer dizer, à sua conexão».

Chegar às próprias coisas, às suas conexões!, poderá ser considerado como uma formulação que serve para matriz do marxismo! Desde Marx, e do seu contributo para o marxismo. De que, evidentemente, se não pode prescindir. A partir de uma base teórica. Para que o contributo de Marxfoi, e continua a ser!, origem e avaliação.

Não como dogma. Sempre como ponto de partida.

Se não haveria marxismo sem Marx, há marxismo para além de Marx.

O contributo de Marx para o marxismo vai muito para além do tempo em que viveu. Porque Marx procurou, sobretudo, encontrar as dinâmicas da História da Humanidade, as raízes fundas dos comportamentos individuais e colectivos, através de um estudo do vivido até ao seu tempo, com uma base teórica em opções e conceitos histórico-filosóficos, construindo uma interpretação do passado capaz de ajudar a extrapolar para o tempo a ser vivido.

Marx e duas leis

Fixemo-nos em duas leis – se assim se pode chamar às dinâmicas sociais detectadas pela leitura marxista da História, a partir da análise do funcionamento do capitalismo, e do mecanismo da exploração da classe proprietária dos meios de produção apropriando a mais-valia criada pela classe proprietária da força de trabalho.

1ª – A composição orgânica do capital

A composição orgânica do capital tornou-se num dos pilares do pensamento marxista, e é-o porque, a partir da leitura marxista da História (materialismo histórico), reflecte a evolução do processo histórico, e porque, tratada como «lei», contribui decisivamente para a compreensão do(s) momento(s) histórico(s) e da sua dinâmica. A crescente parcela do capital constante (K) – trabalho cristalizado em meios de produção – relativamente ao capital variável (V) – trabalho vivo – no capital na sua forma-expressão de capital produtivo, não é, no entanto, uniforme e/ou fácil de detectar e compartimentar.

O que se verifica, nomeadamente, no que respeita à localização no espaço, e na divisão das fases de metamorfose do capital, do trabalho produtivo e dotrabalho não-produtivo, divisão que tem a maior relevância por ser do (e no) trabalho produtivo que nasce a mais-valia, logo a exploração, e, assim, o cerne do funcionamento da economia política do capitalismo.

2ª – A lei da baixa tendencial da taxa de lucro

(E logo uma hesitação, uma dúvida: como dizer, lei tendencial ou lei da baixa tendencial?!)

Ora, é a partir do trabalho, e do tratamento da mais-valianão confundida nas suas formas particulares, que, nos seus caboucos, o marxismo se constrói e se vai permanentemente construindo. A lei da baixa tendencial da taxa de lucrotem de ser vista como resultante (e peça) dessa construção, enquanto regularidade no funcionamento do capitalismo.

O disparado crescimento de K relativamente a V, na composição orgânica do capital, obriga a alterações no funcionamento do sistema para manter Df maior (sempre e mais) que D, e procura contrariar a tendência de menos MVdada a evolução da composição orgânica do capital, ainda que se procure aumentar a taxa de mais-valia, isto é a proporção do tempo de trabalho não pago pelo uso da mercadoria força de trabalho (como feriados e essas coisasc)

As formas (factores, dinâmicas ou contra-dinâmicas) de contrariar a tendência

Só no Livro Terceiro, cap. XV de O Capital (ainda não traduzido em português Avante!) aparecem arrolados os 5 «factores» (ou dinâmicas) que podem contrariar a baixa tendencial da taxa de lucro – 1) acréscimo da exploração do trabalho; 2) descida do salário abaixo do seu valor; 3) depreciação de elementos de K; 4) sobrepopulação relativa; 5) comércio externo – e só forçada e indirectamente se poderia encontrar a influência de formas que possa tomar o dinheiro, tendo em conta que o lucro (sendo diferente damais-valia) deriva da mais-valia enquanto resultante dotempo de trabalho necessário para a criação de valor.

Em que contexto foram elas definidas?

(abro aqui um parêntesec)

Ler Marx é ter acesso a uma lição de rigor e de modéstia. As vezes que Marx escreve ceteris paribus (tudo o mais constante) ilustram a preocupação de não fazer afirmações definitivas, pois as conclusões a que se chega num qualquer ramo ou área do conhecimento apenas são conclusões na condição de tudo o mais, exterior ao estudo feito, se manter inalterado.

Fecho o parêntese mas avanço com duas citações (ambas da página 124 do tomo IV do Livro segundo de O Capital) que muito esclarecem:

«Na consideração das formas universais do circuito e, em geral, em todo este Livro segundo, tomamos [o] dinheiro como dinheiro metálico, com exclusão do dinheiro simbólico, meros signos de valor que apenas formam uma especialidade de certos Estados, e [com exclusão] do dinheiro creditício, que ainda não está desenvolvido.»

«(…) Em primeiro lugar, isto é o curso histórico; [o] dinheiro creditício não desempenha nenhum papel, ou [um papel] apenas insignificante, na primeira época da produção capitalista. Em segundo lugar, a necessidade deste curso [histórico] é também teoricamente demonstrada pelo facto de que tudo o que de crítico acerca da circulação do dinheiro creditício foi desenvolvido por Tookee [e por outros] os obrigou sempre de novo a regressar à consideração de como a coisa havia de ser exposta na base da circulação meramente metálica.»

E na actual fase (nossa) do capitalismo?

Marx escreveu «na primeira época da produção capitalista» (na então – de Marx – actual fase do capitalismo).

Masc e na actual fase do capitalismo (nossa contemporânea), em que o dinheiro simbólico e o dinheiro creditício são relevantíssimos, são desmesuradamente relevantes?

Nega-se as leis, isto é, a realidade – sendo outra – faz com que leis anteriores percam a sua validade?

Há uma resposta do marxismo após Marx e o seu contributo?

Antes de mais, parece indispensável separar o que é essencial – as próprias coisas, as suas conexões, arelação social de que são cimento – daquilo que resulta da análise do funcionamento, a partir dessa base essencial. E essa base essencial assenta no carácter duplo do trabalho e no tratamento da mais-valia de maneira distinta das formas particulares que ela possa vir a ter no processo de metamorfoses do capital na sua expressão material, tendo sempre presente que o valor está ligado ao tempo de trabalho necessário e não à expressão em dinheiro que possa tomar.

A transformação do valor em preços-dinheiro

Tendo necessariamente que ficar para outras possíveis reflexões e notas a questão da «transformação dos valores em preços», sendo estes a expressão daqueles, nesta intervenção deve fixar-se o processo de circulação, sublinhando-se que todo ele é analisado em valor, e a partir do contributo que, com a definição do seu carácter dual, veio completar a abordagem de David Ricardo e outros clássicos.

Essa questão da transformação do valor em preços-dinheiro é da maior importância e permite dizer, em resumo insatisfatório, que há duas vias de abordagem do capitalismo na sua fase actual.

Uma, que decorre do funcionamento intrínseco ao capitalcomo relação social de produção, com a exploração dotrabalhador produtivo (cada vez mais colectivo) por apropriação da mais-valia a ser proporcionalmente menos possível, por crescente peso de K em relação a V, e está-se no domínio da exploração.

Outra, que se instala por alargamento desmesurado do circuito monetário-creditício, desligado da base material, e está-se na «financeirização» e no domínio da especulação, para compensar a tendencial queda de MV, mantendo ou travando a queda do lucro e da sua taxa, isto é, proporção relativamente ao capital-dinheiro inicial.

No entanto, no que pode ilustrar o seu contributo, Marxquando, «naquela análise», «na primeira época da produção capitalista», ao considerar «tudo o mais» como inalterado, não ignorou o que não estimou relevante para o que estava a ser analisado nessa crítica, naquele momento. Relativamente ao dinheiro, não o tomar em consideração a não ser enquanto metálico, ao analisar o funcionamento do processo de circulação, corresponde a que, naquela fase,Marx não considerava o dinheiro fictício, simbólico e/ou odinheiro creditício como relevantes.

O que não obsta a que se sublinhe que, da ediçãoCivilização Brasileira de O Capital. Livro Terceiro, se pode retirar, entre muitos outros excertos (pág. 510), que «se o sistema de crédito é o propulsor principal da superprodução e da especulação excessiva, acelera o desenvolvimento material das forças produtivas e a formação do mercado mundial. (Ao mesmo tempo,) o crédito acelera as erupções violentas (as crises), levando a um sistema puro e gigantesco de especulação e jogo», o que parece retratar fielmente a fase actual.

Uma 6.ª dinâmica (ou «factor»)
a juntar às 5 anteriores!

Na actual fase do capitalismo começou a prevalecer o dinheiro não-metálico, com injecção de dinheiro fictício,por via dos estados que reflectem a relação de forças na luta de classes, e de dinheiro creditício, através do sistema bancário imposto «dentro» do funcionamento do modo de produção. Assim se agrava a «financeirização» e a «desmaterialização» do circuito monetário criado para servir o circuito real, a circulação das «coisas» que satisfaçam as necessidades sociais. Por isso, para além dos «factores» que Marx identificou como procurando contrariar abaixa tendencial da taxa de lucro, é necessário ver comoe onde se encontrarão, no processo de circulação, formas de, sem alterar o que é intrínseco ao sistema, conseguir queDf seja superior a D, estando D já, e desde o início, necessariamente influenciado pelo dominante capital-dinheiro fictício e creditício.

É desta maneira que a especulação vem em socorro daexploração, que se concretiza pela apropriação de mais-valia, que está na génese e é o «alimento» do modo de produção capitalista. Continuando a constituir a sua essência. No entanto, a especulação, através da criação e do movimento de capital-dinheiro fictício e creditício, tem importância enormemente crescente. Não só em relação ao tempo de Marx, também muito mais perto, relativamente às três últimas décadas, desde a inconvertibilidade do dólar e a queda dos países socialistas europeus, em que essa importância acelerou vertiginosamente.

Se esse novo «factor» (o 6.º?) vem contrariar a baixa tendencial da taxa de lucro, e precariamente o consegue, também ele é fictício e efémero e, ao fim e ao resto, não representa mais do que uma outra forma de transferir mais-valia criada e apropriada, numa dinâmica de concentraçãoe centralização da «riqueza das nações» (como lhe chamava Adam Smith, que Marx tão bem estudou), «riqueza» que foi criada da única forma que o é, pelotrabalho realizado, através do valor de uso da força de trabalho.

A dramática alternativa, e sempre o último recurso do capitalismo, é a destruição de «riqueza» para mais a concentrarc

Com o complexo industrial-militar e as guerras sempre presentes e a Paz sempre em risco.

Em vez de negar as «leis», ou as regularidades que Marxformulou, em particular a da baixa tendencial da taxa de lucro, esta nova forma de a contrariar só a confirma e, confirmando-a, valoriza o contributo imensurável de Marxpara o marxismo, e faz deste a chave da compreensão do presente, a chave que pode ajudar a abrir o futuro.

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Fonte: Avante!