Quando se fala em receita keynesiana para enfrentar a atual crise financeira mundial, a direita a rejeita sob o argumento de que o déficit e a dívida pública devem ser contidos a qualquer custo, e nunca aumentados mesmo que para financiar a retomada, pois disso dependeria a recuperação da confiança do mercado em refinanciar os governos, especialmente em países, como os da área do euro, nos quais os tesouros nacionais estão desvinculados do banco central.

É importante entender isso em detalhe, pois o futuro da Europa e do mundo passa pelo equacionamento do jogo de interesses que está por trás dessa questão. Quando um país está em recessão, só existem três alternativas para sua recuperação: o estímulo ao consumo interno para estimular indiretamente o investimento e o emprego, o estimulo à demanda externa (exportações) ou uma ação pela lado da oferta, isto é, a facilitação e barateamento do crédito para favorecer diretamente o investimento.

A terceira dessas alternativa geralmente não funciona, como se sabe pelo menos desde a Grande Depressão dos anos 30: os empresários, diante de uma fraca demanda, deixam seu dinheiro nos bancos e não investem. É uma atitude racionalmente correta pois ninguém produz exclusivamente para as prateleiras. A expressão tradicionalmente usada para dar conta desse fenômeno é o “empoçamento” do dinheiro e do crédito no sistema financeiro. É o que está acontecendo neste momento nos países ricos.

Tanto o Fed nos Estados Unidos quanto o BCE na Europa estão colocando rios de dinheiro barato à disposição dos grandes bancos – 1,2 trilhão de dólares num caso, a 0,25% ao ano, e mais de 1,3 trilhão no caso europeu, a 1% – no suposto de que venham a emprestar ao sistema produtivo. Nada acontece. Os grandes bancos usam o dinheiro para especulação e arbitragem, não para empréstimos. Além disso, as grandes corporações americanas têm em caixa própria mais de US$ 2 trilhões que não investem.

Por que insistem nessa política que o Fed denomina eufemisticamente de“quantitative easing”, ou facilitação quantitativa? Existe apenas uma explicação: é uma forma de supostamente enfrentar a crise por meio de favorecimento aos poderosos. Do contrário, teriam que recorrer à política fiscal, implicando aumento dos gastos públicos, e esse processo significaria transferência de renda para os mais pobres mediante políticas públicas de favorecimento ao consumo, pelo menos no curto prazo.

Existe, contudo, uma esquerda ingênua que contesta a política keynesiana por supostamente favorecer o consumismo. Isso significa que uma política de estímulo fiscal teria de constituir-se diretamente em facilitação da demanda da parafernália de bens de consumo produzidos e comercializados na economia mediante a criação de necessidades artificiais. Paralelo a isso existe a ideia do crescimento zero, postulando uma ruptura radical com os padrões da economia de consumo atuais.

Trata-se de um contra-senso. Se a chave do estímulo de demanda está nas mãos do Estado, é óbvio que ele pode orientar essa demanda para onde quiser. Na realidade, só se pode reorientar de alguma forma o processo produtivo capitalista justamente quando o Estado se encontra sob o desafio de estimular a economia. Um exemplo é a busca de energia limpa sob estímulo estatal que se efetiva atualmente em todos os quadrantes do mundo, num processo global de reestruturação da oferta.

É nesse ponto que surge a escolha fundamental de economia política: para Keynes, na Grande Depressão, o objetivo imediato e inadiável era a restauração do emprego. O nome de sua obra clássica é “Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”. Havia nisso uma subordinação explícita das questões monetárias ao objetivo do emprego máximo, ou do pleno emprego. Nos tempos atuais, pelo que atestam as políticas monetárias europeia e americana, o objetivo não é preservar ou aumentar o emprego, mas preservar o ambiente favorável à alta finança.

No tempo de Keynes, o setor econômico mais suscetível à criação de emprego era o de infra-estrutura econômica. Sua obsessão em criar emprego era tanta, porém, que julgava defensável até mesmo o investimento público em obras inúteis, como enterrar notas de dinheiro e mandar os trabalhadores desenterrá-las, desde que com isso se criasse renda e emprego. Claro, o empregado é por sua vez um consumidor, e algum aumento de consumo surge na segunda derivada do estímulo fiscal.

Entretanto, o primeiro movimento de estímulo fiscal é um momento especial para reorientar os investimentos públicos numa economia capitalista. Investimentos em educação, saúde, previdência, ciência e tecnologia, assistência social, prevenção de efeitos de mudanças climáticas, são, todos eles, gastos públicos que, num momento de recessão, podem e devem ser aumentados como fins em si e como objetivos subsidiários ao aumento da demanda efetiva e do investimento privado.

Esse tipo de estímulo fiscal nada tem a ver com consumismo. Em essência, como já dito, é uma forma de reorientação de gastos públicos para fins sociais. Embora seja óbvio algum efeito sobre o aumento do consumo de bens privados, isso ocorrerá numa escala menor que a do consumo de bens públicos. E tem a vantagem de que pode ser adotada por um país sem risco de vazamento do investimento e da demanda para o exterior. Claro, no momento inicial, aumenta o déficit e a dívida pública. Mas não há receita efetiva para reduzir o déficit e a dívida pública a médio prazo que seu aumento no curto: é que dívida se paga com crescimento.

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Economista, professor de Economia Internacional da UEPB, co-autor, com o matemático Francisco Antonio Doria, do recém-lançado “O universo neoliberal em desencanto”, pela editora Civilização Brasileira. Este artigo é publicado também no site Rumos do Brasil e, às terças, no jornal carioca “Monitor Mercantil”.

Fonte: Carta Maior