Tudo começou no Axé Moi, de Porto Seguro, local descrito em seu próprio site como “complexo de lazer”, ou “a maior estrutura de praia do Brasil”. Gosto de imaginar que essa estrutura foi construída sobre areias onde o pessoal de Cabral pisou pela primeira vez em nossas terras. Pois bem, o Axé Moi produz espetáculos para entreter os turistas que visitam Porto Seguro. Sharon Acioly foi durante muito tempo a sacerdotisa da diversão no complexo, com várias funções, de cantora a animadora. Seu papel ali não era ser protagonista de uma obra de arte; ela precisava manter o público brincando sem parar. Para isso inventava jogos. Um deles virou febre nacional anos atrás. Sharon “pegou” uma brincadeira trazida para o litoral sul da Bahia por turistas universitários paulistas e mineiros e popularizou a “dança do quadrado”. Como o show não pode parar nem sobrevive com os hits da estação passada, ela criou um funk para funcionar como trilha sonora do momento em que as turistas sobem ao palco para conferir de perto, pele a pele, os dotes dos dançarinos. Esse funk, que pode ser conferido em dezenas de vídeos que viajantes publicam no YouTube como álbuns digitais de suas férias, tinha o refrão “ai se eu te pego”.

De passagem por Porto Seguro, Antônio Dyggs, produtor de baladas de Feira de Santana, foi conferir a animação do Axé Moi. Ficou com o “ai se eu te pego” na cabeça e resolveu transformar o funk num forró para ser gravado pela Os Meninos do Seu Zeh, uma das bandas (autoclassificada como “forró universitário pé de serra”) que empresaria. Apesar de ter ritmo arrastado, a música fez sucesso em várias cidades baianas, chamando a atenção de outras bandas de forró, que lançaram imediatamente suas regravações, cada vez mais animadas. Michel Teló só conheceu seu futuro hit mundial quando ele já fazia parte do repertório da Cangaia de Jegue e da Garota Safada (só para citar as mais conhecidas), botando o povo para dançar e cantar por todo o Nordeste. Antônio Dyggs acompanhava tudo maravilhado. Ele declarou para o site Nacola: “A sensação de ter uma composição sua tocada por mais de 50 bandas é fantástica. Arrepio-me cada vez que ouço o ‘Ai se eu te pego’ sendo tocado em forró, pagode, salsa, mambo, funk, arrocha etc.”

Essa é a característica mais evidente da nossa atual cena musical popular brasileira. Todos os sucessos são rapidamente rearranjados para todos os ritmos. A maior parte dos grupos atua como bandas de bailes: não se prende a um repertório próprio e toca todos os hits do momento. Tudo é funcional. Os músicos estão ali para animar a balada, como fazia Sharon Acioly no Axé Moi.

Em conversa comigo, Chimbinha, guitarrista e maestro da Banda Calypso, uma vez reclamou da nova situação, já considerando obsoleto o modelo de negócio alternativo que tinha desenvolvido para driblar a crise da indústria fonográfica. Para ele, o CD era cartão de visitas, atraindo público para os shows. O problema é que nem todas as canções desses CDs faziam sucesso. Então como competir com os CDs lançados por bandas novas, só com os sucessos dos outros? Chimbinha temia também que a nova situação acabasse por impedir a popularização de artistas em início de carreira. Se os novatos lançassem qualquer canção com cheiro de hit, as bandas mais populares logo produziriam suas regravações, fazendo sucesso em seu lugar. Certamente isso é problema. Mas não há volta: a realidade atropela todo mundo, e daqui a pouco uma outra maneira de chegar ao estrelato vai aparecer, derrubando a que predomina no momento. Talvez ninguém mais consiga ter carreira longa e estável fazendo/tocando música. Tudo pode ficar espantosamente efêmero ou veloz, como neutrinos mais rápidos (há controvérsia…) que a luz.

Outra noção que parecia sólida, mas está cada vez mais velozmente se desmanchando no ar, é a de composição. Todo mundo se lembra ainda de “Minha mulher não deixa não”, o hit do verão passado? A origem do refrão parece ter sido uma música infantil lançada décadas atrás por uma gravadora pernambucana. E isso virou problema menor diante da avalanche de vídeos publicados na internet, com gente fazendo suas versões (claro que não autorizadas) do sucesso, um respondendo ao outro de forma não centralizada, numa conversa que não tem fim. Volto a dizer: era assim no “folclore”. Um grupo “pegava” a invenção do outro em regime de transformação contínua, sem dono. Tudo caía na brincadeira. E os participantes eram chamados de brincantes, e não de autores. Importava o processo, o remix eterno, não o produto acabado, de um só dono. Como era gostoso o domínio público. Era? É, será: o domínio público é nosso destino e inapelável futura cibercondição.

Fonte: O Globo