Espanha, Portugal, Irlanda e Grécia se esbaldaram na abundância de crédito destinado ao mercado imobiliário e encaminhado aos desvarios do consumo. Essa pletora de financiamentos a juros alemães e prazos idem foi generosamente concedida por bancos franceses, alemães, ingleses e italianos. Na euforia do ciclo de crédito, os austeros germânicos lavaram a égua: acumularam pingues saldos comerciais contra os "gastadores e preguiçosos" (sic) do sul da Europa.

A crise impôs aos governos manobras desesperadas de transformação de passivos privados em débitos públicos. Os bancos centrais – uns mais, outros menos – cuidaram de absorver ativos privados em seus balanços, enquanto os Tesouros se incumbiam da emissão generosa de títulos públicos para sustentar a carteira dos bancos privados. Não por acaso, os lucros dos bancos estão parrudos, turbinados urbi et orbi pelas operações de tesouraria. É quase impossível resistir à tentação de praguejar contra os fautores de mais um episódio escandaloso de socialização de prejuízos e privatização dos lucros.

A crise leva ao limite a defesa da riqueza já existente. Nenhuma perversidade. É a lógica do dinheiro e do crédito
Por essas e outras, Martin Wolf, o celebrado articulista do "Financial Times", está preocupado com a evolução do endividamento público e dos déficits fiscais nos países submetidos às políticas de austeridade.

Ele dizia, no alvorecer da crise financeira: "Os déficits fiscais são imagens especulares dos superávits do setor privado. Além disso, a relação de causalidade é do segundo para o primeiro. As condições necessárias para um retorno à saúde fiscal e econômica são uma recuperação do consumo (e do investimento privados), um aumento enorme das exportações líquidas, ou, idealmente, ambas as coisas. Não se trata simplesmente de reduzir o déficit fiscal; trata-se de reduzir o déficit fiscal e sustentar o crescimento."

Wolf proclama em seu artigo publicado em 29 de junho no Valor: "Só austeridade traz o risco de desastre". O articulista do "Financial Times" reconhece que a normalização da política fiscal e monetária é necessária. "Mas é impossível eliminar déficits fiscais estruturais até que se complete o ajuste do setor privado ou até que vejamos grandes mudanças nos desequilíbrios externos."

Em uma crise como a atual, a avaliação da riqueza (as expectativas de longo prazo) e a incerteza radical (não apenas o risco) bloqueiam os novos fluxos de gasto. Os empresários e os consumidores privados se acautelam em suas decisões de produção, consumo e investimento diante da incerteza em que estão mergulhados. Esse é o estado que contrasta com o de "expectativas convencionais": nele os agentes se comportam como se a incerteza não existisse e como se o presente constituísse a melhor avaliação do futuro.

Keynes procurou demonstrar que, em uma situação de ruptura das expectativas, torna-se aguda a contradição entre o enriquecimento privado e a criação da nova riqueza para a sociedade (crescimento das inversões em capital real). A crise leva ao limite a defesa da riqueza já existente. Os administradores da riqueza líquida e controladores do crédito buscam refúgio em ativos mais confiáveis, deixando à mingua os que, nos últimos meses, lhes concederam taxas de juros de lamber os beiços. Nenhuma perversidade, apenas a lógica do dinheiro e do crédito.

Desgraçadamente para os adeptos do keynesianismo hidráulico, as políticas de geração de déficit e de criação de nova dívida pública naufragam nas profundezas das expectativas deprimidas, insensíveis aos estímulos fiscais e monetários.

O multiplicador de renda e emprego não funciona. Particularmente nas economias localizadas no sul da Europa, o desequilíbrio fiscal torna-se crônico e crescente. O aumento inevitável do débito público na composição da carteira dos bancos e demais instituições financeiras agrava a desconfiança e aproxima os governos da insolvência. Diante de antecipações pessimistas do setor privado, o déficit do governo se agiganta: a queda da produção, do emprego, da renda e, finalmente, da receita fiscal. Sendo assim, a crise não é superada, mas se transfigura de crise da finança privada em crise financeira do Estado.

Nos próximos meses, a crise grega vai caminhar no ritmo ditado pelo ceticismo que, diga-se, tomou conta dos bastidores onde circulam as reais avaliações dos controladores do crédito. São sombrias as perspectivas que se desenham para o povo da Hélade. Há sinais de que os senhores da finança – salvos pela vigorosa intervenção dos governos – já consideram insustentáveis a trajetória do déficit fiscal e da dívida dos gregos, a despeito das promessas de cortes de gastos, privatizações e outras bagatelas típicas da miopia contemporânea.

A desconfiança privada atinge a fundo a soberania estatal, comprometendo a legitimidade do Estado como gestor da moeda e da dívida pública. A visão dolorosa do desastre social e econômico produzido pela sabedoria dos insensatos pode levar à tentação de cair fora do euro, desvalorizar o dracma e consequentemente a dívida, gesto de desespero tão enlouquecido quanto a austeridade que pretendem lhe impor. Nós os, latino-americanos conhecemos bem esse ato da tragédia.

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Fonte: Valor Econômico