Um homem barbudo saúda o visitante no saguão do apartamento de Beth- Carvalho, num condomínio na praia de São Conrado, no Rio. É Che Guevara, herói e “paixão” da sambista na juventude, na vida adulta e na maturidade. Juntos, aquele quadro no saguão e o confortável condomínio com vista para o mar resumem parte substancial da história da menina de Ipanema que abdicou da bossa nova para, mulher e mãe, amamentar o samba “de raiz” dos morros cariocas, os partidos altos do bloco Cacique de Ramos, o pagode das fímbrias de São Paulo.

Há pouco, a caixa de CDs Primeiras Andanças trouxe de volta à tona a Beth pré-sambista, que no intervalo 1966-1971 cantava bossa nova, samba-jazz, canção de protesto, MPB de festival, toada moderna, forró-soul… Só a partir de 1.800 Colinas e Maior É Deus (1973), o samba consumou-se de vez. Contra as correntes hegemônicas do massacre ideológico chamado “despolitização”, a herdeira “classe média” do cruzamento entre uma família portuguesa e uma nordestina afirma que o protesto é seu veículo, e que em música o samba é o melhor veículo brasileiro para protestar.

“Cantar samba já é um ato político, porque é a música do povo”, argumenta. “Gosto de política, porque é a vida da gente. Não entendo a pessoa que diz ‘sou apolítico’. Como é possível?”, pergunta, com um par de providenciais muletas mantido junto ao corpo. Um dos sonhos acalentados envolve sair provisoriamente do samba para dedicar um disco à música latino-americana, de Mercedes Sosa, Atahualpa Yupanqui, Silvio Rodriguez, Pablo Milanés. “Los Hermanos (de Yupanqui) é uma das músicas mais lindas do mundo.”

Beth descreve como uma das experiências que mudaram sua vida o show Opinião, levado aos palcos em 1966, com Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale. “Era uma menina burguesa fazendo show com um sambista carioca e um caminhoneiro nordestino. Vi mais de 20 vezes, com Nara, com Maria Bethânia, com Marília Medalha. Aquela mulher (Bethânia) é um carcará, aquilo levanta defunto”, diz. “Eu hoje não estou contra o governo brasileiro, mas a gente precisou daquilo tudo para chegar ao momento de agora. O show da bomba no Riocentro (em 1981) ia matar a música popular brasileira, porque estava todo mundo lá. Eu estava lá, com leite derramando do peito.”

A Beth Carvalho que subirá ao palco paulistano do HSBC Brasil na sexta 15 de abril é mulher sofrida, saída de um ano e meio de privação. Passou esse período literalmente deitada, 24 horas por dia, por conta de problemas de coluna, duas cirurgias, uma infecção hospitalar e alguns parafusos colocados para corrigir uma fissura no sacro. “Meu banho ficou famoso”, ri, com astral restaurado, ou melhor, nunca perdido, segundo garante. “Nunca perdi a esperança. Enquanto não afeta a voz você existe. Minha casa virou um hospital, mas também uma festa. Teve candomblé, umbanda, Igreja Católica, todas as religiões- foram bem-vindas para ajudar.”

Ainda em lento processo de recuperação, levantou-se em outubro de 2010 para ir prestar apoio a Dilma Rousseff no encontro da então candidata com artistas no Teatro Casa Grande, no Rio. “Estava ainda de cadeira de rodas. Fui porque fiz questão de ir. Foi muito forte aquele momento, e ainda cantei ‘deixa a Dilma me levar, Dilma leva eu’”, orgulha-se.

Política à parte, é preciso dissipar ideo-logias para ver e ouvir formatos e pulos estéticos por trás das mesmas palavras de ordem de sempre. Beth amou João Gilberto na boca do lobo e, jovem, cantou bossa nova em apartamentos com privadas de tampo de ouro em Ipanema. “Acho que conheço todos os apartamentos milionários da Avenida Vieira Souto. Mas eu ia e cantava o Samba do Desenvolvido (tema do CPC da UNE)”, gargalha. Ex-garota de Ipanema, reencontrou em Almir Guineto, Jorge Aragão, Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho e Jovelina Pérola Negra a sofisticação que encontrara antes em Nelson Cavaquinho e Cartola, em Tom Jobim e João Gilberto, em Clementina de Jesus, Elizeth Cardoso e Nara Leão. “A parte harmônica dos sambas do Cacique de Ramos me surpreendiam. O partido alto é o repente carioca, e aqueles acordes cheios de aranha são tão sofisticados quanto os da bossa nova.” Ah, mas deixa o “senso estético” para lá, que a bossa é branca, o pagode é negro e Beth Carvalho é a tal.

“Nas rodas de bossa nova todo mundo era tímido, minimalista. Eu não era”, diverte-se, recordando que nasceu no bairro da Gamboa, berço do samba, por licença poética (“a maternidade era lá, mas a família morava no Catete”) e que frequentou o balneário de Ramos muito antes do famoso “piscinão” e mesmo do Cacique: “Tomei banho lá, a praia era limpa. Era chique”. Enquanto a bossa se refugiava nos apartamentos, ela corria atrás do samba, com entusiasmo cada vez maior. “Eu nunca tive medo nenhum do povo. Ao contrário, eu tinha era identidade.”

Se hoje Beth Carvalho é sinônimo de Saco de Feijão (1977), Vou Festejar, Goiabada Cascão (1978), Coisinha do Pai (1978), A Chuva Cai, Rochedo (1980) e Camarão Que Dorme a Onda Leva (1983), houve tempos mais imprecisos em que MPB universitária e “toada moderna” eram seus modos de expressão. Fez história nos festivais com Andança (1968), integrando um grupo transitório e desorganizado que se esparramaria da malandragem de Wilson Simonal ao Clube da Esquina de Milton Nascimento (é dele o violão na versão de Beth para Sentinela, de 1969) e ao samba-soul “popificado” de Marcos Valle. “Achava linda a toada moderna, ou forró-soul, como chamavam. Acho até hoje.”

Beth sempre foi a mais purista entre as cantoras de samba, cujos sucessos abarrotaram os cofres das gravadoras nos anos 1970, principalmente Clara Nunes, Elza Soares e Alcione. “Eu sou a que menos mistura”, admite. “Adoro muitos estilos de música, mas no samba tem tanta coisa…” A relação de lealdade com o gênero não a salvou de passar dissabores como os de 2007, quando, já com problemas de saúde, entrou em conflito com a direção da Mangueira e não pôde desfilar em carro alegórico na escola de samba da vida inteira.

A mágoa só se desfez em 2010, quando o novo presidente da Mangueira, Ivo Meirelles, veio até ela pedir desculpas oficiais pelo que houve. “Foi uma apoteose”, alegra-se, ao relatar o desfile de volta neste 2011, em cadeira de rodas. Ela não estabelece nenhuma ligação entre as duas coisas, mas a desavença com a escola de Cartola e Nelson Cavaquinho correspondeu ao período em que a coluna vertebral a traiu, assim como a fase de recuperação coincide com a volta à avenida e, agora, aos palcos. Ela é o samba, sim, senhora.

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Fonte: CartaCapital