Contra todos os conselhos, fui ao Bahrein para testemunhar em primeira mão os confrontos entre as autoridades monárquicas e os milhares de manifestantes que saíram à rua naquele emirado.

Demorei algum tempo até apanhar um táxi, isto porque os bloqueios têm desencorajado a circulação de automóveis. Passámos por ruas estranhamente desertas e atravessámos sem dificuldade dois bloqueios de estrada improvisados e guardados por shebab – os “rapazes” do “povo”.

[Nota do tradutor: alusão aos jovens líbios que têm integrado as forças irregulares que combatem o exército leal a Khadafi].

O jovem condutor do meu táxi andava entusiasmado com os protestos e não perdeu a oportunidade de me explicar que os mesmos eram pacíficos e que não eram motivados pelo sectarismo existente entre sunitas e xiitas – precisamente o pretexto que o regime invocou para justificar o controlo da situação.

Ao aproximarmo-nos da rotunda da Pérola – o epicentro do protesto –, perguntei-lhe se seria arriscado eu ir lá. Assegurou-me que eu estaria em segurança e que encontraria famílias inteiras – inclusive mulheres e crianças – que haviam ali acampado pacificamente. E estavam ali porque a família Al Khalifa não consegue convencê-las de que é sincera quando promete reformas políticas.

A oposição, que integra o partido xiita Wifaq e outros grupos políticos, recusou um encontro com o príncipe herdeiro e insistiu na necessidade de um gesto de boa vontade por parte dos governantes antes de qualquer negociação: a aceitação, por exemplo, de um comité de revisão constitucional escolhido pela oposição.

O rei, em vez disso, tomou a decisão extremamente provocatória de pedir a intervenção de tropas estrangeiras – a maior parte das quais oriundas dos países do Conselho de Cooperação do Golfo Pérsico (Gulf Cooperation Council), o qual constitui o “escudo peninsular” saudita. Assim sendo, os protestos continuaram.

O meu condutor parecia optimista em relação à capacidade do “poder popular” democratizar o Bahrein, à semelhança do que aconteceu na Tunísia e no Egipto.

Não podia estar mais equivocado…

Na manhã seguinte, pouco depois das seis da manhã, olhei pela janela do meu quarto de hotel na direcção do terreno quase vazio junto à rotunda da Pérola. A repressão começara. Pude ver uma linha ininterrupta de veículos blindados de transporte de tropas, estrada abaixo, a aproximar-se da rotunda. Contei-os, eram cerca de trinta. Quatro helicópteros sobrevoavam aquela zona, um quinto aparelho vigiava a maior altitude. Logo de seguida pude ver colunas de fumo que se desprendiam, alvas e negras, por detrás e de entre os edifícios das vizinhanças, sinal aparente de que as tendas dos manifestantes haviam sido incendiadas.

Uma hora depois, vi uma coluna de fumo gigantesca e negra a crescer no céu: embora não pudesse ver as forças locais, e sauditas, a atacar os manifestantes (dois mortos e muitos feridos) e a incendiar as tendas.

Os graves confrontos na ilha de Sitra, e noutros pontos do país, causaram três mortos. O complexo hospitalar de Salmaniyya foi cercado pelos militares e o trânsito de ambulâncias interrompido.

Um amigo meu, do Bahrein, não pôde conter a emoção ao descrever-me o modo como alguns membros da sua família extensa, oriundos das aldeias em redor de Manama, viram as suas casas arrombadas e destruídas por bandos ligados às organizações de segurança interna.

Vergonha e humilhação – são estas as palavras que emprega para descrever o que sentiu quando soube que a polícia havia reprimido uma manifestação pacífica que decorria no campus da Universidade do Bahrein. As instalações da organização não sectária e centrista Waad foram vandalizadas e incendiadas.

Justificar a brutalidade

Parece-nos bastante claro que a opção estratégica das autoridades é a força e não a negociação.

Eis como justificam a brutalidade: o Bahrein não vai trilhar o caminho percorrido pela Tunísia e pelo Egipto. A oposição, ao recusar um encontro com o príncipe herdeiro, perdeu uma oportunidade histórica para negociar pacificamente as reformas exigidas. Em vez disso, alega o regime, a mesma oposição ocupou ilegalmente o espaço público, intimidou os cidadãos comuns e prejudicou, gravosamente, a economia do país. Por outro lado, a intervenção das forças militares do Conselho de Cooperação do Golfo Pérsico, sob convite das autoridades, é perfeitamente legal à luz do tratado de segurança colectiva celebrado no passado. A perda de vidas humanas é lamentável, mas a repressão é necessária a fim de prevenir a continuação do caos – o qual seria aproveitado pelo Irão. O país voltará ao normal assim que os “sabotadores” forem esmagados.

A oposição, porém, tem boas razões para rejeitar este arrazoado: a família Al Khalifa, a partir dos anos cinquenta, pôs de lado todas as reivindicações populares em torno de uma maior participação e transparência política; as reformas constitucionais prometidas nos anos setenta não foram cumpridas; o actual monarca prometeu reformas ao assumir o trono (em 2002), mas desde então nada aconteceu.

Ao invés, os membros da família real, que controlam os principais cargos do governo, usaram o seu poder para se engrandecerem – em todos os sentidos, incluindo o imobiliário, por exemplo – e para atraírem ao país e naturalizarem milhares de sunitas, com o propósito de reduzir o peso demográfico da população xiita.

Há demasiado poder e privilégios em causa para que a família real e a sua clientela os arrisquem numa abertura política.

Juntando-se ao “clube”

Quanto ao envolvimento das forças do Conselho de Cooperação do Golfo Pérsico, a oposição argumenta que tal intervenção é possível apenas em caso de uma invasão militar estrangeira e jamais em caso de um conflito interno.

A repressão marca o ascendente da linha-dura monárquica, que é liderada pelo chefe da corte, Khalid Bin Ahmad Al Khalifa, pelo chefe de segurança nacional, Abdullah Bin Muhammad Al Khalifa, e, finalmente, pelo primeiro-ministro, Khalifa bin Salman Al Khalifa. O príncipe herdeiro, Salman bin Hamad Al Khalifa, é o líder da ala moderada do regime; posição que não tem par na orientação política da sua família – é dito que o rei, Hamad bin Isa Al Khalifa, estará algures entre estas duas facções.

Não causa espanto, portanto, que uma das principais reivindicações da oposição, e pré-condição para as negociações formais, seja a demissão do primeiro-ministro (que é tio do rei), o qual exerce funções desde 1971. Parece evidente, também, face à repressão, que esta exigência não será acatada: o tio do rei adquiriu demasiada antiguidade.

Acresce ainda o factor saudita: os dirigentes sauditas – liderados pelo príncipe Nayef bin Abdel-Aziz, político da linha-dura, vice-primeiro-ministro e detentor da pasta do interior – têm insistido na necessidade de esmagar os protestos, uma vez que o efeito simbólico do enfraquecimento – já para não falar do fim – da dinastia Al Khalifa poderia pôr em perigo o interesse nacional da Arábia Saudita e desencadear fortes protestos xiitas na província oriental deste reino – precisamente onde se extrai a maior parte do seu petróleo.

Mas este temor não se restringe à Arábia Saudita: todo o “clube” de monarcas do Conselho de Cooperação do Golfo Pérsico teme, aparentemente, o seu próprio futuro. Por outro lado, não é difícil acreditar que os Estados Unidos da América tenham dado luz verde, ou pelo menos amarela, à repressão entretanto desencadeada.

O Secretário de Estado da Defesa dos EUA, Robert Gates, encontrou-se com os dirigentes do Bahrein na véspera de as forças militares sauditas e dos Emirados Árabes Unidos terem percorrido a ponte que liga a península arábica à ilha do Bahrein.

É verdade que Gates apelou aos Al Khalifa no sentido de estes darem mais do que “passos de bebé” na direcção de reformas políticas. Mas se a bússola da diplomacia internacional é o realismo, então o objectivo principal do encontro pode muito bem ter sido a coordenação do apoio militar do Conselho de Cooperação do Golfo Pérsico ao monarca em apuros, a fim de evitar que o Irão ganhe influência no Bahrein. Irá a repressão restaurar a estabilidade, a legitimidade e a prosperidade, como quer acreditar o governo do Bahrein?

Apoiar os Khalifas

No dia seguinte há uma calma tensa. É decretado um recolher obrigatório parcial. As lojas continuam fechadas e as pessoas permanecem em casa. Os tanques e os veículos blindados estão estacionados junto aos principais cruzamentos. Vi três jovens encostados à parede, de mãos atadas atrás das costas, num dos checkpoints guardados por soldados mascarados. Hoje foram presos seis líderes da oposição.

Os xiitas sentem-se particularmente humilhados. A situação não voltará à normalidade apesar do controlo exercido sobre os manifestantes. Seria necessária uma solução política. Mais difícil, porém, será encetar-se um diálogo com a oposição organizada, a qual não está disposta a dialogar com um regime sangrento.

Oito organizações da sociedade civil do Bahrein emitiram um apelo à comunidade internacional no qual pedem que se exerça pressão sobre as autoridades. É de esperar, portanto, que o exercício directo do poder por parte do rei se prolongue sem fim à vista, sob o pretexto de um estado de emergência que poderá ser prorrogado indefinidamente – tal como aconteceu no passado.

Neste contexto, não podemos descartar a possibilidade de membros da oposição radicalizados optarem pela violência, como a sabotagem, o atentado a tiro e à bomba, etc. As autoridades enfrentarão igualmente a tarefa dantesca de retomar a actividade económica, pois a tensão política contínua não atrairá o investimento nem dinamizará a actividade bancária.

A monarquia dos Al Khalifa tornar-se-á então mais dependente da ajuda financeira que a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos possam prestar. O Irão poderá envolver-se mais na situação do Bahrein, provavelmente através do financiamento clandestino de grupos de resistência. As objecções do Irão à “ocupação estrangeira” têm sido, até aqui, somente retóricas; mas tal poderá mudar se o Bahrein atravessar um longo período de domínio político absoluto sem solução.

Os Al Khalifa têm marginalizado sucessivamente todos os esforços da sociedade civil no sentido de reformar a Constituição e democratizar o emirado. Poderão continuar a fazê-lo? O mundo árabe, como os últimos três meses têm demonstrado, é agora muito mais politizado e os hábitos de deferência perante os regimes autoritários foram abolidos.

Michael C. Hudson é professor de Relações Internacionais e Governação, e professor Seif Ghobash de estudos árabes, na Universidade de Georgetown (EUA). Actualmente preside ao Instituto de Estudos do Médio Oriente da Universidade Nacional de Singapura e escreveu, editou e participou em muitos livros, entre os quais: Middle East Dilemma: The Politics and Economics of Arab Integration (pela Columbia University Press), Arab Politics: The Search for Legitimacy (pela Yale University Press) e The Precarious Republic: Political Modernization in Lebanon (pela Random House).

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Publicado originalmente na Al Jazira

Tradução de Pedro Sena para o Esquerda.net

Fonte: Esquerda.net