Não haverá dia em que me esqueça desta aventura cavalariça.

Nossa missão era ir até o Urutu, o mais elevado dos morros e que serviu de base de operações militares contra a insurgência guerrilheira araguaiana.

Toda a história do levante em armas passa pelos Martírios e há muito, dizem haver lugares secretos, cavernas secretas, onde os combatentes nos esperam para que possamos continuar contando suas vidas.

A imensa cadeia que se debruça sobre o rio é conhecida desde antes das bandeiras de Bartolomeu Bueno da Silva, pai e filho, os Anhangüeras.

Aqueles sertanistas, apresadores de índios, que depois se transformaram em mineradores, buscavam as minas do ouro, o mais nobre dos metais, e os diamantes dos Martírios. A lenda prosperou desde fins de 1500 através dos relatos dos primeiros portugueses e franceses que estiveram na remota região. Sabe-se que Daniel de La Touche, fundador de São Luís esteve em 1593 atravessando as pontiagudas cachoeiras de Santa Izabel, no baixo Araguaia.

A bandeira dos Anhagüeras cruzou, por três anos os segredos de vastas regiões brasileiras, costurando a nacionalidade, até a lendária montanha de riquezas que atiçou a cobiça e a imaginação dos brasileiros, ainda um povo em formação, nas lonjuras daqueles séculos XVI, XVII e XVIII.
Aqueles sertanistas, brancos e índios, fundaram vilas e arraiais.

Aqueles paulistas singraram rios e matas, palmilharam o alto sertão brasileiro para encontrar o curso do Rio Vermelho até o imemorial encontro com os Goiá. Depararam-se com índias que estavam ricamente adornadas de ouro e estas não revelaram, aos sertanistas, a procedência das chapas reluzentes do fino metal. Sabe-se que Bartolomeu Bueno, o pai, pôs fogo em aguardente e ameaçou a aldeia, ameaçou queimar rios, bichos, matas e fontes para conseguir o ouro e a localização geográfica de tão opulenta riqueza. É por isso que Anhangüera quer dizer, em tupi, diabo velho.

Naquele dia perdido de 2009, eu refletia sobre aqueles sertões e em minha mente vinha a imagem dos diamantes, em descanso nas águas verdes e rasas, deslumbrando os aventureiros passadistas.

Naquele dia, por todo o dia, o Beca, camponês barbaramente torturado pela repressão política, ia cantando as ladainhas da festa do divino. Como numa reza, murmurando, ia ligeiramente a minha frente, evocando um mantra de proteção para os santos que estão entre nós e que parecem saber das agonias deste Brasil profundo e desconhecido.

Mais ligeiramente à nossa frente seguia Antônio, filho dos galegos, vaqueiro desconfiado e silencioso que parecia ter saído de um cordel que faz morada em toda a civilização do couro. Nossa empreitada parecia ter os elementos do armorial, de Suassuna, porque éramos os três, cavalariços destes tempos, e subíamos com nossos brazões e estandartes percorrendo as cachoeiras, escarpadas e precipícios.

É possível, percebo agora, tocar a natureza do vento agreste com as mãos de quem ouve e sente o mais brasileiro das gentes brasileiras.

Aqueles que seguiram comigo são, agora compreendo melhor Darcy Ribeiro, como pré-brasileiros porque suas consciências e tudo que há neles, tudo, é a superação das adversidades. São isso porque não podem ser aquilo e também não pretendem viver para todo o sempre a vida que lhes foi destinada. Tal humanidade é a humanidade do meu país.

Aquele dia sempre estará diante de meus olhos porque são dias em que a gente luta muito, e uma profusão de sentimentos vai fazendo-nos amar cada pedra do caminho, cada pássaro nas alturas, cada casa de taipa dos recônditos que se entranham, silenciosos, em nossa própria carne.

Ali, em plena Serra dos Martírios, pude conhecer uma escola. Um verdadeiro paredão rodeia aquela pequena escola, um vento úmido e generoso soprava sobre os viajantes. A imensidão daquela escola parecia se confundir com os elementos de toda a natureza.

Ali estudam meninos e meninas que vieram depois de Anhangüera, depois dos insurgentes araguaianos, depois das botas dos tiranos. É impressionante como a infância resiste em condições em que o obscurantismo poderia ser norma. Se têm escola, defendo, há futuro. Sempre.

E meu coração fica mais tranqüilo porque há livros, poucos, é verdade.

Nosso destino era a casa do mateiro Antônio Preto e depois de horas, chegamos.

E pude auscultar o medo do lavrador diante desta minha tez urbana e o preto, morador daquelas alturas, daquele gigantesco sítio arqueológico, das “montanhas do Pará” como cantava o baiano Rosalindo nos romanços subversivos, não me falou nada, tampouco olhou em meus olhos, mesmo que eu me lançasse para dentro de suas pupilas lavradoras para recolher aquelas imagens de sangue e de sofrimento. Neste trabalho a gente faz isso, sempre isso.

O medo transformado em silêncio nos dá boas indicações e é preciso compreender os caminhos para que a voz brote, como planta central, para que o tempo se revele, para que os homens se revelem. E não é possível precisar tal nascimento, mas tudo exige decisão política. A fundamental decisão política para tirar do medo e das pedras, a narrativa da verdade.

A cada ladainha do Beca, um sopro sobre os cabelos e um anseio de contar as histórias proibidas há muito tempo, crônicas brutais que fazem do diabo velho sertanista, um passante injustiçado da memória nacional.

Em nossa descida de um dia inteiro, esgueirando pelos perigos desta vida, apenas a sensação do breve retorno, um dia, ao ventre dos Martírios.

Sinto que até as pedras, as mais diminutas pedras, querem falar.