Estados Unidos e União Europeia encolheram em termos relativos. Devem continuar a lutar com problemas financeiros pelos próximos quatro anos – talvez muito mais. O Japão não conseguiu se recuperar inteiramente desde o estouro de sua bolha no início dos anos 90, mesmo tendo a relativa vantagem de contar com um povo historicamente menos propenso à rebeldia.

O historiador estadunidense Andrew McCoy publicou um artigo no qual propõe quatro roteiros plausíveis, não necessariamente excludentes, pelos quais os EUA poderiam perder a hegemonia global de maneira súbita, antes de 2025: 1. Declínio econômico em razão da perda do status especial do dólar como moeda global de reserva, seguido da necessidade de corte de gastos militares. 2. Novo choque do petróleo, com árabes e iranianos exigindo pagamento em moedas que não o dólar e fazendo acordos militares com a China. 3. Catástrofe militar no Afeganistão e Golfo Pérsico, com retirada humilhante ante o Taleban ou fracasso em garantir o embarque de petróleo após embargo árabe. 4. Terceira guerra mundial, com a estrutura militar e informática dos EUA paralisada por ciberataque chinês.

Mesmo na ausência de eventos tão -espetaculares, McCoy acredita que a decadência relativa dos EUA será mais rápida que a “aterragem suave” até 2040 ou 2050 que muitos tendem a presumir. Entre 2020 e 2040, pode surgir um “oligopólio global” no qual potências ascendentes como China, Rússia, Índia e Brasil colaborariam com as decadentes, Reino Unido, Alemanha, Japão e EUA, numa dominação mundial ad hoc como a das potências imperialistas europeias do fim do século XIX. Outra possibilidade seria o aparecimento de hegemonias regionais, cada potência controlando sua região imediata.

A China ganha peso econômico e político de maneira cada vez mais espetacular, com um crescimento acelerado que deve fazer seu PIB ultrapassar o dos EUA, entre 2017 e 2027, dependendo da valorização ou não de sua moeda em relação ao dólar. Pelo critério de paridade de poder aquisitivo, pode alcançar os EUA já em 2012 e nos anos 2020 sua produção será comparável às dos EUA e da Europa Ocidental somadas, o que significa um consumo similar de energia e matérias-primas. Está também desenvolvendo conhecimento e poderio militar suficientes para fazer valer suas prioridades. Hoje produz por conta própria e exporta caças de última geração que até recentemente importava da Rússia e sua ciência rivaliza com a dos ocidentais em vários campos, inclusive astronáutica, física nuclear, software e engenharia de sistemas: o computador mais poderoso do mundo, hoje, é chinês.

A Rússia, apesar de ter uma economia volátil por causa de sua dependência excessiva da exportação de energia e matérias-primas e continuar a ser basicamente uma potência em crise, com dificuldades para manter adequadamente suas forças militares, também voltou a ser geopoliticamente respeitável. Está reconstituindo sua influência sobre a maior parte da antiga União Soviética e acaba de formar uma nova “União Eurasiana” com Belarus e o Cazaquistão. A prioridade estratégica da Otan hoje é evitar a convergência entre Moscou e Pequim e a consolidação da Organização para Cooperação de Xangai em uma verdadeira aliança militar, que poderia se tornar muito mais ameaçadora que o finado Pacto de Varsóvia.

A Índia cresce de maneira mais lenta, menos ruidosa e com menos pretensões aparentes a um papel geopolítico global, mas também detém armas nucleares, tem uma base considerável em pesquisa científica. A disputa de territórios e recursos hídricos a opõe à China, mas se mantiver o ritmo de desenvolvimento econômico, seu PIB ultrapassará o dos EUA por volta de 2050.

Ao mesmo tempo, o petróleo esgota-se, energia e matérias-primas se tornam mais escassas e o ambiente planetário é cada vez mais comprometido para além de sua capacidade de regeneração natural. As perspectivas globalistas de universalização do consumo estadunidense dos anos 90 se revelam insustentáveis: não há como o mundo inteiro continuar a crescer emulando o modelo ocidental, saqueando recursos finitos como se não houvesse amanhã.

A sobrevivência da civilização a longo prazo está em jogo e nesse jogo de soma zero – ao menos enquanto não surjam novas tecnologias ainda inimagináveis –, velhas e novas potências têm interesses opostos. As primeiras querem manter sua fatia tradicional dos recursos do mundo e do direito a poluir, enquanto as segundas pretendem, de maneira igualmente natural, igualar os padrões de consumo de suas populações aos dos paí-ses mais desenvolvidos. É inevitável que se choquem e o mais que se pode esperar é que isso aconteça da maneira mais negociada e menos violenta possível.

O cenário econômico-financeiro também não comporta mais a desregulamentação neoliberal dos anos 90. Todos os países, principalmente os do Norte, estão pagando caro demais pela farra financeira que endividou governos além de sua capacidade de pagamento para permitir que executivos de um punhado de grandes bancos continuassem em seus cargos, a receber bônus bilionários. A pressão por um mundo mais gerenciado e pelo encurtamento das rédeas- dos centros de poder do Norte também será cada vez mais irresistível.

Que papel o Brasil desempenhará nesse cenário de transição de um mundo unipolar de falsa abundância para um multipolar de escassez administrada? Se quiser ser, ele próprio, um desses polos, não deve se descuidar do crescimento econômico, da sustentabilidade ecológica e da estabilidade financeira, mas é pelo menos igualmente importante firmar-se como centro independente de inovação científica e tecnológica e ter recursos para defender sua soberania, inclusive sobre seus recursos marítimos.

Mais importante ainda é reforçar seus laços de solidariedade e confiança mútua com os países da América Latina, do Caribe e da África, para os quais o Brasil é uma referência e uma alternativa natural à qual devem recorrer para se contrapor tanto às pressões dos países ricos tradicionais – pelas quais todos eles tiveram de abrir mão da soberania e de recursos naturais no passado recente – quanto às pretensões da China e de outras potências asiáticas ascendentes a assumirem o controle de seus recursos, com investimentos que hoje são bem-vindos, mas que amanhã poderão se mostrar tão sufocantes quanto foram os dos poderes imperialistas do passado.

Sejam quais forem as pretensões do Brasil, porém, precisa fazer o possível para evitar que as tensões resultantes dessa recomposição do poder global sem precedentes resultem em guerras inúteis e violência desnecessária. Por suas dimensões, pelo grau de desenvolvimento de sua economia e por sua história e cultura, o Brasil está em posição de atuar como fiel da balança entre Ocidente e Oriente, entre Norte e Sul. Desperdiçar essa oportunidade seria uma falta com seu povo e a humanidade.

Por mais que tenha sido criticado e mesmo ridicularizado pela imprensa conservadora, o rumo da política externa nos últimos oito anos foi, em geral, acertado, como reconheceram os especialistas internacionais. Celso Amorim foi considerado o “melhor chanceler do mundo” pelo editor da Foreign Policy, David Rothkopf,- e este ano ficou em sexto lugar na lista dos cem pensadores globais mais importantes da mesma publicação, seguido por Ahmet Davutoglu, chanceler turco que tem conduzido política semelhante e foi seu parceiro na negociação com o Irã e ambos muito à frente de nomes como Angela Merkel e o casal Clinton. A mesma linha fez de Lula um dos líderes mais -populares do mundo – e o primeiro lugar na lista da revista Time das cem pessoas mais influentes do mundo, também de 2010.

Em time que está ganhando não se mexe, dizem. Naturalmente, novos nomes são indispensáveis, por necessidade da democracia e da renovação de quadros e lideranças, mas não se deve mudar o rumo, terá de ter cuidados e muita clareza do que se pretende. Até porque pelo menos os dois próximos anos, os primeiros do novo governo, devem ser particularmente críticos para o cenário internacional.

Dada a situação financeira europeia, há um sério risco de um segundo tempo da crise internacional ser pior que o primeiro. O capital político de todas as principais lideranças ocidentais, bem como sua munição financeira, foram praticamente esgotados pelas medidas tomadas desde 2008. O quadro político dos EUA, até a próxima eleição presidencial é de completo impasse, com risco de ser quebrado em favor do Tea Party e de uma figura como Sarah Palin. Muitos países europeus importantes caminham para situações semelhantes, inclusive a Itália, a Bélgica, a França e, talvez, a Alemanha.

É preciso redobrar o cuidado com posturas ingênuas, ainda mais agora que os vazamentos do WikiLeaks não mais nos deixam ignorar os reais interesses dos EUA por trás dos discursos moralistas. A única crítica aparente de Dilma à política externa dos anos Lula-Amorim, citada em entrevista ao Washington Post, referiu-se à abstenção do Brasil em uma resolução para expressar “grande preocupação” com o uso de apedrejamento, flagelação e amputação como punição no Irã. Disse que “não faria concessões” nessa questão.

Claro que é desejável abolir essas práticas, mas seria esse o verdadeiro propósito da moção? Se fosse, por que não foi estendida a países alinhados ao Ocidente que fazem o mesmo, como a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Paquistão? Por que não condenar o recurso à pena de morte em geral, inclusive aplicada no Ocidente? O método de execução – injeção letal – foi um tanto mais limpo e moderno, mas pouco antes da votação dessa resolução, os EUA executaram uma mulher com aparente deficiência mental, Teresa Lewis, por acusa-ção de cumplicidade no assassinato do marido análoga à que pesa sobre Sakineh Ashtiani, apesar dos protestos da Anistia Internacional e de outros defensores de direitos humanos.

Deve-se observar que na mesma entrevista, Dilma mostrou estar consciente de que os desastres do Iraque e do Afeganistão são a prova viva da falência da política de guerra e que o melhor caminho é construir a paz no Oriente Médio. A alternativa pode provocar muito mais sofrimento que qualquer crime do qual Saddam Hussein ou Mahmoud Ahmadinejad possam ser acusados.

Mensagens vazadas pelo WikiLeaks vindas da Itália, Austrália e Arábia Saudita deram eco às advertências nas quais Fidel Castro insiste há meses, de que são muito sérios tanto as pressões de Israel e das monarquias árabes por uma guerra contra o Irã quanto o risco de que esta degenere numa guerra nuclear. Somam-se a favor disso os interesses dos EUA em controlar fontes de gás e petróleo cada vez mais escassas, os da Europa em reduzir sua dependência energética da Rússia, os de Israel em eliminar um rival que dificilmente os atacará, mas encoraja a resistência de libaneses e palestinos e assusta israelenses a ponto de levar seu governo a temer a emigração de judeus.

Caso não se queira fazer concessões em uma política internacional de defesa ao respeito aos direitos humanos, isso também deve significar ser imparcial e criticar com a mesma veemência as práticas violentas e autoritárias de grandes potências como a China e os próprios Estados Unidos, bem como de seus aliados. Ou não passará de hipocrisia a serviço deste ou daquele interesse do momento, desmoralizando o próprio conceito de direitos humanos. Este início de século mostrou os perigos do idealismo de conveniência, para os quais as mesmas práticas que são aceitas em nome da soberania e do respeito às diferenças culturais, quando partem de governos aliados ou que não convém desafiar, passam a justificar condenações, embargos e invasões quando se trata do alvo da vez da estratégia das potências dominantes.

____________________________________________________________

Fonte: CartaCapital