Depois de ver Tropa de Elite III este fim de semana, transmitido ao vivo pela televisão diretamente da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão no Rio de Janeiro, resolvi ver Tropa de Elite II no cinema. Não havia conseguido ver o filme ainda por compromissos profissionais que me deixaram fora de circuito desde o seu lançamento e também, sinceramente, porque, pessoalmente, não estava com vontade de assistir filmes violentos. Mas fui cumprir a minha obrigação comigo mesma, já que a temática da violência está presente na minha profissão antes como repórter e agora como documentarista há quase duas décadas e justamente o que me impedia de ver o filme, até então, foram as viagens para divulgar um documentário que produzi ao longo de nove anos para discutir a prevenção à violência no Brasil. Como ficção, Tropa de Elite II tem todos os elementos – usados de forma competente – para atingir o sucesso e atrair o público, conforme já aconteceu. Mas é inevitável aprofundá-lo numa discussão política devido a sua verossimilhança narrativa com a realidade brasileira e até mesmo o seu possível impacto no país.

Tropa de Elite II quase não traz reflexões construtivas, mas sim nos cala. Não nos deixa pensar, só atira. O tema do surgimento das milícias e seu perigoso alastramento no mundo do crime organizado no Rio de Janeiro me parece ser o ponto mais forte do filme e que ainda é muito pouco abordado na mídia brasileira. Fora isso há uma tese apontada para novos alvos, mas exime do público sua real participação neste jogo da violência no Brasil. Mostra uma guerra que nos deixa como meros espectadores, isentos de responsabilidade e vítimas dos “bandidos pobres” e dos “bandidos ricos”. Um roteiro onde o bem e o mal mais uma vez são destacados como pólos entre o herói policial contra a banda pobre da corporação, agora ampliada para o sistema de segurança pública.

O personagem do ex-capitão Nascimento que passa a ser comandante geral do Bope e em seguida, subsecretário de inteligência, magnificamente representado por Wagner Moura, não me convence como defensor da sociedade. Ele é construído em alicerces contraditórios onde o filho é usado para humanizá-lo de forma altamente piegas até o final, onde o policial esmurra um político claramente por uma questão pessoal (já que seu filho está à beira da morte após ser vítima de um tiro em uma emboscada a mando do mesmo) e não por um amor à profissão ou pela defesa de seu país. Aliás, bater resolve? Ele não compactua com a corrupção diretamente, mas fora isso não há no filme nenhuma ação clara que o mostre como um policial comprometido com a função de proteção à sociedade. Ele me parece meramente um robô, violento, que lava as mãos na entrada de seus colegas no Bangu 1 que atiram depois dos presos rendidos – um robô a mercê de um discurso do filme que não para de falar e não deixa o público tirar suas próprias conclusões, respirar, discordar. O olhar do personagem é sedutor, mas não há no roteiro situações claras de real compromisso com o combate ao crime sem o uso da violência. Sempre a violência, aliás, está em primeiro plano. Tropa de Elite 2, assim como 1 é um filme feito em bases matemáticas, como se tudo funcionasse como uma equação simples: polícia corrupta+bandidos+políticos corruptos= sistema. E nós onde estamos em tudo isso?

O Brasil é um dos países com mais movimentos sociais do mundo. Estamos mudando. Há esperança num horizonte não muito distante. Os jovens das favelas, comunidades voltam a sonhar, mesmo que com barreiras ainda muito grandes que os separam do mundo onde há o mínimo de acesso à dignidade humana. Dois anos atrás, subindo morros cariocas na produção de um documentário para a BBC vi jovens carregando armas pesadas em becos e vendendo drogas, mas ao lado deles vi outros dispostos a tudo para agarrar à primeira oportunidade de vencer fora do mundo do crime. Os projetos do Programa de Aceleração ao Crescimento (PAC) que conheci, implantados em algumas favelas do Rio, que prometem associar à reurbanização urbana, a inclusão social e para isso têm levado para as comunidades projetos de geração de renda e diversos cursos profissionalizantes interessantes, como turismo, museologia, comunicação, design entre muitos outros, caminhavam nesta direção. Durante as entrevistas, o brilho nos olhos de um dos meninos dessas comunidades que aprendia técnicas de comunicação, tornou nossa equipe de gravação testemunha do que a perspectiva gera no íntimo de uma pessoa. Surgia ali um futuro e a partir daí, aquele garoto começava a traçar planos: montar com outros jovens da comunidade uma cooperativa de design. Talvez esteja ali a chance dele garantir sua sobrevivência e sustentar seus filhos com um trabalho digno, criativo e independente.

A sensação de guerra e do perigo sempre esteve presente nas gravações. Nesse dia em que visitava uma dessas comunidades no Rio para o documentário para os ingleses, o clima estava muito tenso pois havia rumores de que a polícia subiria o morro. Vi crianças com uniforme escolar andando pelos becos, trabalhadores saindo para o serviço, mulheres idosas caminhando para suas casas. E em meio aquela tarde aparentemente pacata, a qualquer momento, a polícia poderia subir o morro e invadir a favela. Se isso acontecesse a ordem era correr para onde fosse possível, deitar no chão e rezar para não ser atingido por uma bala perdida. Essa política de confronto além de ineficiente é violenta e segregada. Por que invadir o morro? Será que se as autoridades tivessem seus filhos e netos morando lá, mandariam a polícia subir o morro atirando? Como aceitar então a hipocrisia dos acordos entre os grupos de tráfico de drogas e policiais? Naquele dia, a polícia não subiu o morro, porque segundo informações da própria comunidade, houve acerto entre policiais e traficantes.

Não podemos colocar apenas nas mãos da polícia a solução para combater a violência em nosso país. Primeiro a polícia tem que prender, não matar. Trabalhei dois anos documentando uma investigação da Polícia Federal a um assalto a banco e durante esse processo pude comprovar que é possível prender sem matar. Tudo foi feito com inteligência. O delegado que chefiava o caso esteve cara a cara com os suspeitos que procurava e só os prendeu na hora que considerou o melhor momento. Nenhum tiro foi dado. Ninguém foi morto nas operações comandadas por ele. A inteligência pode substituir sim a truculência. É uma questão de escolha da política de segurança pública a seguir: a política da vingança ou a de cumprir a lei. E a lei não diz que a polícia deve torturar e matar.

Tropa de Elite 2 assim como o 1 parece ser feito com a tese cuja base é a vingança. A solução é buscar o inimigo e aniquilá-lo, seja o inimigo hoje o “bandido” ou o “político corrupto”. A equação desta vez é a seguinte: mundo – inimigo (bandidos+políticos corruptos) = fim da violência. Mas o inimigo está somente no outro? Todos somos responsáveis por nossas vítimas e nossos algozes. Aliás somos eles de algum jeito, em diferentes papéis. Pela ação ou pela omissão. Nossa indiferença freqüente ao nosso entorno social é tão ou mais violenta que os tiros da AK-47. Temos presídios que são verdadeiros retratos de tortura. O relatório da CPI do Sistema Prisional divulgado pelo deputado Domingos Dutra (PT-MA) já há dois anos, revelou tortura psicológica ou física em quase todos os presídios brasileiros. É a violência do Estado Brasileiro, sob o aval da sociedade que não quer olhar para essa realidade. Nada foi feito desde então para a mudança destas condições.

Para onde irá “o bando de maltrapilhos do mal” como foram chamados os traficantes que fugiam a pé na Vila Cruzeiro, por alguns apresentadores e comentaristas de TV, depois da ocupação do território por milhares de policiais? Para os campos de tortura que temos em nosso país: as prisões.

Já que a moda agora é colocar câmeras para acompanhar os cercos policiais cinematográficos em tempo real, porque não colocamos câmeras em todos os presídios brasileiros para que a gente possa ver o que está sendo escondido de nossos olhos todos os dias? A humanização do sistema prisional brasileiro, seria, definitivamente, o primeiro passo para um real combate a violência no Brasil. Mas quem irá levantar essa bandeira? É fácil tirar os criminosos de seus territórios. O que aconteceu este fim de semana no Brasil, já poderia ter acontecido há muito tempo.

Faltava apenas uma decisão do Estado para fazer isto. Todos nós sabemos que o tráfico de drogas existe no Rio por uma conivência com a polícia e autoridades do governo. Não adianta esconder o problema trancafiando a sombra da sociedade. Tampouco resolve a violência como resposta à violência. O estado não pode punir com base no olho por olho, dente por dente. Isto é vingança. E o estado não pode ser vingativo. A punição deve existir para corrigir com rigor e dignidade quem errou e ajudar este indivíduo a encontrar seu caminho de autotransformação.

Ajudar como? Com apoio psicológico, todos os tipos de terapias possíveis, arte, trabalho e afeto. Não é a pobreza que leva alguém a ser criminoso, mas o que vem junto com ela e o que não vem com ela também. A privação da liberdade já é um castigo bem forte, o indivíduo fica excluído da sociedade, trancado, como um animal num cativeiro. Todo o resto deveria ser mais humano. Vivemos numa sociedade da cultura de eliminar o outro.

Diga-se o Big Brother. Se a gente pensar no pior ser humano, se é que se pode falar em pior ou melhor ser humano, naquele que cometeu as maiores atrocidades. Mesmo nesta pessoa há uma coisa em comum com todos nós. Como ela, acordamos todos os dias buscando a mesma coisa, com o mesmo sentimento, seja ele explícito, ou inconsciente: o desejo de sermos amados. Então acredito que até para pensar em política de segurança pública em nosso país, temos que pensá-la com afeto. Pensar na perspectiva do outro, da vítima e do agressor. De como podemos recuperar nossa sociedade. Não conheço um único estudo, de que uma cadeia desumana recupera alguém. Ela enlouquece qualquer um de nós.

Não é uma simples coincidência que a maioria dos presos são pessoas pobres. Se tivéssemos cadeias cheias de ricos, certamente as condições seriam menos desumanas. Precisamos olhar para nossa sombra coletiva. Vivemos juntos e todos somos responsáveis por tudo. O caráter de um povo, de uma nação pode ser revelado na forma como ele trata seu lado sombrio. Por isso acredito que se tivéssemos cadeias mais dignas a violência diminuiria dentro e fora dela. As pessoas querem ser tratadas com respeito. E o estado é o responsável por isso, já que dificilmente a sociedade vai se mobilizar a favor dos prisioneiros e de condições mais dignas para eles.

Não há a menor dúvida da importância de uma punição rigorosíssima. Mas rigor não significa brutalidade, crueldade, seja psíquica, física ou de espaço físico. Não temos que enjaular as pessoas. Temos que mergulhar na alma delas para ajudá-las. Temos que despertar nelas a vontade de mudar. E dar condições para isso para que não entrem no mundo do crime. Senão é tudo paliativo. Digam-se os números que ultrapassam 80% de reincidência ao crime no Brasil. Dar perspectiva é responsabilidade de todos nós. A incerteza sobre a condição humana já é um sentimento existencial suficiente para instaurar o medo. No caso do jovem da periferia acredito que a situação é inversa. A certeza do amanhã com a falta de perspectiva traz o absoluto para as ações dele, ou seja, esse jovem sabe que suas chances de vencer na vida são praticamente inexistentes. Não há a dúvida, não há sequer essa incerteza. Aí matar, roubar, viver o imediato é mais atraente, do que um entorno sem semente, terra, nem água para plantar coisa alguma.

Vivemos numa sociedade focada no indivíduo, o indivíduo que precisa se destacar do coletivo, que busca a fama como meio de ser lembrado e amado. Perder a chance de se tornar famoso pode significar uma grande frustração. Aqueles que não conseguem chamar a atenção em vida, muitas vezes se tornam famosos na morte. Tantos casos de jovens que matam os outros e depois se suicidam. A necessidade da exposição, da fama instantânea revela nossa alienação, a perda de referência de nossos valores mais profundos. Se não somos vistos e comentados não existimos. Vendemos nossa alma e dignidade por qualquer migalha de fama oferecida. Queremos aparecer.

Vi jovens carregando armas nos morros do Rio que pareciam estar ali como atores de um filme chamado Brasil. Passaram a existir após virarem “bandidos”, pois as armas e o mundo do crime estão na moda – tudo isso dá status, fama e claro dinheiro. Sua opção pelo crime é validada e retro-alimentada pela TV Brasileira. Seja pelo bombardeio do consumo de tudo o que devemos ter para fazermos parte da sociedade, e aí somos incitados não só pela publicidade explicita, mas inclusive pela teledramaturgia brasileira que bem ou mal vende um desejo de consumo de um mundo da fantasia que só é vivido por 1% da população – como também pela glamourização da violência onde a arma de fogo e o retrato da criminalidade muitas é vezes é ficcionado de forma banal e perigosa. Não é necessário nenhum estudo para saber que os jovens se sentem seduzidos quando vêem atores famosos carregando armas de fogo, atuando e matando como bandidos. Isto não quer dizer que a realidade não pode ser retratada na ficção. Mas é importante ter critérios, pois se você colocar gente se suicidando na TV, já se sabe que isto incita ao ato por outras pessoas e o mesmo acontece quando mostramos explicitamente o uso de arma de fogo e banalizamos a reprodução da criminalidade. Isto deveria ser discutido por todas as emissoras de televisão de maneira séria, urgente. A mídia não está fora desta roda-viva da violência, pelo contrário.

Voltando à Tropa de Elite II que tem como personagem um apresentador de TV de um programa policialesco popular muito parecido com tantos que temos no Brasil – não vejo este tipo de programa como o grande vilão da mídia brasileira. É tudo tão escancarado e bizarro que esses programas estão mais para o gênero da comédia do que da denúncia. O maior perigo está justamente nos telejornais “sérios” que de forma muitas vezes sutil criminalizam a pobreza e compactuam com a segregação social por sua linha editorial e pelo não aprofundamento em temáticas que circundam a violência no Brasil. Simplificam conceitos e os reproduzem massivamente; suspeito pobre é chamado de bandido, e os ricos, de empresários, por exemplo. É verdade que isto está mudando. A consciência de que ninguém está acima de qualquer suspeita e de que a nossa sociedade mata independente de classe social obriga os nossos noticiários mostrarem que o buraco da violência é muito mais embaixo. Muitas vezes essa violência é quase invisível, passa por exclusões sociais, culturais e econômicas que por si só aniquilam a perspectiva de vida. Pobre e negro não podem ser mais bodes expiatórios dos índices de criminalidade no país.
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Aliás, a criminalização da pobreza revela também o preconceito de nossos legisladores. A socióloga Laura Frade pesquisou de 2003 a 2007, para sua tese de doutorado na UNB o que o Congresso Nacional Brasileiro pensa sobre a criminalidade. Ela revela que ao longo da história do Parlamento Brasileiro, o Congresso registrou o maior número de ilegalidades cometidas pelos próprios parlamentares, no entanto destaca que aqueles que debatem o tema da criminalidade lá têm uma visão bem negativa do transgressor, com quem, aliás, não se identificam. Segundo a autora, o Congresso endureceu o tratamento com o criminoso e não demonstrou praticamente nenhuma preocupação com sua recuperação. Segundo ela, "o trabalho dos congressistas é focado quase que exclusivamente no crime do “pobre” e que a elite não é vista como autora na criminalidade.” Talvez até proporcionalmente temos mais ricos criminosos, mas o ponto é quem vai para cadeia? Ao longo de 7 anos fazendo o documentário Entre a Luz e a Sombra sobre o sistema prisional brasileiro vi pessoas cumprirem pena além do que precisavam porque não tinham como pagar um advogado. O relator da CPI do Sistema Prisional, deputado Domingos Dutra, revelou que “em mais de 60 estabelecimentos prisionais em 18 estados não encontrei nenhum crime do colarinho branco ou um grande traficante. Só se acha lá os lascados, os soldados rasos”, afirmou ele.

Assumir nossa responsabilidade por tudo isso seria a atitude mais corajosa para mudar nosso país, mas não apenas para a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 com o compromisso principal de proteger os estrangeiros que estarão aqui. Claro que eles merecem segurança, mas porque não protegemos a nós mesmos e nos reinventamos como nação? O povo brasileiro não precisa de heróis, nem de vilões. O sistema somos nós. O que vai levar à solução não é levantar as armas, mas o contrário: baixá-las. Pegando o jargão do filme Tropa de Elite II, que diz que “o inimigo agora é outro”, a pergunta que poderia vir junto voltada para nossa realidade é quem é este inimigo? O outro mesmo, ou nós mesmos?

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(*) Luciana Burlamaqui, jornalista focada em coberturas sociais, documentarista, diretora do documentário/longa-metragem Entre a Luz e a Sombra sobre a violência no Brasil, lançado no final de 2009, diretora da produtora Zora Mídia voltada para a produção de documentários e longas-metragens focados em temáticas humanistas. (www.zoramidia.com.br)

Fonte: Carta Maior