"Apareceu um desconhecido: um adolescente, de 16 a 18 anos no máximo. Perguntaram-lhe o nome. Declarou ser desnecessário dizê-lo: ninguém ali o conhecia; não conhecia, por sua vez, ninguém; não conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela leitura de seus livros, que o encantavam. Por isto ao ler nos jornais da tarde que o escritor se achava em estado gravíssimo tivera o pensamento de visitá-lo. Relutara contra essa idéia, não tendo quem o apresentasse: mas não lograra vencê-la. Que o desculpassem, portanto. Se não lhe era dado ver o enfermo, dessem-lhe ao menos notícias certas do seu estado.

E o anônimo juvenil – vindo da noite – foi conduzido ao quarto do doente.

Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre; beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu.

À porta José Veríssimo perguntou-lhe o nome. Disse-lho.

Mas deve ficar anônimo."

Não ficou. Depois soube-se que "A última visita", narrada por Euclides na edição de 30 de setembro de 1908 do Jornal do Comércio, era Astrojildo Pereira.

No texto que segue, Astrojildo verbera contra o duplo engano dos críticos literário elitistas, “o de pensar que o povo é incapaz de apreciar as grandes obras literárias e o de supor que Machado de Assis não escreveu para o povo”. Destaca a qualidade da biografia de Machado escrita por Lúcia Miguel-Pereira, fala do pouco valor do muito que se produziu à época sobre o escritor homenageado e prevê: “Paralelamente à sua popularização, guiando-a e orientando-a, novos machadianos vão e irão surgindo, biógrafos, exegetas, críticos e comentadores da obra e da vida do escritor. … Há muito ainda que pesquisar e dizer sobre o escritor e sobre o homem”.

De fato, estudos como os de Antônio Cândido, espalhados em vários de seus livros, Roberto Magalhães Júnior (os 4 volumes de Vida e obra de Machado de Assis), de Roberto Schwarz (Ao vencedor as batatas e Um mestre na periferia do capitalismo), além dos muitos produzidos por ocasião do centenário de sua morte, há 2 anos – isso sem falar da abordagem de críticos estrangeiros, como John Glendson, Helen Caldewell e Harold Bloom, enriqueceram a análise e compreensão da obra machadiana. Aliás, também em 2008 a Fundação Astrojildo Pereira reeditou Machado de Assis, ensaios e apontamentos avulsos, lançado em 1944 pelo crítico comunista. Nessa obra o texto publicado no Diário de Notícias foi reproduzido.

A ele.

Carlos Pompe.

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MACHADO DE ASSIS NA CRÍTICA

O livro de Sílvio Romero, datado de 1897 e a famosa contradita que lhe opôs Labieno-Lafaiete, creio que foram os primeiros estudos de conjunto consagrados à análise e à apreciação da obra de Machado de Assis. Este vivia ainda e por este tempo estaria compondo o Dom Casmurro, que foi afinal a melhor contradita oposta às críticas de Sílvio. Em 1901 aparecia o volume das Poesias completas, o qual motivou uma série inacabada de artigos de Múcio Teixeira sobre Machado poeta – menos "sobre" do que "contra". O estudo de Sílvio era também "contra", mas tratava-se em todo caso de um "contra" importante, se bem que apaixonado, e por isso mereceu o Vindiciae; já os artigos de Múcio não conseguiram provocar nenhum outro Labieno.

Dos numerosos artigos publicados por ocasião da morte de Joaquim Maria, em 1908, alguns interessam ainda hoje como depoimentos sobre a personalidade do escritor. Estão neste caso, em primeiro lugar, as reminiscências de Mário de Alencar, tão cheias de comovida ternura, a que se juntaram, mais tarde, os seus prefácios para os volumes de publicação póstuma editados pela Casa Garnier.

Mas só em 1912, com o ensaio do Sr. Alcides Maia, é que a obra de Machado de Assis começou na verdade a ser estudada gratuitamente, com espírito objetivo, fora de qualquer propósito polemístico ou apologético. Um belo ensaio. Inteligente, compreensivo, embora parcial, isto é, visando determinado aspecto da obra machadiana. Meia dúzia de anos depois, surgia o considerável volume de Alfredo Pujol, biografia literária sistemática, de valor mais descritivo que interpretativo, porém rico de informações concretas sobre a vida do biografado. Outra meia dúzia de anos transcorreu até 1923, quando Graça Aranha editou e prefaciou o volume contendo a coleção de cartas trocadas entre Machado de Assis e Joaquim Nabuco. Nenhum intuito descritivo ou informativo no prefácio: Graça Aranha entregava-se a um puro trabalho de interpretação, não raro voluptuosamente perdido no arbitrário e no conjectural, mas também, por vezes, rebrilhando em verdadeiros achados de argúcia e penetração.

O prefácio de Graça Aranha foi seguido de quase uma década de silêncio, passando pouco menos que despercebidos os tardios comentários que lhe dedicou Luís Murat, em 1926. Um ou outro pequeno ensaio, artigo de revista ou de jornal, e até algum livro inteiro, mal e mal percebido, não conseguiam quebrar o silêncio. Machado de Assis parecia mergulhar no esquecimento, abafado sob o tumulto dos sucessos políticos…

Por volta de 1932 surgiram os livros dos Srs. Fernando Néri, Viana Moog, Mário Casassanta e a reedição, em Minas, do Vindiciae. Eram já os sinais precursores de próxima ressurreição. Esta, com efeito, foi anunciada por dois livros notáveis, aparecidos respectivamente em 1935 e 1936: o do Sr. Augusto Meyer, ensaio de quilate, e o da Sra. Lúcia Miguel Pereira, pesquisa biográfica e crítica da melhor qualidade. Ainda de 36 é o ensaio do Sr. Teixeira Soares, todo ele simpatia e entusiasmo. A seguir apareceu o volume do Sr. Peregrino Júnior, devassando e penetrando em desvãos clínicos ainda obscuros da vida e da obra de Machado.

O grande escritor como que renascia mais poderoso, e os personagens por ele criados recomeçaram a viver com insuspeitado vigor, enchendo a literatura brasileira de uma importância que tende visivelmente a superar as mais otimistas previsões anteriores. A reedição e divulgação em massa das suas obras completas, coincidindo com a renovação dos estudos a ele consagrados, nos mostraram, aos velhos e aos novos, que há ali um gigante irônico a desafiar o tempo com a firme disposição de permanecer e assistir ao desfilar de muitas gerações.

O ano do centenário pode afirmar-se que não é somente o ano da glorificação oficial de Machado de Assis porque é sobretudo o ano inicial da sua popularização, eu ia quase dizer da sua socialização. As celebrações que estamos presenciando transcendem dos limites comuns às simples solenidades dessa natureza. Há nelas qualquer coisa de essencial, que a só passagem da centúria não poderia explicar. Eu tenho a impressão de que o Brasil está descobrindo o seu grande escritor, aquele que melhor soube transmitir ao barro das criações literárias a alma característica da gente brasileira.

Nenhum outro escritor brasileiro, em nenhum tempo, foi tão falado, tão manuseado, tão esquadrinhado quanto Machado de Assis atualmente. A sua obra e a sua personalidade estão sendo exploradas por uma espécie de garimpagem literária que se alastra pelo país inteiro. Na imprensa diária e periódica, nas academias e nas escolas, e até no rádio e no cinema, por mil formas diversas, são seus livros submetidos à análise e ao comentário de quantos possuem um meio qualquer de comunicação com o grande público. Ora, tudo isto significa, antes de mais nada, que a sua obra está sendo lida e sentida pelo povo. O que vem a ser uma bela coisa, a desmentir de modo claro a presunçosa opinião segundo a qual os seus livros não podiam ser entendidos pelo povo, porque demasiado finos e sutis. Só uma reduzida elite de privilegiados da cultura, afirmava-se, possuía antenas capazes de bem apreender e compreender as suas finuras e sutilezas. Duplo engano: o de pensar que o povo é incapaz de apreciar as grandes obras literárias e o de supor que Machado de Assis não escreveu para o povo. Em boa e pura verdade, o povo é que compreende mais sentidamente as grandes obras, e Machado de Assis não teria deixado uma grande obra se não escrevesse para ser entendido pelo povo. Da presunçosa opinião dos leitores supostamente privilegiados resultaria, no fim de contas, em vez do louvor, o amesquinhamento da qualidade literária do mestre.

Sem dúvida, a moda influiu muito em todo esse entusiasmo centenário, produzindo um tal ou qual derramamento de "machadismos" – de "machadismos" assim com aspas, tomado no mau sentido da palavra. Mas a moda por ser moda passará com o centenário, e a obra de Machado de Assis permanecerá sempre atual, e a sua popularização se irá estendendo e aprofundando, cada vez mais, num processo decerto menos acelerado e por isso mesmo também menos superficial.

Paralelamente à sua popularização, guiando-a e orientando-a, novos machadianos vão e irão surgindo, biógrafos, exegetas, críticos e comentadores da obra e da vida do escritor. A garimpagem meio açodada destes dias centenários apenas tem aflorado o terreno: o veio aurífero é muito mais rico do que pode parecer à primeira vista e não se esgotará tão cedo. Há muito ainda que pesquisar e dizer sobre o escritor e sobre o homem.

O Sr. Alcides Maia, pioneiro ilustre, dá-nos um exemplo disso, preparando uma segunda edição desenvolvida do livro que publicou há cerca de trinta anos. O Sr. Augusto Meyer tampouco se fartou com a primeira colheita, oferecendo-nos agora uma Biografia póstuma de Machado de Assis, título que só por si já denuncia qualquer coisa de novo no gênero. Do Sr. Elói Pontes espera-se, como é do seu feitio, uma biografia compacta e exaustiva. Outros estudos biográficos são anunciados pelos senhores Modesto de Abreu, Aníbal Matos, Machado Coelho, este último do Pará, como o Sr. Raimundo de Morais, que também comparece com um volume de crítica e comentário.

Seria de mau gosto aventurar palpites sobre o caráter ou a substância de livros alheios meramente anunciados; contudo, creio bem não incidir em erro afirmando que os estudos atuais sobre Machado de Assis se acham enquadrados aos limites das generalidades e dos ensaios mais ou menos provisórios. É a fase horizontal do desbravamento, não vencida ainda por uma ou outra tentativa de sondagem vertical. Acredito que não tardarão os trabalhos particularizados neste sentido, como resultante de pesquisas mais concentradas e intensivas. Os estudos panorâmicos e as sínteses definitivas virão a seu tempo, depois de uma lenta elaboração desses trabalhos parciais indispensáveis.

Há muito mistério ainda em Machado de Assis. Mistério fascinante, que atrai e enfeitiça deliciosamente os decifradores.

Astrojildo Pereira