Os que, como eu, tiveram a sorte de conviver com Georges Labica e de militar a seu lado, puderam detectar nele qualidades raras de um intelectual humilde, aberto e combativo, um militante do terreno cujo internacionalismo e empenhamento nunca foram desmentidos.

Se Georges incomodava tanto, quer vivo quer depois de morto, uma classe política corrompida, fosse de direita fosse de esquerda, e uma imprensa francesa que quase deixou passar em silêncio, ou referiu de modo passageiro, o desaparecimento de um homem de enorme envergadura, foi por causa da sua rotura revolucionária com o capitalismo, e também do seu compromisso sem falhas com a Palestina. Foi no terreno da luta pela descolonização da Palestina que se cruzaram os nossos caminhos, em Paris, em Beirute, em Damas, no Cairo, no México, em Caracas e noutros sítios mais…

O combate de Labica pela Palestina tinha uma tónica “simbólica”. A Palestina, enquanto laboratório do Mundo, “simbolizava este século da mais requintada barbárie, da guerra como política, ou da política como “continuação da guerra através de outros meios”, da violência globalizada, dos extermínios tranquilos passando por todas as formas de sofrimento (assassínios, tortura, deportação, fome organizada…); do reinado do discurso sobre segurança e terrorismo, à “fantasmagoria” estratégica do discurso sobre a democracia segundo a qual “A América é a grande democracia”, a França “o país dos Direitos do Homem” e Israel “a única democracia” do Próximo e do Médio Oriente; do insucesso das NU à assimilação da paz com a submissão e a humilhação dos povos…

A Palestina constitui também “o símbolo” invertido dessa barbárie, apesar de uma relação de forças desigual, pela sua resistência heróica e quotidiana há mais de 60 anos, face a um colonialismo da mais rude implantação, sustentado incondicionalmente pela máquina militar dos EUA e apoiado por uma Europa sem escrúpulos e por uma orquestração dos meios de comunicação apostados em mascarar os crimes e justificar os fretes mais sórdidos…

Para Georges, como aconteceu outrora com a Argélia, uma atitude revolucionária obrigava obviamente á desmistificação do discurso colonialista e à estigmatização da natureza do inimigo assim como à forma de o combater: “pensa-se, dizia ele, que o Estado de Israel é um Estado mais ou menos como os outros, o que é falso, é um Estado colonialista”, e o único meio de pôr fim à tragédia do povo palestino é a descolonização por todos os meios”. Ele considerava que este Estado nasceu de um golpe de força dos países europeus nas costas dos árabes.

Georges definiu este direito à luta armada como “violência emancipadora e justa, face à violência irracional do colonialismo e do imperialismo” (Ver Teoria da violência).

Quando Labica criou o Comité de Vigilância para uma Paz real na Palestina, não foi porque acreditasse que os vários acordos de paz feitos a partir dos anos 70 e apadrinhados pelos EUA (pax americana) fossem fazer justiça ao povo palestino, mas, para ele, era “um meio que se destinava a sensibilizar a opinião pública na Europa, e a desmontar as montagens que servem de cortina à situação real”. Foi o mesmo em todas as batalhas para defender a causa palestina como “uma causa nacional” e para se opor à estratégia da divisão e da dispersão do seu povo afirmando simultaneamente que é “fundamental obter o direito da nação palestina a estar na sua terra” e de reconhecer o direito do regresso como um direito inalienável.

É neste contexto e em função deste apelo para denunciar a violência estatal que é necessário apreciar a coragem que Georges teve em defender os prisioneiros políticos de organizações apelidadas de “terroristas”, como a Acção Directa, ou as FARL, cujo militante Georges Ibrahim Abdallah continua a apodrecer, há mais de vinte anos, nas prisões francesas. Uma posição destas e um apoio destes pressupunham uma enorme coragem.

Na sequência deste percurso de combatente pela Palestina, Georges apareceu com uma conclusão magistral, que merece uma reflexão profunda: “a linha de demarcação entre a direita e a esquerda em França era o posicionamento sobre a questão da Palestina”.

Quais eram os fundamentos desta constatação? Para ele, era primeiro que tudo a afirmação de que a solidariedade com a Palestina exigia uma solidariedade de classe e não de compaixão. O que significava a necessidade do reconhecimento da realidade da ocupação, da natureza do colono, da necessidade dum reconhecimento da responsabilidade histórica da esquerda, não apenas do conflito mas também da própria criação do Estado de Israel. Alguns de vós talvez se lembrem de como as belas penas da esquerda europeia descreviam com entusiasmo o Haganá [1] como uma emanação do Exército vermelho, visto que se juntaram às fileiras das milícias sionistas membros judeus provenientes desse exército, nomeadamente do grupo Bund (denunciado outrora por Lenine); de como os kibboutz eram apresentados como modelos de socialismo, para a classe trabalhadora e campesinato… E como, posteriormente, essas mesmas penas exprimiram o seu entusiasmo a favor da repartição da Palestina, que na época foi reconhecida pela URSS. Paradoxalmente, seguiu-se um silêncio longo e duro dessa esquerda perante a erradicação contínua da Palestina e o genocídio do seu povo. Georges gostava de evocar, a propósito disso, um verso de Mahmoud Darwish, no qual o poeta estabelecia um paralelo entre o genocídio do povo palestino e o genocídio dos ameríndios.

Para Georges, também era necessário que a esquerda reconhecesse a responsabilidade dos governos europeus em toda essa história da Palestina, denunciasse a hipocrisia desses herdeiros dos mestres-pensadores da “lógica” e da “razão” que, em vez de quererem reabilitar os cidadãos judeus da Europa na sua própria terra, aceitaram caucionar uma versão da história muito pouco profana, que corresponde na verdade a avalizar um perigoso recuo de 3000 anos para legitimar a implantação dum povo vindo da Europa em prejuízo dum outro povo do Médio Oriente!

Quanto a isto, gostaria de relembrar uma recordação que partilho com Georges. Quando visitámos no Líbano os campos palestinos de Sabra e Chatila, Georges proferiu esta reflexão: “temos pois aqui um povo que apareceu vindo de parte alguma!” Comentava assim um episódio que eu lhe contara, horrorizada, a propósito de um manual de estudo da minha filha nascida e criada em Paris. O manual indicava textualmente que “a Palestina não passava duma terra vazia, desabitada ou atravessada por nómadas que ali passavam de vez em quando…” (sic!!!).

Assim, esta “terra prometida”, teria esperado 3000 anos antes de ser povoada! Maia tarde, a minha filha teve ocasião de ver com os seus próprios olhos uma pequena parte desse povo empilhado nos vários campos palestinos espalhados em volta de todas as cidades libanesas, sírias ou jordanas (campo de Sabra e Chatila em volta de Beirute, campo de Aïn El Haloui em volta de Sayda, campo de Rachidiya em volta de Tiro, campo de Yarmouk nos arredores de Damas)… Contei à minha filha o que o meu pai me tinha descrito sobre o primeiro êxodo dos palestinos em 1948; como esses palestinos expulsos das suas casas e campos, vagueavam pelos areais das praias de Tiro, como tinham passado as noites debaixo das bananeiras, durante dois meses, protegendo-se da chuva e do vento cobrindo-se com as grandes folhas dessas árvores que enchiam as praias do sul do Líbano; e como esses refugiados continuavam a esperar, ao longo dos anos, regressar à sua terra na Palestina; e quantos homens e mulheres se tinham aventurado, porque tinham as chaves na mão, a voltar só para ver as suas casas e nunca mais regressaram… (Ver a este propósito o romance de Elias Khouri “A porta do sol” (Bâb Al-Chams).

Georges sentia-se consternado com os que davam lições de laicismo e que não se sentiam minimamente incomodados em falar da “mais bela democracia do Próximo Oriente” quando na verdade se tratava dum Estado colonialista baseado no privilégio judeu!

Na nossa acção pela Palestina, também tentámos trabalhar com Georges num outro aspecto importante: o papel de Israel na abertura forçada dos “mercados árabes”. Tínhamos constatado que a esquerda, incluindo a que se declarava altermundialista, nunca denunciava o papel de Israel na penetração das leis neoliberais e liberais no Próximo Oriente, por intermédio dos “Acordos de paz” (Camp David, Oslo, Barcelona, Camp David II com Yehoud Barak, ‘Feuille de route’ [2]…). A este propósito, convido-vos a ir verificar de perto (na Internet) esses grossos documentos apelidados de “acordos de paz”, que na verdade só têm uma ou duas páginas de carácter político, enquanto que o resto diz respeito aos dois campos económico e de segurança. Na verdade, esses acordos garantiram uma legitimidade internacional e o reconhecimento de Israel como Estado normal. Toda a gente sabe agora que esses acordos, do ponto de vista político, só serviram para dar a Israel a possibilidade de abocanhar todo o território da Palestina: actualmente só restam 8% da Palestina inicial!… Quanto ao plano económico, os países árabes signatários (Egipto, Jordânia) caíram totalmente sob o jugo das instituições internacionais e perderam todo o controlo das suas políticas económicas.

Podíamos chegar às mesmas conclusões (mas não cabe aqui fazê-lo) observando de perto “os Acordos euro-mediterrânicos” que a Europa impôs ao mundo árabe. Também ali encontramos três áreas principais: 1 – Liberalização da economia, 2 – Normalização com Israel, 3 – A área de segurança, que consiste em controlar a emigração e o “terrorismo”.

Um outro tema que tentámos aprofundar com Georges é o da ligação entre a questão social e a luta anticolonialista na Palestina. Recordo aqui que o primeiro movimento de solidariedade que se manifestou em França para com a Palestina, nasceu no seio do MTA (Movimento dos Trabalhadores Árabes), em que a maior parte dos seus membros eram argelinos. Ora, actualmente, na altura em que se aplica em França a pior das políticas ultraliberais, e em que se pratica a caça aos estrangeiros e a islamofobia de Estado, assistimos ao nascimento duma aliança entre a União dos Patrões Judeus de França, o governo francês e alguns eleitos de esquerda. Esta santa aliança organizou a 13 de Dezembro um grande colóquio intitulado “As artimanhas do novo anti-semitismo contemporâneo: o anti-sionismo”. O objectivo era obter o que o relatório Villepin já exigia em 2004: a penalização do anti-sionismo que não passaria, segundo ele, duma capa perversa do anti-semitismo. Não quero com isto minimizar os actos anti-semitas, condeno-os veementemente, mas tenho que sublinhar, tal como Michèle Sibony (co-presidente da União judaica francesa para a paz) que o debate agora aberto visa nublar o verdadeiro debate anti-racial em França e obrigar os cidadãos franceses, seja qual for a sua origem, a calarem-se frente aos crimes israelenses. Segundo Sibony, “A realização desta reunião, no momento em que o governo francês penaliza o sindicalismo, persegue os refugiados económico e políticos e os seus filhos, criminaliza a solidariedade para com eles, o facto de abrir um debate racial sobre a identidade nacional encarregado de estigmatizar mais uma vez os “muçulmanos não integráveis”, consiste em fazer uma chantagem por um alto preço: o sacrifício do que resta da Palestina assim como o desenvolvimento duma sociedade profundamente racista e segregativa para com aqueles que esse debate sobre a identidade nacional exclui à partida desse nome de republicano europeu reduzido a um ocidente judaico-cristão”.

Para terminar, desejava abordar um ponto de grande acuidade que diferenciou Labica, o filósofo marxista revolucionário, de muitos dos seus camaradas de caminhada: trata-se da posição a tomar vis-à-vis os movimentos de libertação nacional de carácter religioso como o Hezbollah e o Hamas. Para Georges, uma óptica de classe deve considerar esses movimentos na sua dinâmica histórica e não ideológica. “As guerras de libertação não se medem pela sua inspiração mas sim pela relação de forças na luta libertadora… Porque o que é certo é que a luta ideológica, por si só, quando se preocupa apenas com a sua eficácia, não conseguirá acabar com a ordem dominante”.

Na minha opinião, esta posição insere-se directamente na tradição de Lenine que, em 1918 em Bakou, reuniu os povos do Oriente em luta contra o colonialismo para fazer convergir a luta deles com a da revolução bolchevique, a fim de a reforçar.

Georges recusava os clichés que apontavam “para o fim das ideologias” como explicação do desvio do religioso, e afirmava que “o religioso estava onde não o queriam ver, mesmo no centro do desencanto do mundo”; era como “o cadinho da sociedade na esperança duma justiça finalmente realizada”. Labica queria que a reflexão teórica se apoiasse num apelo às experiências históricas que indicam como a simbologia religiosa dá lugar às interpretações históricas mais opostas sem perder a sua própria identidade.

Segundo ele, é necessário admitir que “todas as religiões estão inscritas na história humana. É uma historicidade da fé, porque a fé, por um lado, mesmo no indizível dos seus valores, é dita na história e, por outro lado, mantém com o poder, qualquer que ele seja, uma relação necessária, seja para o influenciar seja para o conquistar”. (Ver o seu artigo “O fiel e o cidadão”).

Claro que esta linha de compreensão da história provocou, em França, um alarido duma esquerda que se definia como laica… E Labica de retorquir que, no campo político-histórico, “o religioso” não saberia servir de cortina à “guerra revolucionária que um povo armado trava contra o ocupante” e lembrar que a resistência no Próximo Oriente, na Palestina (em Gaza, mas também a Intifada-Al-Aqsa), no Iraque e no Líbano são guerras de libertação nacional. Considera mesmo, a partir daí, que esta definição se aplica à “nação árabe” (umma) que as apoia, com exclusão dos seus governos. (Ver o seu artigo “massas e soberania” www.lahaine.org).

Labica não hesitou em saudar o combate do Hezbollah e compará-lo com o dos militantes vietnamitas no seu “domínio das tácticas de guerrilha e do seu enraizamento popular, que lhes permitiu infligir ao 4º exército do mundo os golpes mais inesperados”. Ao mesmo tempo dirigiu uma crítica virulenta contra a esquerda que adoptara “uma equação muito simples: “partido de Deus” portanto islamista, portanto não objectivo, portanto não o apoiamos”. Georges via nesta posição uma ligação evidente com a sua visão para com as “revoltas periurbanas”. Ora, segundo ele, essa esquerda (que ele classifica de dura, em relação à outra, branda, do PS, totalmente dominada pelas teorias imperialistas), embora “compreendendo” os motins dos subúrbios em França, não se declara solidária, por causa da sua falta de organização e de reivindicações em forma assim como por causa dos seus actos inconsiderados”. E comenta: “Como se esta suposta imaturidade não fosse constitutiva ela própria de um “movimento popular” específico, a portanto deva ser apreciada enquanto tal” (ver o seu artigo “revolução).

No seu livro Théorie de la violence Georges acusa essa esquerda de querer negar liminarmente a sua responsabilidade na escalada do religioso. Dizia: “somos todos responsáveis: Desde Bandung [3], a conjunção dos avanços do imperialismo, do vazio político operado pelos regimes reaccionários no mundo árabe e dos insucessos das forças progressistas (comunistas, socialistas, nacionalistas, republicanas ou laicas), fez a cama dos radicalismos de substituição, e não somente no Próximo e no Médio Oriente”. Claro que, diz ainda, “fomos vencidos. Mas a política, tal como a natureza, tem horror ao vazio. E os povos conseguem, quando chega a altura, ir buscar nas suas reservas profundas a energia que lhes permitirá manter-se de pé. São inúmeros os exemplos da história”. E termina com estas frases firmes: “A Palestina, o Iraque, o Líbano, são os postos avançados duma resistência que está a caminho de tomar forma no mundo, um pouco por toda a parte, contra os criminosos da ‘guerra sem fim’. Apoiá-los é o mínimo dos deveres dos progressistas de todas as proveniências”.

Para ele, a Palestina é hoje um cenário precursor para medir a nossa resistência à globalização da violência e ao neocolonialismo de cara destapada, não só para os EUA como para a França, onde a direita propôs uma lei que faria aparecer os aspectos positivos da colonização. “Afinal de contas, a escravatura também teve um lado bom: permitiu aos ‘negros’ viajar, empurrou-os para a modernidade e até lhes ofereceu uma causa exótica”. Para Georges, “não se pode considerar terminada a guerra da Argélia”. Para Labica, “A descolonização não tem nada de feito histórico duma página virada. É um programa de lutas”.

A Palestina já não é apenas um problema do povo palestino, tornou-se num símbolo da luta contra o imperialismo e o colonialismo. A sua emancipação inscreve-se numa perspectiva da revolução internacional e da luta de classe contra o capitalismo. É reclamada hoje em dia pelos revolucionários e pelos militantes internacionais convencidos da necessidade de mudar o mundo existente e de acabar com a barbárie.

Que o teu combate, querido Georges, seja seguido! Concluo, prometendo-te continuar na tua via e creio que é essa a melhor homenagem que é possível prestar-te.

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N.T.
[1] Haganá – organização paramilitar judaica de carácter sionista que se iniciou na década de 1920 e lutava contra os progroms árabes e a ocupação britânica na Palestina
[2] ‘Feuille de route’ ou ‘road map’ – metáfora utilizada para designar o plano elaborado em 2003, pelos EU, ONU, Rússia e União Europeia, para regulamentar o conflito israelo-palestino – a via para a paz.
[3] Conferência de Bandung – em 1955 – primeira conferência a afirmar que o imperialismo e o racismo são crimes.

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Antropóloga/etnolinguista libanesa e redactora-chefe da revista Bada‘el (revista alternativa de ecologia política distribuída em dez países árabes).

Tradução de Margarida Ferreira

Fonte: ODIario.info