Os números chamam a atenção. No primeiro semestre de 2010, o saldo comercial da indústria de transformação em suas transações com o exterior registrou um déficit de 14,3 bilhões de dólares, o maior desde 1989. Nos segmentos de produtos com média e alta intensidade de tecnologia, o resultado foi o pior da série histórica. Este será o terceiro ano seguido em que a indústria vai importar mais do que exportar, após seis anos de saldos positivos.

O Brasil passou por um forte processo de industrialização entre as décadas de 1950 e 1980. Em 1947, a indústria de transformação respondia por 20% do Produto Interno Bruto (PIB). Em 1985, essa proporção chegou ao pico de 36%, quando começou a declinar – atualmente, o setor participa com menos de 16%. Se o conceito clássico de desindustrialização – a perda de participação da indústria no total das riquezas produzidas no País – for aplicado à risca, então não restam dúvidas: o Brasil está se desindustrializando.

Contudo, outros dados parecem minimizar tal tendência. Segundo estudo publicado recentemente pela Fundação Getulio Vargas (FGV), parte da queda de participação da indústria pode ser atribuída a mudanças de metodologia no cálculo do PIB, nos anos de 1990 e 1995. Feito o ajuste, conclui-se que a indústria chega a 2008 com uma participação de 22,9%, em vez de 15,6%. “É uma redução em relação aos 36% de 1985, mas muito menor”, sustenta o estudo.

David Kupfer, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também sugere cuidado na análise dos números. Segundo ele, o menor peso da indústria nas estatísticas reflete, em parte, o processo de terceirização ocorrido nas décadas de 1980 e 1990. “Muitas pessoas que antes eram empregadas pela indústria passaram a ser contabilizadas como funcionários de empresas terceirizadas ou cooperativas, embora continuem fazendo o mesmo trabalho, no mesmo local de antes. A forma de carimbar a atividade mudou, pois as empresas se reorganizaram de um modo que privilegiou o setor de serviços” explica.

Além disso, a indústria tem perdido espaço em todo o mundo. Segundo o estudo da FGV, a participação do setor na economia global caiu de 24,9%, em média, no período entre 1970 e 1972, para 16,6%, no triênio entre 2005 e 2007. As perdas foram particularmente expressivas nos paí-ses desenvolvidos, onde a fatia da riqueza produzida pela indústria recuou, em média, de 25,3% para 14,9%. Em um grupo de 16 economias semelhantes à do Brasil, o peso da indústria diminuiu de 20,4% para 14,6%. A pesquisa indica ainda que, analisada a relação entre renda per capita e industrialização, uma economia com as características da brasileira teria uma fatia industrial muito menor do que a registrada no País nos anos 1970 e 1980. “Aparentemente, o Brasil sofreu uma ‘sobreindustrialização’ no passado”, afirma —Regis Bonelli, um dos autores do trabalho.

Mesmo a China, com toda a sua pujança, viu sua indústria perder espaço em relação a outros setores da economia. Há 40 anos, as indústrias produziam 38,1% do PIB chinês; entre 2005 e 2007, essa proporção foi de 32,2%.

De modo geral, à medida que as economias crescem e se desenvolvem, a indústria perde participação na composição do PIB. A razão é simples: conforme a renda das famílias cresce e os hábitos de consumo se sofisticam, os gastos com viagens, restaurantes e educação tendem a crescer proporcionalmente mais do que aqueles com eletrodomésticos, por exemplo. Assim, a desindustrialização, antes um fenômeno negativo, pode indicar uma melhora no padrão de vida e do bem-estar de uma população.

A discussão é se a “desindustrialização” brasileira está associada ou não a tal fenômeno. Para o economista do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), Rogério César de Souza, a resposta é não. “A renda per capita brasileira ainda está longe dos patamares alcançados pelos países desenvolvidos, onde houve essa mudança”, observa. Paulo Francini, diretor de economia da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), vai na mesma direção e rejeita a comparação. “Não há no mundo país com as dimensões do Brasil, com quase 200 milhões de habitantes, que tenha se desenvolvido sem a indústria. Os chineses não fazem o que estão fazendo porque são amantes da indústria, mas porque sabem que esse é o caminho”, defende. Francini chama a atenção para a capacidade de a indústria movimentar a economia. “Para cada 0,66% de crescimento da indústria, o PIB avança 1%. Para obter o mesmo resultado, o setor de serviços precisa crescer 1,15%.”

Kupfer, da UFRJ, também rejeita a comparação. Segundo ele, a estrutura de serviços nos países desenvolvidos é muito mais sofisticada que no Brasil. “Estamos falando de serviços nas áreas de educação, finanças, cultura, lazer e tecnologia, que exigem uma mão de obra extremamente qualificada. No Brasil, a estrutura de serviços ainda é muito baseada no comércio, muitas vezes informal”, observa o economista. “Precisamos da indústria justamente para qualificar essa estrutura de serviços, pois muitos brasileiros ainda estão em serviços precários.”

O temor é que a menor participação da indústria no Brasil esteja associada à “reprimarização” da produção e da pauta de exportações. Em vez de avançar para uma economia baseada em serviços de maior valor agregado, o Brasil estaria dando um passo para trás, privilegiando a produção de matérias-primas agrícolas e minerais. “Nossa desindustrialização é para produzir mais commodities”, sentenciou o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, em artigo publicado recentemente. Nos últimos anos, o saldo positivo na balança comercial tem sido garantido pelo expressivo crescimento das exportações de produtos agrícolas, como soja, e metálicos, como o minério de ferro.

Bonelli, da FGV, pondera que ainda faltam dados capazes de estabelecer qualquer tendência nesse sentido. “É fato que tivemos uma ‘primarização’ da pauta de exportações nos últimos anos, mas ainda é um fenômeno limitado no período histórico.” O economista lembra que as exportações de bens manufaturados foram duramente castigadas pela crise de 2008, enquanto o crescimento acelerado da economia brasileira impulsionou as importações. Além disso, os dados disponíveis apontam para o crescimento do setor. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), o emprego na indústria cresceu de 12,8%, em 1992, para 14,4%, em 2008. Além disso, a participação da indústria de transformação nos investimentos cresceu de 14,4%, em 1996, para 18,5%, em 2008.

Um mapeamento divulgado, em março, pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) mostra que a indústria vai investir, aproximadamente, 500 bilhões de reais até 2013, o que significa um crescimento de quase 60% sobre o triênio anterior (excluindo o ano da crise). Trata-se da maior expansão desde os anos 1980. De certo modo, o estudo confirma o que os críticos chamam de “primarização” da economia. Cada vez mais, os investimentos se concentram nas cadeias ligadas à produção e exportação de matérias-primas. Quase 60% dos recursos previstos, cerca de 295 bilhões de reais, devem ser investidos apenas no setor de petróleo e gás. O segmento extrativista mineral aparece em segundo lugar, com projetos estimados em 52 bilhões de reais, ou 10,4% do total. Apenas no minério de ferro estão previstos investimentos da monta de 30 bilhões de reais – em grande parte, para satisfazer o apetite chinês. Entre 2003 e 2008, a demanda chinesa por minério cresceu, em média, 25% ao ano. No ano passado, a China respondeu por dois terços da comercialização global de minério no mercado transoceânico.

Não se pode desprezar o impacto que setores como o de petróleo podem ter sobre a indústria local. Apenas a Petrobras planeja comprar 48 barcos de apoio e 13 plataformas até 2013. Há ainda a expectativa de demanda para mais 28 navios-sonda e plataformas entre 2013 e 2017. “No Brasil, a questão central não é a desindustrialização, mas uma mudança estrutural dentro da indústria”, afirma Kupfer. Segundo o economista, o setor passa por um processo de “especialização”. Nesse cenário, os setores petroquímico, minerador e agroindustrial ganham força ao mesmo tempo que segmentos mais tradicionais e menos sofisticados, como os de calçados, móveis, artefatos metalúrgicos e utensílios domésticos, enfrentam dificuldades para competir com os concorrentes chineses. “Trata-se do segmento mais exposto ao câmbio e ao custo Brasil.”

Kupfer alerta, contudo, que o Brasil pode sofrer um processo acentuado e irreversível de desindustrialização se não repensar seu modelo e conter a valorização do câmbio. “A China coloca o Brasil no córner quando nos propõe uma inserção internacional passiva, na qual somos exportadores de matérias-primas e importadores de bens manufaturados. Trata-se de uma armadilha.” Segundo o professor, a competitividade assegurada na exportação de commodities deve garantir ao Brasil uma janela de dez anos, com saldos externos positivos e câmbio valorizado, para planejar um novo salto industrial. “Os setores primários vão gerar uma grande demanda por máquinas e equipamentos, então é preciso desenvolver setores que possam atender a essa demanda e garantir que não nos restrinjamos a eles.”

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Fonte: revista CartaCapital