Em 1962, cinco cineastas subiram os morros cariocas para filmar o cotidiano daquelas comunidades sob a orientação do Centro Popular de Cultura, entidade nascida na esteira da União Nacional dos Estudantes. Apesar do engajamento político que o movia, o grupo carregava o inevitável olhar da classe média a qual pertencia e o deixava transparecer em maior ou menor grau nos episódios de Cinco Vezes Favela, como foi batizado o projeto. Tal iniciativa tornou-se referência na investigação de uma então distante rea-lidade social, eminentemente negra, surgida na esteira de modelos precursores como o Rio, 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos. Exceção a invasões alegóricas ou oportunistas tardaria a se repetir no cinema brasileiro. Um reencontro similar entre esses dois universos, ainda que em outro contexto, se dará apenas no início dos anos 2000 com Cidade de Deus e a tendência aberta pelo filme de Fernando Meirelles, confusamente batizada de favela movie. Parece haver, agora, um terceiro movimento em processo, a crer na festejada acolhida na vitrine de festivais nacionais, no frescor juvenil das produções e na postura articulada dos seus realizadores.

Um desses casos filia-se diretamente ao filme coletivo dos anos 60, já a partir do título 5x Favela – Agora por Nós Mesmos, em cartaz a partir do dia 27, reivindica o mesmo direito dos jovens curiosos do Cinema Novo, inclusive com o auxílio de um deles, mas restaurando a condição essencial do ponto de vista da periferia para o centro. Os sete diretores, alguns com atuação em dupla, são jovens moradores de favelas cariocas reunidos em oficinas cinematográficas sob o comando de Cacá Diegues, no passado seguidor do CPC-UNE juntamente com Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Marcos Farias e Miguel Borges. Contam hoje, à sua maneira, o que esses viram com outra postura, mais sociológica, há quase 50 anos.

É essa precedência que faz uma das diferenças com Bróder, outra recente incursão no que começa a se estabelecer como um recorte da periferia de cultura negra, seja ela nas bordas da Grande São Paulo, seja aos pés dos morros e bairros distantes da capital fluminense. No primeiro longa-metragem do paulista Jeferson De, com previsão de estreia para novembro, estamos no Capão Redondo, conglomerado de miséria da cidade nem tão desconhecido assim de quem assistiu no cinema a dramas tocados em geografia semelhante de dez anos para cá. Mas o diretor, jovem e negro, ambiciona corrigir possíveis distorções da tela e lançar um juízo menos caridoso, mais autêntico e franco dos habitantes do lugar e seu duro cotidiano. Não é outra a intenção da turma carioca e nesse sentido as qualidades e os problemas de um primeiro trabalho sugerem diálogos estimulantes entre as produções, que, antes da fricção, convergem para uma semelhança de propósitos nem sempre bem desenvolvidos.

Note-se, por exemplo, a contextualização dos personagens e das situações logo no início dos filmes. O primeiro episódio de 5x Favela, Fonte de Renda, apresenta um rapaz dedicado (Silvio Guindane) que ingressa num curso de direito, apesar da origem pobre e supostamente contrária a esse destino. Será, no entanto, sua proximidade com o tráfico que dará condições de seguir custeando os estudos, ao repassar drogas aos colegas. O recurso dramático ingênuo não se supera no desfecho, mas dá o tom de esperança que quase sempre irá imperar nos demais episódios. A vocação é conjugada a registros espirituosos de maior triunfo, como em Arroz com Feijão, ou chanchadeiro, no encerramento com Acende a Luz. Difícil, contudo, partilhar da postura dos jovens diretores em afastar da favela sua condição midiática de violência quando esta é abordada na tipologia exagerada e um tanto melodramática (Concerto para Violino) ou, pelo contrário, crer num gesto benevolente que desanda toda uma trama bem construída (Deixa Voar).

Observe-se que a irregularidade de projetos coletivos não é uma especificidad-e de iniciantes. Mas aqui um cortejo pela -badalação de festivais como Cannes, com repercussão entusiasmada também pela presença veterana de Cacá Diegues na memória do evento francês, ou bem mais perto, na paulista Paulínia, onde o filme obteve brava acolhida de prêmios pela inegável força juvenil do projeto, requer equilíbrio para não se sobrepujar a um aprendizado cauteloso. Talvez seja cautela também o que faltou ao sempre vibrante e articulado Jeferson De no olhar e no trato de sua primeira empreitada. Reconheça-se em Bróder, aplaudido pelo último Festival de Berlim e vencedor dos prêmios principais no recém-finalizado 38º Festival de Gramado, uma ousadia do estreante que não assina seu sobrenome, responsável há uma década pelo irreverente Dogma Feijoada – manifesto sobre a presença negra no cinema nacional – e que tem como esperado um apreço todo especial por Spike Lee. Não surpreende, portanto, que venha um projeto ambicioso, nada facilitador e por isso mesmo com faltas e excessos que colidem em muitos momentos. A depender da benevolência do espectador, os problemas podem ser compensados por um elenco em comunhão.

Pesará para isso, por certo, a decisão de apresentar o personagem central Macu (Caio Blat) como um jovem branco de alma negra que custa a se impor na tela apenas por trejeitos ou um corte de cabelo. Mais bem definidos são os seus amigos com quem cresceu no bairro, o jogador de futebol bem-sucedido na Europa (Jonathan Haagensen) e o desempregado em crise (Silvio Guindane). Ainda, a mãe de Macu (Cássia Kiss) e o padrasto deste (Ailton Graça), um casamento miscigenado num Capão Redondo que o diretor preferiu vazio, por assim entender escapar de uma alegoria da população remediada, mas acomodada em seu cotidiano. O diretor não se furta, no entanto, de conduzir ali o viés dramático do filme na forma de um plano de sequestro que irá opor Macu a atuais mandantes do local, Macu a familiares e, por fim, Macu a amigos, num jogo de destinos marcados.

É por querer abraçar vários tipos, tratar de tramas e subtramas, como a de uma gravidez indesejada, que Jeferson se arrisca nem sempre com desempenho eficaz. Assim como seus colegas cariocas, ele faz da matéria social periférica sua bandeira e tenta tatear o melhor cinema para demonstrá-la. Muitas vezes explica-se melhor do que se representa na tela, como no discurso cercado de ironia ao receber os Kikitos da mostra sulista, quando lembrou já ter tido um filme rejeitado num tradicional evento cinematográfico de Salvador. Apenas por enquanto, não é descabido saudar mais a verve dessa juventude animada do que o cinema que principia.

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Fonte: revista CartaCapital