No entanto, todas as propostas de reforma do sistema tributário têm fracassado. Saem do Executivo com esperança de aprovação e poucos meses depois morrem no Congresso Nacional. O motivo é simples: a principal mudança é em cima do ICMS, que representa 83% da arrecadação dos Estados. Em todas as propostas, ele passaria a mudar de nome para Imposto sobre Valor Adicionado (IVA), com uma única legislação federal e cobrado no destino ao invés da origem como é hoje.

O problema é que essa mudança gera alterações significativas nas receitas dos Estados e municípios. Pela Constituição, os Estados arrecadam o ICMS e repassam 25% para os municípios. De forma geral, os Estados do Sul e Sudeste perdem com as mudanças para os Estados do Nordeste. Diante disso, os governadores querem garantir que a mudança pretendida traga mais recursos para o seu Estado e, para isso, articulam com suas bancadas no Congresso para introduzir alterações à proposta feita pelo Executivo.

Em poucos meses, essa disputa entre Estados transforma a proposta original num verdadeiro Frankenstein tributário, acabando com a simplificação pretendida pelo IVA e, caso ocorra acordo entre os Estados, municípios e governo federal, ponha a mão no bolso, pois irá aumentar, e muito, a carga tributária para satisfazer todos os interesses em conflito.

Assim, o conflito federativo e a necessidade de voto favorável de 3/5 da Câmara e do Senado tornam difícil passar qualquer proposta de reforma tributária. Mas o que mais chama a atenção nisso tudo é o desprezo que essas propostas têm com o contribuinte, que é quem paga a conta do sistema tributário. É como se ele não existisse. Não fosse o principal ator a ser considerado em qualquer mudança tributária.

Como contribuição ao debate, este artigo trata dessa questão oculta nas discussões do sistema tributário: quem paga a conta pública?

Para isso, vamos abordar os seguintes tópicos: Regressividade, Vantagens da Justiça Fiscal e Imposto sobre Grandes Fortunas.

1. Regressividade

Uma das características do sistema tributário brasileiro é sua alta regressividade. Quem ganha até dois salários mínimos paga 49% do seu ganho em tributos e quem ganha mais de 30 salários mínimos, 26%. Assim, a carga tributária é alta para a baixa renda e baixa para a alta renda. Isso agrava a situação da má distribuição de renda existente e reduz o consumo das classes de renda média e baixa, indo na contramão do crescimento sustentável do País.

Essa regressividade existe por causa da elevada participação dos tributos indiretos, que são os que não dependem da condição econômica do contribuinte. Desde 1991, os tributos indiretos representaram entre 62% e 66% da carga tributária. Isso se deve, fundamentalmente, aos impostos sobre o consumo, onde o ICMS estadual é responsável por metade do ônus sobre o consumo.

Reduzir a tributação sobre o consumo significa diminuir/zerar as alíquotas do ICMS, mas também, no que ainda faltar, da Cofins e do PIS para os produtos da cesta básica. Não iria ocorrer perda de arrecadação, pois aumentaria a atividade econômica e a formalização e reduziria a sonegação e inadimplência. Além disso, cresce o poder aquisitivo da população, que passaria a comprar mais.

Os tributos que incidem sobre o consumo estão matematicamente ligados aos preços. Um produto cujo preço antes dos tributos seja de R$ 100, se o ICMS for de 18%, que é sua alíquota mais geral, o acréscimo devido ao ICMS, PIS e Cofins, eleva o preço final para R$ 137,46. O ICMS é responsável por 2/3 desse acréscimo! Assim, o aumento de preços antes dos tributos é ampliado pela incidência tributária na mesma proporção no preço final, prejudicando o consumo e gerando inflação.

2. Vantagens da Justiça Fiscal

Para o País ter desenvolvimento sustentável, além de bons fundamentos macroeconômicos, necessita de um mercado interno forte e em expansão. A má distribuição de renda e a regressividade tributária comprometem esses objetivos.

Compete ao setor público a responsabilidade para solucionar esses problemas. Isso se faz via decisões sobre a receita e a despesa públicas. Na receita, ao promover a redução da regressividade tributária, com desoneração dos tributos indiretos de consumo popular e isenções/reduções de tributos diretos, como o IPTU para imóveis de pequeno valor. Na despesa, ao destinar maior parcela dos recursos orçamentários para atender às necessidades básicas da população.

Essas políticas permitem ampliar e incorporar um maior contingente de consumidores, gerando maior consumo, produção e desenvolvimento econômico e social. A população de média e baixa renda é contemplada pela ação governamental ao priorizar seus interesses no orçamento e na tributação. A população de maior renda é contemplada pelos frutos do desenvolvimento econômico e social, quando são gerados empregos e ganhos econômicos e financeiros. Com maior justiça fiscal, a segurança nas cidades e no campo é melhorada, beneficiando a todos.

3. Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF)

O IGF, previsto pela primeira vez na Constituição Federal de 1988 como de competência da União, demanda lei complementar para a sua regulamentação, que não foi aprovada até hoje, existindo projetos de lei engavetados no Congresso Nacional. Isso afronta o que estabelece o artigo 11 da Lei de Responsabilidade Fiscal: “Constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação”. (grifo nosso)

As razões alegadas para a não regulamentação do IGF são de que afugentaria o capital, teria pequeno potencial tributário, geraria conflitos com outros impostos sobre o patrimônio, não teria como incidir eficazmente sobre títulos mobiliários e não deu certo em alguns países.

Não creio que essas alegações procedam. Em vez de afugentar, deve atrair mais capital ao desonerar o fluxo econômico, gerando maior consumo, produção, lucros e dividendos. Não teria nenhum conflito com os impostos existentes, pois sua base tributária é o valor total dos bens, na declaração anual do Imposto de Renda. O valor dos títulos mobiliários, além de constar da declaração de bens, pode ser cotejado pela Receita Federal com os registros da Bolsa de Valores e dos bancos.

Sobre a questão do potencial tributário do IGF, simulações com base nas declarações do Imposto de Renda permitem concluir que uma alíquota média de 0,6% para o IGF proporcionaria a mesma arrecadação da CPMF. Isso considerando valores de bens que não são atualizados nas declarações, como imóveis e ações. Com a atualização desses valores, o potencial é superior, podendo essa alíquota ser menor ainda.

O imposto sobre o patrimônio é cobrado com sucesso há vários anos na Alemanha, França, Espanha, Grécia, Suíça, Noruega, Luxemburgo, Índia, Arábia Saudita, México, Paquistão, Suriname e Tailândia. Não deu certo em alguns países como Áustria, Canadá, Irlanda e Dinamarca, mas pode dar certo no Brasil. Só saberemos se o testarmos.

A razão real, no entanto, para a não regulamentação, é que o IGF atinge as camadas de maior renda e riqueza, que têm peso político nas decisões do Congresso.

A desigualdade na distribuição da riqueza supera a da renda. É um indicador do atraso social do País e limitador do seu desenvolvimento. Estudo tributário feito pela Receita, com base nas declarações do Imposto de Renda de 2000, mostrou que 0,9% dos declarantes que possuíam renda mensal superior a R$ 10mil detinham o mesmo montante de patrimônio que os 24% de declarantes que tinham renda mensal entre R$ 1 mil e R$ 1,5 mil (valores de 2000).

A substituição dos tributos indiretos, que atinge o fluxo econômico, por tributos que incidem sobre o estoque da riqueza, tem o mérito de criar maior desenvolvimento econômico. Isso ocorre porque permite redução de preços, maior nível de consumo e produção, gerando lucros e dividendos maiores, que, por sua vez, compensam a tributação sobre a riqueza. A regulamentação do IGF, junto com a desoneração da cesta básica, vai contribuir para reduzir a forte regressividade do sistema tributário, melhorando os indicadores econômicos e sociais.

O horizonte da justiça fiscal encontrará, sem dúvida, barreiras e interesses divergentes. Além de esbarrar no conflito federativo pela disputa de receitas, a reforma do sistema tributário deve avançar para reparar a injustiça fiscal e permitir maior desenvolvimento econômico e social ao País.

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Fonte: jornal O Estado de S. Paulo