Seguiu-se um longo ciclo de fortalecimento, que durou quase oito anos, no qual o compasso da valorização abriu-se em 93%, levando o valor da moeda a inimagináveis US$ 1,60 em abril de 2008. Daí em diante, já em plena crise global, a volatilidade se intensificou até que, com o rebaixamento do risco soberano da Grécia, ocorrido em fevereiro último, o euro desabou mais de 20% desde então, testando nesse momento o limite de US$ 1,20.

Pelo número e, principalmente, pelo peso específico de muitas das nações envolvidas, a criação da União Europeia pode ser considerada como a mais ampla e profunda experiência de coordenação econômica internacional da história. Por isso, excluídas as análises de alguns alarmistas de primeira hora, que se apressaram em vaticinar uma espécie de morte súbita para o euro, como se a criação da moeda única europeia tivesse sido um improviso incapaz de resistir a um primeiro revés, os demais analistas aos poucos vão convergindo para a constatação de que o contágio da crise do euro sobre conjuntura econômica mundial tende a ser de pequena monta.

Contudo, é no plano estrutural que a crises dos países da franja da União Europeia tende a provocar seus efeitos mais relevantes. Isso porque, se a volatilidade do euro não era desejada, muito menos parece razoável imaginar que um nível tão forte para a moeda, como o que vinha vigorando antes do episódio dos Pigs (sigla em inglês para Portugal, Itália, Grécia e Espanha), estivesse no plano de seus criadores. O fato é que se o desfecho da atual crise significar a estabilização do euro em um patamar próximo ao valor do dólar, o mundo irá experimentar mais uma importante reacomodação na ordem econômica mundial.

O que parece fundamental é não perder de vista a profundidade das transformações nos padrões de comércio e de investimento direto externo que estão se fazendo sentir em ajuste à grande crise do capitalismo financeiro desgovernado dos últimos anos. Em 2008, a primeira onda da crise, centrada nos EUA, além de uma pesada recessão mundial, deixou como implicação de mais longo prazo uma importante modificação no padrão de relacionamento entre as economias americana e chinesa e dessa última com o resto do mundo.

Para as empresas brasileiras, essa primeira onda da crise já trouxe uma sucessão de tendências preocupantes. Primeiro, a menor absorção de bens no mercado americano traduz-se em um aumento da dificuldade para recuperar as exportações que já haviam sido perdidas para a China na última década. Segundo, está provocando um aumento da presença exportadora da China em novas áreas, com esse país passando a contestar de forma rápida e crescente as posições do Brasil na América Latina, exatamente o destino em que se conseguiu preservar as exportações industriais com maior conteúdo tecnológico. Terceiro, a necessidade de a economia chinesa introjetar o seu padrão de crescimento está reforçando a tendência desse país a importar os insumos no estágio menos elaborado possível e produzir o resto internamente. Como resultado, a estratégia chinesa está colocando o Brasil em uma posição de córner, deixando o país sem outra opção que não aceitar uma relação de complementariedade limitada ao fornecimento de commodities, suficiente para gerar divisas mas, sabidamente, pouco capaz de promover desenvolvimento sustentado.

Agora em 2010, a segunda onda da crise, centrada na zona do euro, terá, sem dúvida, muito menor capacidade de comprometer as perspectivas de crescimento da economia mundial, até porque estão efetivamente em crise Grécia, Irlanda e outros países de menor relevância. Porém, parece inquestionável que irá provocar nova rodada de acirramento da competição nos mercados internacionais, agora motivado, de um lado, pelo aumento da introjeção dos fluxos de comércio e capital na própria União Europeia e, de outro, pelo revigoramento da capacidade competitiva das empresas líderes europeias. Esse é o caso especialmente da Alemanha, que já vinha praticando políticas agressivas de recomposição da competitividade e que, com a desvalorização do euro, provavelmente vai voltar a disputar o posto de maior economia exportadora do planeta, do qual estava sendo desbancada pela China nos tempos áureos da moeda.

Quanto ao Brasil, é importante preservar as posições exportadoras alcançadas, especialmente nos mercados latino-americano e europeu. A extensa base de recursos naturais somada a décadas de esforço de industrialização criaram no país uma indústria diversificada que, mesmo não tendo a exportação como alvo central, ainda mostra-se capaz de obter resultados satisfatórios nos mercados mundiais. A valorização do euro ao longo da última década forneceu um dos argumentos mais frequentemente manejados por aqueles que buscavam desqualificar a apreciação do real como problema que merecesse ser enfrentado. Agora que o euro forte é coisa do passado, não há mais como não colocar a questão cambial no centro do debate sobre os rumos da economia brasileira.

______________________________________________________________________

David Kupfer é professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do Grupo de Indústria e Competitividade (GIC-IE/UFRJ

Fonte: jornal Valor Econômico